sexta-feira, 3 de abril de 2009

PENSAMENTO DO DIA

“Homens: isso lhe bastava. Ele jamais condenou alguém sem antes compreendê-lo”

(Jean-Paul Sartre sobre Palmiro Togliatti, ex- secretário do Partido Comunista Italiano, na introdução do livro “O caminho italiano para o socialismo – 1966, Editora Civilização Brasileira)

O nome da crise é desemprego

Alberto Carlos Almeida
DEU NO VALOR ECONÔMICO


A democracia é o pior sistema político com exceção de todos os outros, era o que dizia Winston Churchill. Tudo indica que o capitalismo seja o pior sistema econômico com exceção de todos os outros. Parlamento e mercado, ambas invenções britânicas. Resultado menos de mérito e escolhas deliberadas, muito mais do acaso. As sociedades experimentam. Assim como no mundo da seleção natural de Charles Darwin, aplicado às espécies, os sistemas políticos e econômicos também tiveram e têm a sua seleção natural. Venceu o Ocidente, venceu o liberalismo político e econômico.

O termo "liberal" é utilizado aqui se sabendo da possível margem para controvérsias. Para reduzi-la, convém esclarecer que o liberalismo econômico exige, assim como no político, relações impessoais baseadas no mérito. O capitalismo é mais o império da competição do que do mercado. Nem sempre o mercado leva à competição, mas com certeza onde há competição há mercado. Na política é a mesma coisa. Liberalismo significa liberdade para competir, para criticar, para fazer oposição. Em geral, o liberalismo político vem combinado com democracia - manda a maioria por meio da participação eleitoral e não eleitoral.

Tudo isso é teoria, até que vem a crise. Com ela ressurgem os dinossauros de plantão para tentar provar, dogmaticamente, que o mercado falhou, o liberalismo morreu e a economia exige mais Estado: bancos estatais, montadores estatais e, quiçá, açougues e padarias também estatais. A crise é a prova, para eles, do completo fracasso do mercado.

O raciocínio é simples, para não dizer simplório. O país mais capitalista do mundo, os Estados Unidos, onde a regulação do mercado financeiro é mínima, mostrou a face mais cruel da crise. É lá onde a crise é mais grave. No Brasil do excesso de governo, a regulação do sistema financeiro impediu a crise aguda. Mas também impediu a bonança aguda.

Surge a perguntinha: o que é melhor, mais regulação, menos crise no pior da crise e menos bonança no auge da bonança ou, ao contrário, menos regulação e mais sucesso quando a onda é de crescimento, porém com mais fracasso quando a momento é de crise? O primeiro é o Brasil, o segundo são os Estados Unidos. Os arautos do governo e do Estado defenderão o Brasil. Os céticos ficarão na dúvida e aqueles que não temem o risco defenderão menos regulação. Hoje a crise é motivada por isso, amanhã, uma nova e diferente crise será causada por algo imprevisível ou incontrolável. Ou ambos.

De toda sorte, o debate será sempre, eternamente, entre mais e menos mercado.

É um debate intelectual com consequências práticas. Qual é a principal dessas consequências? O impacto que os sistemas econômicos têm na geração de riqueza e de empregos. Os sobrenomes dos países anglo-saxões, e também germânicos, derivam de profissões: Smith para ferreiro, Schroeder para alfaiate, e por aí vai. Quem gera mais riqueza? O mercado ou o Estado? Gerar riqueza exige gerar emprego, mais e melhores empregos para ficar no chavão trabalhista.

A vantagem do sistema capitalista sobre, por exemplo, a escravidão, é que o capitalismo luta para reduzir custos. Uma forma de fazer isso é por meio da substituição da mão de obra pela tecnologia ou por procedimentos mais eficientes. Isso não ocorre no escravismo. Como a mão de obra não recebe salário, não há incentivo para a inovação.

Não é só a inovação que destrói empregos. Quanto a isso, parênteses importantes: os catastrofistas de plantão esquecem, ou ignoram, que há cem anos a maior parte dos empregos era gerado no campo. No campo de qualquer lugar do mundo. As marcas da prosperidade rural pretérita estão em inúmeras cidades brasileiras. Esses empregos foram destruídos. Não havia empregos na informática, simplesmente porque não existia computador. Hoje, é um dos setores que mais empregam (e mais destroem empregos). E a nave vai.

Os pessimistas dizem que o mundo não tem recursos suficientes para o nosso padrão de desenvolvimento. Esquecem, porém, de mencionar que nos países mais ricos a população ou não cresce ou diminui. Isso reduz sobremaneira a pressão sobre os recursos da terra. De volta ao emprego, não é somente a inovação que o destrói. As crises também têm esse poder.

A atual crise que se abateu de maneira inquestionável sobre o Brasil (apesar da regulação que nos assola) tem como principal manifestação entre a população o desemprego e a redução da renda. Argumentos pró e antimercado não fazem sentido para o elo mais fraco do mercado de trabalho.

Está provado, há tempos, que a inflação é um problema maior para quem corre menos risco de perder o emprego. Dinheiro chama dinheiro. Emprego de qualidade chama emprego de qualidade. É raro que pessoas que ocupam o topo da cadeia produtiva fiquem sem emprego por um período muito longo. Sua escolaridade é mais elevada, as habilidades são mais diversificadas e os contatos com pessoas influentes, mais abrangentes. Há muitos recursos disponíveis que as impede de ficar fora do mercado de trabalho por um período longo em demasia.

O mesmo não se pode dizer das pessoas que ocupam a base da pirâmide social. As teorias econômicas não as ajudam a aceitar o fenômeno do desemprego. Nesse particular, as crises têm o poder de tornar ainda mais agudo um problema quase crônico. O desemprego ou subemprego é uma realidade das mais cruéis. As periferias das grandes cidades brasileiras, as cidades-dormitórios, congregam milhões de trabalhadores temporários, pessoas que vivem do chamado bico, toda sorte de autônomos, vendedores e camelôs. Para eles, ficar sem trabalho é algo dramático. Manter o trabalho, mas ganhando menos, também é.

É difícil nos Estados Unidos de hoje enxergar a olho nu os efeitos da crise. Houve redução de consumo sim, mas os americanos continuam comprando. Estão viajando menos, sim, mas os cruzeiros de aposentados para as Bahamas continuam firmes e fortes. O padrão de riqueza é tão elevado que os efeitos da crise acabam sendo amortecidos e amaciados. Quanto menos riqueza, menor o amortecimento.

O medo do desemprego no Brasil é grande, isso já em janeiro. Todas as previsões dos economistas indicam que o medo procede: o desemprego tende a aumentar. Não se sabe como sairemos da crise, o quão profunda ela será ou quanto durará. O fato é que um desemprego agudo e prolongado tem impacto quase imediato nas taxas de criminalidade. Eis uma manifestação concreta da fraqueza de nosso colchão. O amortecimento da queda é precário.

Adicionalmente, os efeitos da crise foram mais sentidos na Região Sudeste do que nas demais regiões. A pesquisa reflete a queda do emprego industrial em São Paulo, e a forte dependência de Minas e Espírito Santo da economia exportadora.

Na Região Sul os efeitos da crise foram menos sentidos. A explicação é simples. Na era Lula, o Sul, ao contrário do Nordeste, não foi o grande vencedor. O Sul é mais igualitário e equilibrado.

Vem sendo menos próspero nos últimos anos. Chega a crise e o Sul sente menos. O Sudeste é menos igualitário e mais desequilibrado. Ganha mais quando todos ganham. Acaba perdendo mais quando todos se dão mal. As demais regiões ficam a meio caminho, graças, sobretudo, ao Bolsa Família.

Abram os olhos, intelectuais pró e antimercado. A crise tem um nome muito concreto: ela se chama desemprego.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).

Aquecimento e humanismo

Fernando Gabeira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

RIO DE JANEIRO - Magro, arrumadinho, aos 85 anos, o físico americano de origem inglesa Freeman Dyson lembra um pouco Bertrand Russel. Não era tão polêmico até que começou a criticar a tese do aquecimento global. Algumas pessoas chegaram a achar que Dyson começou a caducar. Mas um de seus amigos, especializado em mentes, o psiquiatra Oliver Sachs, afirma que a cabeça de Dyson continua aberta e flexível.

O pequeno livro de Dyson, "O Sol, o Genoma e a Internet", já foi rapidamente comentado por mim nesta página. Ele afirma que a energia solar, a internet e a engenharia genética são tendências que devem dominar o século 21. Popper afirmava que a historia humana é imprevisível, porque não se pode prever o futuro do conhecimento humano. Mas tendências são previsíveis, ou pelo menos admissíveis.

As críticas de Dyson às teses do aquecimento global, que considera exageradas, não significam que ele seja contra a ecologia, pois é um dos grandes críticos do carvão e entusiasta da energia solar. Elas são discutidas porque ele é um cientista respeitado, com incursões no nuclear, nas questões espaciais e também com algumas pesquisas dedicadas à paz.

Quando viu o filme de Al Gore, com a mulher, ela ficou brava com ele: "Você me disse que nada aconteceria com os ursos polares". Ele respondeu: "Não se preocupe, os ursos polares estarão bem".

Dyson acha que é preciso se concentrar na luta contra a pobreza e as doenças. Ele é um humanista. Impossível reproduzir a discussão científica, mas a crise econômica mundial permitiu, agora mais do que nunca, uma aproximação da ecologia com o humanismo. Por que não unir as duas pontas? Sobretudo numa mente flexível e aberta como a de Dyson. Pelo menos em casa, ele terá de responder pelo futuro dos ursos polares.

Ainda Fernando

Cristovam Buarque
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO


Nesses últimos dias, Fernando Lyra foi notícia com seu livro Daquilo que eu sei: Tancredo e a transição democrática, que trata dos eventos históricos ao redor de 1985.

Mas Fernando tem uma posição privilegiada, não apenas como participante do passado. Distante de cargos públicos, ele continua observando o mundo e o Brasil. Com a mesma perspicácia que lhe permitiu, em 1985, prever um rumo, escolher um caminho e construir uma estrada, ele continua olhando para o futuro.

Ao comentarmos o caos partidário brasileiro, a perda absoluta de identidade nos partidos, as alianças esdrúxulas sem constrangimento, ouvi dele uma frase marcante: "Os partidos estão descaracterizados, mas ainda existe o "lado de lá" e o "lado de cá"". Não podemos perder o sentido de que na política há dois lados, e que saltar de um para outro é incoerência.

Quando nos aliamos a Tancredo Neves defendendo a eleição do presidente no Colégio Eleitoral já constituído, em vez de a Ulysses Guimarães e sua defesa da eleição direta, impossível naquele momento, não mudamos de lado: continuamos lutando pelo restabelecimento da democracia no Brasil. Quando, em 1989, ficamos ao lado de Brizola, em vez de Lula, Ulysses, Covas ou Roberto Freire, não mudamos de lado. Estávamos do mesmo lado.

De lá para cá, políticos dos mais diversos partidos se uniram, como "saladas políticas", sem qualquer nitidez de princípios, saltando de um lado para outro da linha ideológica que separa os partidos, transformados em clubes eleitorais.

Ficou difícil diferenciar. Difícil passar uma linha separando Dilma e Serra. Porque o PT e o PSDB têm posições tão parecidas, e aceitaram alianças tão incoerentes com outros partidos, que fica difícil dizer que estejam de lados diferentes, ou mesmo que tenham um lado. O debate de 2010 entre eles será, provavelmente, o mais chato da história republicana pós-1985. Será um debate de números, sem sonhos, sem diferenças de projetos, sem uma inflexão para o futuro do Brasil.

Embora pouco provável, mas não impossível, no atual caos partidário, talvez as forças conservadoras do "lado de lá" possam dar um salto para o "lado de cá". Como fizeram em 1985, abandonando a Arena e criando o antigo PFL – atual Democratas (DEM) – e se aliando à democracia, e não à ditadura que apoiaram por 21 anos.

No Distrito Federal, Unidade da Federação que me elegeu governador e senador, tentei trazer o governador Arruda – que fez parte do Ministério da Justiça sob o ministro Fernando Lyra – do "lado de lá" para o "lado de cá". Bastaria que ele adotasse radicalmente, não superficialmente, projetos com nitidez progressista, alguns já implantados no governo de 1995 a 98 que eu dirigi.

Apesar de ter avançado ao alertar sobre os dois lados, Fernando não avançou em definir quem, no Brasil, está de cada lado. Sem essa definição, fica sempre aberta a possibilidade de que a linha que separa os dois lados fique tênue demais e não seja percebida, e que os coerentes as atrevessem por ingenuidade, e que os oportunistas, por esperteza, tenham desculpas para ultrapassá-la.

Fernando não pode parar no livro Daquilo que eu sei: Tancredo e a transição democrática. Ele está nos devendo outro livro, ou artigos, ou simples comentários que, além de nos alertarem para que não atravessemos a linha que separa o "lado de cá" e o "lado de lá", nos ajudem a ver com clareza a linha sinuosa que hoje corta, de maneira enviesada, o espectro político brasileiro, deixando os oportunistas alegres e saltitantes, e os coerentes zonzos.

» Cristovam Buarque é professor da Universidade de Brasília e senador pelo PDT/DF

Bem na foto

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


Gostaria muito de saber o que o presidente Lula disse ao presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, na sequência da conversa que tiveram ontem em Londres, quando Obama disse que ele era "o cara" e definiu Lula como "o político mais popular da Terra". A linguagem corporal de Lula foi de modéstia. Balançou a cabeça, ficou limpando os óculos, parou um pouco para pensar, como se quisesse entender as reais implicações daqueles comentários. Afinal, Lula sabe como ninguém que é o próprio Obama o "político mais popular da Terra". Em seguida, puxou literalmente Obama pela manga do terno e disse alguma coisa para ele, como se estivesse relatando alguma experiência pessoal sobre políticos populares.

Conhecendo esse seu comentário, poderíamos saber as consequências do elogio em seu comportamento político daqui para a frente. Houve quem percebesse um tom irônico no tratamento de Obama, especialmente porque o presidente americano disse que Lula era tão popular por ser "boa pinta", o que de certa maneira esvazia seu elogio do cunho político.

Não creio que essa tenha sido a intenção, e acho mesmo que as pequenas espertezas de Lula, como a revelada pelo primeiro-ministro Gordon Brown, antes de irritar seus colegas governantes, os fascinam.

Não que seja bom para Lula revelar que ele admitira, antes de acusar os "brancos de olhos azuis", que, estando no governo, culpava os Estados Unidos e a Europa pelos problemas mundiais por hábito de culpar alguém, como fazia com o governo quando era líder sindical de oposição.

Mas esse seria um pecadilho político risível, pelo menos no momento em que os líderes dos países ricos estão enfraquecidos pela crise internacional e são alvos fáceis da retórica dos líderes dos países emergentes como Lula, que se transformou, nos últimos dias, no símbolo da reivindicação dos países "pobres" por um sistema financeiro menos descontrolado e por uma ordem internacional mais justa.

Afinal, são todos políticos que vivem atrás de votos, e um presidente no fim do segundo mandato com a popularidade de Lula é raro. Ninguém mais do que Obama tem demonstrado saber exatamente que tipo de populismo aplicar em momentos de crise.

Obama beija criancinha quando precisa, vai a cidade com alto índice de desemprego quando quer pressionar o Congresso para aprovar algum plano econômico, fala mal da ganância dos executivos financeiros e demoniza seus bônus.

Na reunião do G-20, Obama estava em missão de pacificação de ânimos. A foto mais comentada do encontro foi a que o mostra sorridente, abraçado a Silvio Berlusconi, polêmico primeiro-ministro italiano, e ao presidente da Rússia, Dimitri Medvedev, fazendo o sinal de positivo.

Tom Trebat, diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Columbia, em Nova York, acha que Obama realmente gostou de Lula, que ele está convencido de que Lula vai ser alguém com quem pode negociar na América Latina.

"Lula não vai fazer show nenhum em Londres batendo o sapato em cima da mesa. Ao contrário, vai ser alguém que vai liderar a luta antiprotecionista, vai favorecer o aumento do dinheiro disponível do Fundo Monetário para os países necessitados, o que, aliás, foi o que saiu de concreto da reunião do G-20", ressalta Trebat.

Mais do que tudo, diz, um comportamento razoável de Lula vai dar um sinal para muitos emergentes. Na visão do diretor do centro de estudos latino-americanos da Universidade Columbia, Obama está querendo agradar ao Brasil, desarmar eventuais prevenções, evitar que Lula abra novas frentes de críticas que já estão abertas com Nicolas Sarkozy, presidente da França, e Angela Merkel, da Alemanha.

O importante para Obama, analisa Trebat, era que a reunião do G-20 não mostrasse grandes divisões, e isso ele conseguiu. "Ele foi lá para mostrar que os Estados Unidos não têm mais aquela postura arrogante, foi buscar o diálogo", destaca.

O próprio presidente dos Estados Unidos definiu-se como "o novo garoto do bairro" ("the new kid in the block"), para dizer que era um novato naquele grupo de líderes mundiais, numa demonstração de humildade que corresponde à sua intenção de distender o encontro.

Esta é uma viagem de oito dias, Obama vai a Estrasburgo encontrar-se com a Comunidade Européia, vai à Otan, e, na opinião de Tom Trebat, o presidente americano "está pressionando de modo suave, com sua imensa popularidade em redor do mundo, os seus amigos e aliados para que não critiquem muito e para que deem um tempo para que a economia se recupere".

Uma aproximação com o Brasil de Lula facilita também o esvaziamento natural da liderança de Hugo Chávez na América Latina, e há informações de que, no encontro que tiveram em Washington, Obama não deu espaço para que Lula defendesse Chávez. Teria recebido Lula com um comentário direto: "Quero me congratular com um homem que respeita a letra da lei".

O fato é que o presidente Lula é visto pelos líderes internacionais como o exemplo de uma esquerda moderna que defende os interesses dos países emergentes com a credibilidade de quem quer participar dos organismos internacionais.

Até nesse ponto Lula está tendo a oportunidade histórica de o Brasil, em vez de pedir emprestado ao Fundo Monetário Internacional, fazer parte do conjunto de países que formarão um fundo para aumentar a capacidade do FMI e do Banco Mundial de ajudar a superação da crise e revitalizar o comércio internacional.

A crise econômica, que pode corroer sua popularidade no Brasil, só faz aumentá-la em nível internacional.

Olhos castanhos

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O déficit primário de R$ 926,2 milhões registrado em fevereiro - o pior índice desde 1998 - não foi culpa das elites, do neoliberalismo nem da gente loura de olhos azuis.

É responsabilidade do governo que, imprevidentemente, abandonou as reformas e aumentou os gastos federais. Só não se aplica ao caso o lema "como nunca antes neste país", porque a imprevidência já foi regra no Brasil. Uma época à qual o governo Lula retrocede em muitos aspectos.

Na gastança, na concentração de poder no Estado, na abertura de espaço para os setores políticos mais atrasados, na incapacidade de arbitrar porque entende que governar é agradar a todos sem medir as consequências do dia de manhã.

Pensamento típico de governos com projetos políticos muito bem definidos em termos de metas e meios, mas sem um projeto de País. Nessa ótica, o partido se sobrepõe à coletividade.

Quando a conveniência de um coincide com o interesse da outra, tanto melhor. Quando se chocam, prevalece o objetivo particular, imediato, em prejuízo da estrutura garantidora permanente do bem público.

Com o advento da crise econômica, o governo Lula foi obrigado a balizar seus procedimentos. O discurso do presidente logo após a reeleição, defendendo que a hora era de "gastar", foi substituído por anúncio de cortes, mas não por uma atitude responsável de arbitragem clara das restrições.

Parte do mal está feita e será transferida ao molde de "herança maldita" para o futuro. Reajustes salariais para o funcionalismo são gastos irreversíveis.

Aumento da máquina permite retrocesso, mas requer coragem para assumir o custo político. Não apenas em termos de pressão de grupos específicos, mas na comparação que os criadores das facilidades espertamente atribuirão à insensibilidade e incompetência de quem estiver com o leme das dificuldades nas mãos.

Estragar é bem mais fácil que consertar.

Há um exemplo em curso que evidencia a prioridade do foco no projeto político e diz respeito aos prefeitos, figuras essenciais na organização de bons palanques para os candidatos governistas à Presidência da República e aos governos dos Estados em 2010.

No momento, estão todos insatisfeitos cobrando do governo federal uma solução para a queda nos repasses do Fundo de Participação dos Municípios por causa da redução das receitas federais.

Para agradá-los (esperando ser por eles agraciados com adesão eleitoral) há medidas específicas em estudos, mas há também uma medida provisória que, entre outras providências, permite a quebra de limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, reconhecidamente um dos grandes, se não o maior, avanços implantados pela gestão anterior no quesito equilíbrio das contas públicas.

Indispensável, por isso, que fosse tratado como cláusula pétrea por qualquer governo referido naquilo que é melhor para o País e não necessariamente no que é mais conveniente aos planos políticos do governante do turno.

No entanto, não é isso o que se vê. Afrouxar a LRF para atender a essa ou àquela necessidade, por mais premente que seja, significa a quebra do princípio da responsabilidade com a gestão dos recursos públicos que só recentemente passou a fazer parte da cartilha dos governantes no Brasil.

Vício insanável

O senador Tasso Jereissati trocou suas cotas de passagens aéreas pelo fretamento de aviões sempre que seu jato particular não esteve disponível.

O procedimento é legal, segundo o diretor-geral do Senado, embora o regulamento que dá direito a bilhetes em aviões de carreira não preveja o aluguel de aeronaves.

Assim como não prevê o fretamento de quaisquer outros meios de transportes. Os ofícios mediante os quais o senador Jereissati obteve autorização especial para sustentar seus hábitos de conforto pertencem ao terreno do jeitinho.

A conduta pode ser legal no parâmetro do Senado. Mas, na visão do público, não é normal pagar a conta de jatinho fretado.

Quanto pior

O Congresso não desiste de abrir vaga para mais 7.343 vereadores nas Câmaras Municipais do Brasil. No ano passado a Câmara aprovou as vagas, mas impôs como ressalva uma redução de despesas.

A proposta foi para o Senado, que derrubou a ressalva, levando o então presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, a se recusar a promulgar a emenda.

O então presidente do Senado, Garibaldi Alves, recorreu ao Supremo, mas o sucessor, José Sarney, retirou a reclamação. Partiu-se, então, para a solução interna com nova votação na Câmara que, pela decisão tomada na Comissão de Constituição e Justiça, deve aprovar as novas vagas sem a restrição de despesas.

O Parlamento virou, mexeu e chegou à melhor solução para os vereadores. O fato de ser a pior para quem assiste e financia o espetáculo diz respeito à escala de prioridades da instituição.

A LUA (poema)

Graziela Melo

A lua
Me olha
Tristonha

Às portas
Do
Anoitecer

Eu vejo
As estrelas
Tão belas

E sinto
No fundo
Da alma

As sombras
Do
Entristecer

Rio de Janeiro, 1/4/2009

Um mandato para o Supremo

Maria Cristina Fernandes
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Foi a partir de decisões do Supremo Tribunal Federal e não de lei votadas pelo Congresso Nacional que o cigarro foi proibido em avião, a pesquisa com células-tronco foi liberada, a proibição ao nepotismo foi estendida aos Três Poderes, a distribuição do coquetel contra o vírus da Aids fez-se gratuita, a demarcação de reservas indígenas ganhou novas regras, os servidores públicos tiveram garantido o direito de fazer greve e os partidos tornaram-se detentores dos mandatos de seus eleitos.

A lista de feitos do ativismo judicial é extensa, amplia-se a cada dia e gera um interminável debate sobre suas consequências para o equilíbrio dos Poderes. Ciente de que esse ativismo, que cresceu, em grande parte, na esteira da crise do Legislativo, dificilmente pode vir a ser contido no curto prazo, o deputado Flávio Dino (PCdoB-MA) concluiu que a saída seria dotá-lo de mais legitimidade.

É esse o escopo de sua polêmica proposta de emenda à Constituição, com mudanças nos critérios de composição e permanência dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

A Constituição prevê que os 11 ministros do Supremo sejam escolhidos pelo presidente da República entre brasileiros de 35 e 65 anos, "de notável saber jurídico e reputação ilibada".

A proposta do deputado, que transita com facilidade pela magistratura desde que presidiu a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), amplia para o Legislativo e o Judiciário a possibilidade de nomear seus integrantes.

Essa nomeação partiria obrigatoriamente de listas tríplices apresentadas pelos tribunais superiores de Justiça e Trabalho, Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público, OAB e faculdades de Direito que mantenham programa de doutorado há pelo menos 10 anos. É a esta lista tríplice que Dino atribui o antídoto a que o Supremo venha a replicar o modelo do Tribunal de Contas da União, hoje formado por indicações dos três Poderes.

Tão polêmico quanto o fim do monopólio das indicações do presidente da República é o mandato de 11 anos que a proposta sugere para os ministros.

O fim da vitaliciedade romperia a tradição anglo-saxônica a que se filia o Supremo Tribunal Federal desde sua criação e o aproximaria das cortes européias que, no pós-guerra, adotaram mandatos.

Se a vitaliciedade da Suprema Corte americana foi uma reação aristocrática aos poderes nascentes do Congresso americano, a imposição do mandato na Europa, capitaneado das mudanças trazidas pela convocação soberana do Tribunal de Nuremberg. A emergência do Estados com políticas sociais mais agressivas no pós-guerra ampliou a mediação do Judiciário e reforçou seu poder político.

No Brasil, Dino localiza no período que sucedeu a Constituinte de 1988 o início das mudanças que puseram em xeque a vitaliciedade. Ganhariam maior velocidade a partir de 2003 quando aposentou-se, junto com o último ministro indicado pelos militares, a mentalidade mais formalista na relação com o poder político.

Somado-se ao desgaste crescente de um Congresso obrigado a responder às demandas geradas pela abertura política num ambiente de permanente crise econômica, os novos poderes adquiridos pelo Ministério Público, a ampliação do acesso à justiça e a súmula vinculante trouxeram o Supremo tribunal para o centro da ribalta. Dino não tem dúvidas em afirmar que esta é, de longe, a composição mais ativista da história da Casa.

Esse ativismo foi reforçado pela intensa renovação dos seus quadros. Nenhum presidente da República terá nomeado tantos ministros do Supremo quanto Luiz Inácio Lula da Silva ao final de seu mandato: oito novos nomes. E essa maioria ativista - muito mais facilmente formada entre 11 ministros do que entre 513 deputados - pode vir a se cristalizar por duas ou três décadas.

Uma outra proposta de emenda à Constituição que já está em pauta de votação, de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS), propõe a extensão do exercício do cargo de ministro do Supremo dos 70 para os 75 anos. O que significa que um ministro, teoricamente, pode vir ficar até 40 anos no poder, exacerbando o que Dino chama de aristocratização da Corte.

A bandeira da resistência à mudança é a remissão ao modelo americano, que manteve-se incólume mesmo sob momentos de grande pressão, como nos anos 1930 quando Roosevelt, inconformado contra seguidas decisões contrárias ao "New Deal", quis mudar sua composição.

À poderosa Corte americana, no entanto, contrapõe-se a força do Congresso e a vigilância da imprensa que já derrubou candidatos antes mesmos de estes se submeterem ao escrutínio parlamentar. Não há registro, no Congresso Nacional, de uma indicação ao Supremo Tribunal Federal ter sido rejeitada pelo Senado.

Flávio Dino evoca o presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, e sua tese de que o Brasil tem um sistema legislativo tricameral, em defesa da mudança nas regras de composição da Casa. Mendes é o mais novo dos ministros. Indicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, deverá ser o ministro a conviver com o maior número de presidentes. Como ainda tem mais 16 anos até a compulsória aos 70 anos, além de FHC e Lula poderá a vir a coabitar com até quatro futuros presidentes.

Mendes não está entre os ministros do Supremo mais simpáticos ao mandato, ainda que a proposta preveja a aplicação das novas regras apenas para os novos ingressantes. A limitação em 11 anos permitiria que um ministro conviva com mais de um presidente e não coincida com sua permanência no poder.

A proposta está longe de conter o ativismo que, capitaneado pelo Supremo, prolifera-se na primeira instância, no Ministério Público e na Polícia Federal e lhes confere ares salvacionistas.

Está na pauta de um Congresso que, votando-a, tampouco readquirirá o protagonismo da ação política. Limita-se a oxigenar a composição de uma Corte que tem legislado sem o voto popular que a legitime. E bem que poderia sacudir o Poder ao lado que, legitimado, não legisla.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

Oposição entrega a Temer projetos anticrise e de socorro aos municípios

Presidentes de partidos se reuniram com presidente da Câmara.
Valéria de Oliveira
DEU NO PORTAL DO PPS

Os presidentes do PPS, Roberto Freire, e do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE) e o líder tucano na Câmara, José Aníbal (SP) entregaram nesta quinta-feira ao presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), três propostas legislativas anticrise que tem a preocupação de socorrer as prefeituras. Elas vêm sofrendo com a isenção de IPI para a indústria automobilística, porque o imposto é uma das fontes do FPE (Fundo de Participação dos Estados) e FPM (Fundo de Participação dos Municípios). Temer, informou Freire, entendeu a atitude dos partidos oposicionistas como agenda positiva e afirmou que a Casa dará prioridade ao assunto. O deputado Raul Jungmann (PE) vai colher assinaturas para conseguir tramitação em regime de urgência urgentíssima para as matérias.

Confira a íntegra dos projetos: Projeto 1 - Projeto 2 - Projeto 3

Assinaram as proposições os líderes Fernando Coruja (PPS-SC), José Aníbal (PSDB-SP) e Ronaldo Caiado (DEM-GO). Uma delas é um projeto de lei que possibilita a utilização do dinheiro do Fundo Soberano do Brasil para "mitigar os efeitos dos ciclos econômicos, inclusive por meio de compensações financeiras aos estados, Distrito Federal e municípios, promover investimentos em ativos financeiros no exterior, formar poupança pública e fomentar projetos estratégicos". O texto prevê o uso dos recursos quando FPE e FPM acumulado em um trimestre forem inferiores a 5% do verificado no mesmo trimestre do ano anterior.

Outro projeto prevê o uso de recursos da DRU para compensar essas mesmas perdas. Também há um projeto de lei complementar que premia os municípios adimplentes com a possibilidade de contrair novos empréstimos para investimentos.

Governo rendido

"O governo se tornou presa fácil dos lobbies; está rendido aos interesses da indústria automobilística", disse Freire ao sair da reunião com Temer. Para ele, o setor é importante e deve ser levado em consideração, mas "não é só ele; existem as prefeituras, entes importantes para o Estado, que não podem ser desconsiderados e que sofreram queda drástica com a isenção do IPI". Segundo o ex-senador, é preciso distanciamento, como tem demonstrado o governo americano, para tratar do problema. "O papel das prefeituras na solução da crise não pode ser relegado".

Freire disse que a oposição trouxe propostas para o enfrentamento da crise "que não atentem contra os municípios". O maior problema do país, diz ele, é que o governo errou desde o reconhecimento da crise. "Mostrou-se iludido; não apenas esbanjando otimismo, mas um desconhecimento total do que estava acontecendo". O presidente do PPS lembrou a primeira reação do presidente Lula, de afirmar que a crise era do então presidente dos Estados Unidos George W. Bush, que não dizia respeito ao Brasil. Depois, rememorou, veio a tese "absurda" do descolamento que o país teria do fenômeno e o discurso da "marolinha".

Sem um bom diagnóstico, o enfrentamento foi "desastroso". "O governo atua pontualmente, onde a pressão se faz sentir, como na indústria automobilística".

MUNICÍPIOS EXAURIDOS

EDITORIAL
DEU NO DIÁRIO DO NORDESTE (CE)

Como sempre ocorre nas crises pontuais, as estruturas econômicas mais frágeis são as primeiras a sentir os desequilíbrios orçamentários. Estados e Municípios começam a sofrer as conseqüências da recessão econômica, das desonerações para reaquecimento de alguns setores produtivos e dos primeiros sinais de deteriorização das contas públicas.

Decorridos seis meses da ruptura da ordem econômica internacional, a economia real ressente seus efeitos no plano interno. A parte mais sensível - a de finanças públicas - acumula queda na arrecadação federal no primeiro trimestre do ano, com reflexos nos Estados e Municípios, exigindo mais controle nos gastos públicos e o adiamento de investimentos programados.

Nos meses de janeiro e fevereiro, as receitas da União tiveram redução de 3,6% em relação a igual período de 2008. As despesas registraram aumento de 19,6%. Os investimentos cresceram 13,9% porque o equilíbrio fiscal vinha sendo mantido. As transferências constitucionais para os governos subnacionais foram afetadas pela queda, no bimestre, na receita do IPI, em 26,25% e do Imposto de Renda, em 5,97%.

O orçamento da União para 2009 havia projetado a transferência para os fundos constitucionais FPE, FPM e outros programas governamentais, R$ 143,2 bilhões. Entretanto, diante do quadro de recessão econômica, corroendo os tributos alimentadores das transferências, a previsão foi reduzida para R$ 127,3 bilhões. Estados e Municípios perderiam, nessa projeção, R$ 15,9 bilhões.

Em termos comparativos, esses valores se nivelam às transferências promovidas pelo governo federal no ano passado, quando os dois Fundos de Participação foram irrigados com R$ 127,4 bilhões. O IPI, a principal fonte de receita do FPE e do FPM, tem sido utilizado pelo governo federal como instrumento de política econômica, procurando aliviar o impacto brutal de paralisação das vendas, com redução de suas alíquotas, como ocorreu com a indústria automobilística.

Como as receitas tanto do IPI como do Imposto de Renda estão vinculadas às transferências constitucionais, Estados e Municípios se lançaram à luta pela compensação dos valores desonerados. Os Estados propugnam, ainda, renegociação de seus débitos com o governo federal, incluindo a substituição, nos contratos, da taxa Selic pela TJLP, bem menos onerosa.

O FPM constitui a principal receita de 80% das administrações locais. No Nordeste, o percentual é mais elevado, diante do baixo poder contributivo de seus habitantes, incluindo os das capitais. Essa dependência tem um fundamento: depois da Constituição de 1988, ocorreu uma acomodação por parte dos gestores com a receita transferida à conta do FPM, suficiente para cobrir as despesas de custeio, especialmente.

Como não houve, nos últimos 20 anos, investimentos maciços capazes de transformarem as economias locais, a dependência prossegue. Recuperar a queda de receita vai depender de inventividade e de mobilização política.

Consenso de Londres

Panorama Econômico :: Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO


A reunião do G-20 foi melhor que o esperado. Foram tomadas decisões fortes e na direção correta. Foi testada, com êxito, a liderança do presidente Barack Obama. O primeiro-ministro Gordon Brown brilhou, apesar das divisões da Europa. Os países emergentes foram ouvidos e influenciaram. Os paraísos fiscais vão acabar. O tom do comunicado é grave como a crise que abala o mundo.

O trilhão de dólares em pacotes de dinheiro para o FMI, para financiar o comércio e para o socorro aos países pobres é fundamental, mas não diz tudo. O sentimento de urgência e os sinais de mudança estão espalhados em vários detalhes da reunião e do seu resultado.

A decisão da reunião em si já foi um bom sinal. Não mais a ideia de um excludente G-7 ou G-8, mas um grupo maior, com mais heterogeneidade e atualizado com a nova divisão do poder mundial. A imprensa internacional trouxe nos últimos dias avaliações de que, na verdade, o importante era o G-3: Estados Unidos, Europa e China. Há países mais e menos influentes, mas o resultado mostrou que o mundo vai além de um triângulo.

É antiga a briga do Brasil por reformas no FMI, é velho o discurso da diplomacia brasileira por uma nova ordem econômica internacional. Antes, parecia miragem. A vastidão da crise fez tudo ganhar sentido. No comunicado conjunto, as palavras ocas e polidas desse tipo de documento foram substituídas por fatos: a estrutura de voto e voz dos organismos financeiros internacionais será revista; os dirigentes receberão uma autorização para, enfim, reformarem o sistema de cotas e votos dos sexagenários de Bretton Woods até janeiro de 2011.

Normalmente, reuniões diplomáticas presidenciais produzem documentos previamente negociados pelos assessores. Desta vez não foi diferente, e até um rascunho vazou antes que os presidentes se sentassem à mesa para conversar. Mas, em geral, os interesses conflitantes provocam comunicados feitos mais para não desagradar as partes do que para decidir algo. O tom do documento de ontem era diferente.

Os paraísos fiscais estão com os dias contados, de acordo com o texto e as palavras do primeiro-ministro inglês. Isso tem uma importância que vai além da crise atual. Afinal, os paraísos fiscais são o lugar perfeito para lavagem de dinheiro, para se esconder os resultados do crime, dos tráficos, da corrupção. Segundo Gordon Brown, Suíça, Hong Kong, Macau e Cingapura já concordaram em um sistema de troca de informações tributárias. Outros vão aderir. A OCDE divulgará uma lista dos países que não quiserem participar.

Gordon Brown demonstrou capacidade de superação de conflitos na questão da regulação e da supervisão do mercado financeiro. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, e a chanceler da Alemanha fizeram seu ponto antes da reunião: queriam uma supervisão internacional. O Brasil bateu também nesse ponto. O conflito era que alguns países resistiam à ideia dessa supervisão por achar que o melhor era que cada país reorganizasse o seu sistema. Há, de fato, várias dificuldades de se criar regras iguais para sistemas tão heterogêneos, apesar de, na crise, ter ficado claro que os erros foram semelhantes. A decisão final foi estabelecer os parâmetros dessa nova regulação, que põe foco sobre as questões certas: os fundos de alto risco, os hedge funds, serão regulados; haverá limite de alavancagem para as instituições financeiras; as agências de classificação de risco serão também supervisionadas, para se evitar os inaceitáveis casos de conflitos de interesse, diz o comunicado final.

O presidente Barack Obama, em sua estreia, fez mais do que esbanjar simpatia, tratar com carinho o presidente brasileiro e dar um Ipod para a rainha. Ele exibiu o novo perfil da liderança americana: cooperativa e não ideológica. Não é pouco. É superar, nesse ponto, o legendário Franklin Roosevelt, que não entendeu a importância da cooperação internacional na reunião convocada em 1933 para lidar com a crise começada em 1929. Brown disse que, em 1929, o mundo levou 15 anos para construir uma solução negociada. "Agora é diferente, nós não hesitaremos em fazer o que for necessário." E inspirou, mais que outros, a parte em que os líderes defendem uma "recuperação verde", ou seja, investimentos que estimulem a economia indicando o caminho da produção de baixo carbono.

No Brasil, os gastadores devem estar se sentindo fortes pelos discursos e sinais de que a hora é de gastar, é a "maior expansão fiscal já vista", disse Brown. As condições locais mostram que nem tudo pode ser traduzido. A carga fiscal é alta e o Brasil não fez política contracíclica na época do boom, e ainda tem uma dívida alta.

O Banco Central brasileiro sai desta reunião na berlinda. Afinal, todos os sinais escritos e falados são de que a ordem é para a derrubada geral dos juros no mundo inteiro. O entendimento de Brown é que o problema não é mais a inflação. Com sua taxa de 11,25%, o BC brasileiro fica ainda mais exótico no mundo dos juros baixíssimos.

Sim, esta é a pior crise dos tempos modernos. Mas em Londres, pelo menos durante algumas horas, os líderes entenderam isso.

Consensos e valores

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


LONDRES - Se desse para acreditar em governantes, o resumo da Cúpula de Londres seria simples: sai o Consenso de Washington, entram os "valores e princípios". Explico: quem decretou o fim do Consenso de Washington, a partir da reunião do G20, formado pelas maiores economias do planeta, foi Gordon Brown, o primeiro-ministro britânico.

Quem entronizou "valores e princípios" foi a própria declaração final da cúpula, nos seguintes termos: "Concordamos em que é desejável um novo consenso global sobre valores e princípios-chave que promoverão atividade econômica sustentável".

Bonito, não? Ainda mais que os chefes de governo assinam a promessa de uma saída "verde" para a crise, ou seja, usar os impressionantes fundos anunciados desde o início do problema para "fazer a transição rumo a tecnologias e infraestrutura de baixo uso de gás carbônico, limpas, inovadoras e eficientes no uso de recursos [naturais]".

Eu até topo, mas vamos combinar o seguinte: o texto de ontem, assim como o anterior, da cúpula de Washington, em novembro, afirma, com todas as letras, que "a única base segura para uma globalização sustentável e crescente prosperidade para todos é uma economia aberta baseada em princípios de mercado, regulação efetiva e instituições globais fortes". Não parece o último prego no caixão do Consenso de Washington, ainda que combalido faz tempo.

Nem parece combinar com a pregação que o presidente Lula fez em Santiago do Chile em favor de um "Estado forte".

Bem feitas as contas, o resultado mais provável da cúpula é o que esta Folha já antecipara na segunda-feira: sai o G8, entra o G20. Já está até convocada nova cúpula do grupo "antes do final do ano". Aí, sim, se verá que "valores e princípios" predominarão.

Erros, mentiras e omissões do G20

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Reunião não fracassou, mas não teve sucesso, apesar de clima político bom, e inexiste o tal US$ 1 trilhão prometido

A REUNIÃO do G20 poderia ter sido um fracasso, mas não foi um sucesso. As mentiras foram várias, algumas vergonhosas, e houve omissões sem vergonha.

Não há pacote de US$ 1,1 trilhão. Não houve, talvez nem pudesse haver por lá, ideia prática a respeito do que fazer da podridão bancária. Não houve acordo nem sobre como deverá ser discutido o problema de bancos que criam crises e quebram de modo transnacional, mas são mal e mal fiscalizadas e socorridas por governos nacionais, como hoje.

Para piorar, a ironia da história fez coincidir o discurso do G20 sobre "maior transparência" de balanços bancários com uma decisão americana de permitir que seus bancos possam maquiar balanços, dando preços de fantasia para papéis que deveriam ser "marcados a mercado" (em tese, o preço na praça).

De positivo, afora o clima político não ter desandado, como se previa, saiu algum dinheiro para socorrer países falidos ou contagiados, como os do Leste Europeu, que ameaçam levar bancos europeus à breca.

Houve um acordo para criar uma entidade parecida com aquela que faz alertas de tsunamis pelo mundo, mas agora dedicada a avisar que o caldo financeiro vai entornar -o Conselho de Estabilidade Financeira (CEF), composto pelo G20 e convidados, que trabalharia com o FMI. O CEF, porém, nem arranha a soberania regulatória de país algum.

Houve um compromisso de vigiar e/ou regular "hedge funds" e derivativos de balcão. Como fazê-lo sem regra ou acordo internacional? E os parlamentos nacionais, sob o lobby da finança, vão aprovar tais coisas?

Prometeram punir paraísos fiscais que não abrirem as contas de bancos e clientes picaretas ("A era do segredo bancário acabou"). Vão acabar com a Suíça? Disseram ainda que vão regular as agências que dão notas para a qualidade de crédito (como S&P, Moody"s e Fitch), cúmplices da mentira de que o papelório ora podre era quase à prova de calote. Não adianta nada, se não houver punição para essas agências.

Há confusão geral sobre como se chegou ao "US$ 1,1 trilhão". Há certeza sobre o fato de que não há US$ 1,1 trilhão. Houve um acordo para que os países coloquem até mais US$ 500 bilhões no FMI. Parte desse dinheiro já havia sido ofertada pelo Japão no ano passado e, para piorar, o programa começa com US$ 250 bilhões. Os EUA devem bancar parte relevante do dinheiro novo -não se sabe quanto.

Ademais, o FMI vai poder "imprimir" US$ 250 bilhões de sua "moeda" (equivalente a uma cesta de dólares, euros, libras, ienes) Houve acordo para colocar mais US$ 100 bilhões em instituições financeiras multilaterais, tais como o Banco Mundial e seus equivalentes continentais, como o BID, da América, que emprestam a países pobres.

O braço financeiro do Banco Mundial (IFC) deve oferecer, diz um dos anexos do "communiqué" do G20, US$ 50 bilhões para financiar o comércio mundial (empréstimos que pagam antecipadamente a produção e/ou venda de exportações). Isso nos próximos três anos e com "significativo apoio do setor privado". Por ora, os países arrumaram apenas de "US$ 3 bilhões a US$ 4 bilhões". Os US$ 250 bilhões do comércio são puro "wishful thinking".

Cúpula de egos

Rubens Ricupero
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


A ÚLTIMA vez em que se anunciou que nova ordem mundial estava emergindo foi em dezembro de 1990, quando Bush pai pediu emprestada a expressão a Gorbatchov. Ambos são hoje simpáticos aposentados, depois que o primeiro fracassou na reeleição e o último acabou destruindo o comunismo que pretendia restaurar.

Oxalá o precedente não traga má sorte a Gordon Brown. Autêntico herói que não se poupou para garantir o êxito da cúpula do G20 poderá terminar como Churchill, vencedor da guerra, mas rejeitado pelos eleitores britânicos. Lutando contra a maré conservadora, Brown demonstrou que nem um escocês austero, filho de pastor presbiteriano, consegue resistir à hipérbole quando se trata de exagerar o êxito de uma reunião para impressionar o eleitorado.

Mas, se o encontro de Londres está longe de se comparar ao nascimento da nova ordem da ONU e do FMI, merece ser visto como contribuição útil, embora não espetacular, para restabelecer a confiança. Retomando os três critérios que sugeri ontem nesta Folha, vou invertê-los da cabeça para baixo por ordem de importância dos resultados.

De longe a ação mais concreta e nova consistiu no aumento dos recursos do FMI para US$ 750 bilhões, mais que o Fundo pedira, e a decisão de emitir US$ 250 bilhões em Direitos Especiais de Saque. Na mesma linha destacam-se os US$ 250 bilhões para financiar o comércio. Nada disso é imediato; levará meses, talvez um ano, para que esse dinheiro entre de fato e comece a ser desembolsado.

Não obstante, não há dúvida de que os países necessitados se sentirão mais tranquilos. O México não esperou para se candidatar a US$ 47 bilhões da Linha de Crédito Flexível.

No critério da regulamentação, a parte conceitual do comunicado vai na boa direção: todos, entidades cinzentas como os fundos de hedge e instrumentos financeiros tóxicos, serão disciplinados, e os padrões internacionais para evitar risco excessivo ou contágio passarão por reforço. Mas os americanos lograram resistir à ideia de transnacionalizar as regras. Os EUA gostam de globalização só quando se trata de abrir fronteiras para as transnacionais, o capital e o comércio. Na hora de regular e fiscalizar, preferem a soberania. O primeiro critério, o de substanciais estímulos adicionais, pecou pela ausência. Figura apenas como veleidade de fazer mais, caso necessário. Os europeus e os que dependem da demanda alheia para crescer não se emocionaram.

Um sucesso de relações públicas, para não usar palavra mais feia, foi convencer a imprensa de que era pertinente fazer o êxito da cúpula depender de tema periférico, sem relação direta com as causas da crise: os paraísos fiscais, preocupação dos fiscos alemão e francês. Aqui, como na questão da regulação, tudo dependerá da qualidade e do rigor das regras internacionais a serem definidas nos próximos meses. Afinal, antes da crise já existiam os padrões de Basileia, que se revelaram frouxos e complacentes. No caso do protecionismo e da conclusão da Rodada Doha, ouvimos a mesma canção com letra um pouco modificada.

Quanto ao mais, Obama saiu-se bem na modéstia de pretender ter vindo para escutar, Brown teve sua "finest hour" e todos os atores voltaram para casa convencidos de que o sucesso se deveu a eles. Que mais desejar de uma Cúpula de Egos?

Rubens Ricupero, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

G20: para além da reunião de Londres

Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


A afirmação de Obama de que o mundo não deve contar mais com o excesso de consumo nos EUA é um divisor de águas

O ENCONTRO do G20 em Londres é um evento de extraordinária importância para o enfrentamento da crise econômica que vivemos. Não por outra razão ele tem concentrado a atenção da imprensa mundial e dos mercados financeiros. Embora até as pedras saibam que, em encontros como esse, as decisões já foram tomadas nos níveis técnicos, o resultado final animou a todos.

Mas o fato mais importante por ele criado me parece ser a sinalização de que entramos em um período de grandes mudanças. A afirmação do presidente Obama de que o mundo não deve contar mais com o excesso de consumo nos Estados Unidos para crescer é um divisor de águas.

Essa foi a principal fonte de crescimento na última década e, a partir dela, é que as economias mais importantes do planeta se organizaram. A declaração do presidente americano evidencia a necessidade de uma revisão profunda das regras atuais.

A partir da revolução tecnológica e da globalização desde os anos 90, foi a demanda do consumidor americano que permitiu a construção de um sistema produtivo integrado e espalhado por várias regiões do planeta. O crescimento do comércio mundial foi o resultado mais claro dessa dinâmica. Hoje está claro o desenho que as forças racionais de mercado criaram para responder a esse apetite voraz da maior economia do mundo.

De um lado, países como a China, que operavam uma estrutura industrial de baixo custo voltada para a exportação; de outro, economias que forneciam matérias-primas brutas ou componentes industriais mais sofisticados para esses verdadeiros "hubs" industriais. No primeiro grupo, o Brasil é um dos mais importantes exemplos; no segundo, temos as economias asiáticas, tais como Coreia do Sul e Taiwan.

Fechavam essa cadeia os países produtores de máquinas e equipamentos, como Alemanha e Japão. Esse sistema de produção e consumo viabilizava-se do ponto de vista financeiro via um fluxo de recursos para financiar os desequilíbrios da conta corrente americana e de outros países menores. Os recursos vinham principalmente dos países exportadores de petróleo e de outros com grandes saldos em conta corrente, como a Alemanha, o Japão e, nos últimos anos, a China.

O próprio Brasil fazia parte desse grupo de banqueiros do consumo em razão do acúmulo de reservas externas no Banco Central.

Pois o presidente Obama disse com todas as letras que esse mundo acabou. Os Estados Unidos -governo e setor privado- vão ter que recriar o hábito da poupança e da redução de seus gastos correntes. A dívida pública americana vai chegar a um nível tal que os gastos com juros no futuro próximo vão obrigar a um esforço fiscal de grandes proporções. A contrapartida desse movimento será uma economia mundial com crescimento medíocre por algum tempo, talvez alguns anos.

Somente o crescimento da demanda interna nos países superavitários pode gerar mais dinamismo ao mundo. É nesse contexto que os países emergentes aparecem com destaque, ora reconhecido no âmbito do G20. Essas economias já atingiram dimensão suficiente para ter peso sistêmico, e daqui para a frente o sistema monetário internacional não poderá deixar de lado esse fato.

Está dado que eles serão líderes no processo de reconfiguração da economia mundial nos próximos anos. No que se refere ao Brasil, é preciso considerar estrategicamente as imensas oportunidades que tal dinâmica oferece.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, 66, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).