segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A previsível derrota do socialismo de centro

Massimo Salvadori
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: L'Unità & Gramsci e o Brasil


“As social-democracias perseguiram um centro que não havia mais e ficaram limitadas a posições moderadas. Por isso, estão em crise. Mas daí a proferir um diagnóstico de morte, vai uma distância grande”. Juízo claro de Massimo Salvadori, um dos maiores historiadores do movimento operário e da social-democracia, hoje professor emérito de História das Doutrinas Políticas na Universidade de Turim. E análise centrada num dado: não é verdade que nas nossas sociedades tenha desaparecido o trabalho assalariado, com triunfo do trabalho autônomo e das camadas médias. Ao contrário, diz Salvadori, “houve uma polarização social e um aumento das desigualdades, justamente sob o impacto da tempestade financeira e liberista, hoje transformada em tsunami”. Uma dinâmica que os socialistas europeus não compreenderam, até o ponto de perder a percepção da realidade e da sua identidade. Vejamos como e por quê. (Bruno Gravagnuolo)

Professor Salvadori, “dobre de finados para o socialismo europeu”, é o que dizem mais ou menos todos, progressistas moderados à frente. De fato, o socialismo está se extinguindo, como anuncia o Herald Tribune?

Durante todo o século XX ressoou este dobre para esta ou aquela força política, só para depois assistirmos a renascimentos imprevistos. A condição do socialismo europeu é certamente alarmante, mas não sabemos se estamos em fase terminal. Também o liberismo foi dado por morto e, no entanto, retorna triunfante. O SPD e o PSF hoje estão nas cordas? É verdade, mas já se iniciou uma forte discussão interna. Seja como for, na Alemanha há 23% do SPD e 12,7% do Linke: sintoma de uma forte demanda de esquerda. Portanto, é preciso cautela, porque os números dizem que existe base político-social para uma oposição programática.

Michele Salvati escreveu: houve a maré neoliberal e a social-democracia devia seguir atrás, mas virão tempos melhores. Está de acordo?

Mas, então, por que com o neoliberalismo em crise não houve uma recuperação das forças socialistas? Na realidade, vimos o contrário. Houve uma redução do papel socialista. O SPD, que fez o jogo na frente moderada, perdeu, enquanto o Linke, que foi radical, teve sucesso. Não, não acredito que os socialistas tivessem forçosamente de seguir a maré neoliberal. Ao contrário, creio que precisamente esta escolha moderada, na Europa, tenha levado à derrota, à falta de vigor. Porque, se se trata de bancar os “centristas”, outros partidos sabem fazer isso muito melhor. Blair transformou Londres na segunda Wall Street das oligarquias financeiras, iludindo-se ao pensar que expandia o bem-estar. Isso não ocorreu, e hoje o Labour está esgotado. Os socialistas “se confundiram” com os conservadores em terrenos cruciais, a começar pela desregulamentação financeira, denunciada por Obama. Daí se seguiu uma perda de identidade, uma perda da razão de ser.

E o paradoxo é que a direita assume como suas certas razões de esquerda, a começar pelo governo da economia...

Óbvio. As forças da centro-direita acolheram imediatamente a intervenção pública, apesar das maldições do passado, e a propósito do dobre de finados... Nenhum embaraço para salvar os bancos com regras anteriormente consideradas como mortíferas. Ora, é evidente que sem capturar o centro não se vence eleição. Mas uma coisa é almejar a conquista desta área social, outra é reduzir-se a ela, perseguindo o fantasma de uma camada que não há mais e que se empobreceu. Diante disso, diante da finança triunfante, a esquerda não soube ler as “implicações do processo”, renunciando assim a um programa que partisse dos verdadeiros interesses: camada média ameaçada, precariedade, desempregados e trabalho assalariado ainda majoritário. Vigorou uma análise falsa, que não compreendeu as desigualdades crescentes de renda e enfatizou a realidade — muitas vezes miserável — do próprio trabalho autônomo, amplamente minoritário. Conclusão: a esquerda deve mobilizar e reorganizar todas estas realidades. Certamente, não segundo uma antiquada visão classista e polarizadora que não se sustenta mais — a “centralidade operária” —, mas com base numa geografia social aderente à realidade. O que significa que os direitos sociais — a outra perna da democracia, ao lado dos direitos políticos — devem se tornar estratégicos para um programa de governo.

Portanto, governo da economia, direitos sociais, redistribuição, qualidade do desenvolvimento e democracia industrial devem voltar a ser cruciais para os socialistas?

Naturalmente. Sem estas razões, a distância das social-democracias em relação às suas bases e às bases sociais mais amplas — atormentadas por desigualdades crescentes — está destinada a se aprofundar. Até o cancelamento do seu papel.

Existe uma lição a ser extraída também para a Itália, onde o PD parece marcado por uma discussão precisamente sobre identidade e representação?

Estou convencido de que o PD carece de identidade sobre questões de fundo. Existem posições opostas e ameaças de secessão de uma parte e de outra. Bem ou mal, está em curso um congresso, chamado a dar uma resposta. Pierluigi Bersani [um dos candidatos à direção máxima do partido] disse com clareza duas coisas: o PD será um partido novo, que deve manter a própria tradição de esquerda. E outra: a categoria de esquerda não pode ser excluída da identidade do PD. Mas sabemos quantos no partido recusam uma vocação de esquerda...

Manter esta identidade é uma contribuição para a crise italiana e também para a crise das social-democracias?

Penso claramente que sim. Até mesmo em virtude de uma consideração mais geral, ampliada ao contexto internacional maior. Sem dúvida alguma, as centro-direitas europeias são mais modernas e dignas do que a italiana. Mas devemos nos perguntar. Se os partidos social-democratas são agora algo residual, de fato a centro-direita será capaz de oferecer uma resposta aos problemas presentes? As direitas terão seriamente um programa expansivo, capaz de absorver e incluir as demandas que provêm de uma sociedade com forte desemprego, de um setor médio tão empobrecido e tão necessitado de segurança? Diante das emergências presentes, existe na centro-direita um paradigma de valores, e de cultura econômica e política, estabilizador, capaz de fazer com que a esquerda morra?

Francamente, este perigo existe, pelo menos no plano demagógico imediato, e até o ponto de fazer ruir a esquerda. Não lhe parece?

A centro-direita poderia ter êxito, mas só com a condição de saber responder a todos aqueles problemas que sempre constituíram a gramática da esquerda: desde a imigração, o trabalho, a precariedade, até a segurança social e o ambiente. Mas não acredito que esteja em condições de fazer isso, chegando a destruir as bases sociais da esquerda.

Insisto, o risco é concreto, e os sinais podem ser vistos na Europa.

De acordo, não seria a primeira vez que a esquerda é posta de joelhos. E no entanto não morreu, e renasceu. Veremos o rumo das coisas. No passado se dizia: é o século do fascismo, é o século do liberalismo, é o século da social-democracia, do comunismo. Não creio que este seja o século do conservadorismo e da centro-direita. Acima de tudo, existem no mundo realidades progressistas e de esquerda no governo, na Índia, na América Latina, e existe Obama. O que aumenta o paradoxo europeu, da direita vitoriosa apesar da crise liberista. Mas aumenta também a esperança.

Lula é o cara

Ancelmo Gois
DEU EM O GLOBO

De um motorista de táxi em Brasília, explicando a uma funcionária da Secretaria de Comércio Exterior o sucesso de Lula na escolha do Rio como sede das Olimpíadas em 2016:

- Esse vende até manga podre.

É só o que falta

Ricardo Noblat
DEU EM O GLOBO



" Dilma será presidente do Brasil. Sei que vão me acusar de ingerência, meu coraçãozinho é que está falando" (Hugo Chávez)

A coleção de êxitos de Lula é notável. A economia cresceu com distribuição de renda e atravessou veloz a crise financeira mundial. O governo balançou com o escândalo do mensalão, mas não caiu e hoje é sustentado por 14 partidos. O País nunca teve presidente tão popular. A Copa do Mundo de 2014 é nossa e os Jogos Olímpicos de 2016 também.

O que falta para Lula proclamar do alto de sua reconhecida modéstia que realizou a obra perfeita? Eleger seu sucessor. Jamais na história democrática do País um presidente da República passou a faixa para quem escolheu. Itamar Franco passou para Fernando Henrique, seu ex-ministro das Relações Exteriores e da Fazenda. Mas quem elegeu Fernando Henrique não foi Itamar – foi o Plano Real que acabou com a inflação.

Em visita ao Maranhão, o ex-ministro José Dirceu, articulador “ad hoc” da candidatura da ministra Dilma Rousseff a presidente, soprou para colegas a fórmula que imagina capaz de garantir a eleição dela. Primeiro há que se comparar à exaustão as realizações do atual governo com as do seu antecessor. Segundo há que se massificar a informação de que Dilma é a candidata de Lula. Cerca de 40% dos brasileiros ainda ignoram isso.

E o mais importante: a certa altura da campanha, Lula haverá de se afastar das tarefas prosaicas da administração para se dedicar com exclusividade a percorrer o País carregando Dilma debaixo do braço. Dilma não tem e dificilmente terá votos próprios. Com a entrada em cena da senadora Marina Silva (PV-AC), perdeu a condição de ser a única mulher candidata a presidente. Vencerá se o eleitor se convencer de que ela é Lula de saias.

Tanto melhor se o eleitor acreditar que Dilma na verdade é candidata a um mandato tampão. Uma vez que se eleja, cederá o lugar depois de quatro anos a quem não pôde concorrer ao terceiro mandato consecutivo. Lula costuma dizer que será mais fácil tentar voltar em 2014 no caso de derrota de Dilma em 2010. Bobagem! Na prática, o mandato de presidente, governador e prefeito é de oito anos – com uma confirmação pelo meio.

Enfraquecido ao final do seu governo, Fernando Henrique sabia que seu candidato estava condenado à derrota. De sua parte, José Serra sabia que chegara a hora de Lula. Nem Fernando Henrique suou a camisa para eleger Serra, nem Serra quis que ele suasse. Preferiu manter distância. Jogou na mesa uma carta implausível, a única que tinha: apresentar-se como o candidato da mudança, talvez mais confiável do que Lula. Não deu certo.

A ninguém Fernando Henrique confessou que apostava no insucesso de Lula para subir outra vez a rampa do Palácio do Planalto. Mas não é de todo um disparate especular que ele apostava, sim. Lula poderia ter cedido à tentação de mexer com a política econômica. Havia conselheiros de sobra ao seu redor sugerindo que mexesse. Era desprovido de experiência para governar – Dilma não é. E foi atropelado por mensaleiros e aloprados.

Fernando Henrique é um retrato na parede. Lula recusa tal destino. Desistiu de brigar pelo terceiro mandato consecutivo porque a idéia pegou mal no seu círculo íntimo de assessores e aliados. Contudo, a candidatura de Dilma foi concebida por ele para ocupar espaço à espera da ocasião ideal do lançamento de algo parecido com o movimento “queremista” que devolveu Getúlio Vargas ao poder em 1950. Mas aí veio a crise dos bancos.

A crise despachou o “queremismo” para o freezer. Enquanto espera que Dilma volte a subir nas pesquisas de intenção de voto, Lula deixa Ciro Gomes (PSB-CE) brincar de candidato a presidente. Ciro só será candidato para valer se abrir uma razoável vantagem sobre Dilma. Então Lula poderá até trocar Dilma por ele. Do contrário, acabará forçado a abandonar o páreo e a disputar o governo de São Paulo se quiser.

Falta cacife político e financeiro a Ciro para enfrentar Dilma contra a vontade de Lula e do seu próprio partido.

Surto populista

Marcelo de Paiva Abreu
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Uma racionalização plausível da estratégia do presidente Lula até meados do segundo turno poderia dar destaque à conciliação de uma política macroeconômica prudente - isto é, ao arrepio das parvoíces programáticas do PT na área econômica - com uma política externa "progressista", com laivos terceiro-mundistas.

É claro que o presidente, mestre inconteste nas melhores técnicas do dividir para reinar, tratou de criar mecanismos que tornassem esse projeto estratégico submisso ao seu controle. Na área econômica houve cuidadosa administração política de controlado apedrejamento por fogo amigo da "ortodoxia", entrincheirada inicialmente no Ministério da Fazenda e que tem hoje o Banco Central como seu último reduto.

Em relação à política externa, consagrou-se um formato de responsabilidade coletiva que solapou a autoridade do Ministério das Relações Exteriores. Enquanto o Itamaraty, fazendo uso da propensão presidencial ao protagonismo, trabalhou para consolidar o caminho do Brasil rumo a um recauchutado Conselho de Segurança das Nações Unidas, a política regional sofreu forte influência direta do Palácio do Planalto. A relação especial com Cuba, sustentada por afinidades ideológicas do PT com o regime, transformou-se em relação especial com a Venezuela de Chávez e em aproximação com os dirigentes populistas de esquerda vitoriosos em diversas eleições sul-americanas após 2002.

Com base no sucesso econômico propiciado pela política econômica prudente, que viabilizou a volta ao crescimento com taxas respeitáveis e, depois, pela capacidade de resistir à crise mundial, fortaleceram-se a posição internacional do Brasil e o prestígio presidencial.

Com o benefício da visão retrospectiva, essa posição de relativo equilíbrio não poderia ser sustentada. Os fatores de perturbação essenciais têm que ver com a aproximação das eleições presidenciais de 2010. Sucessivos escândalos inviabilizaram as candidaturas presidenciais de José Dirceu e de Antonio Palocci. O PT - o velho e verdadeiro PT - foi implodido. Longe de ser o partido que, por seu exemplo, poderia continuar a estimular a renovação das tradições partidárias na política brasileira, o partido revelou ser similar, se não pior, que os outros. E um anjo pecador sempre parece mais pecador do que pecadores de sempre.

Num quadro em que se impôs como crucial o objetivo de continuação - e, se possível, perpetuação - no poder, Lula, o construtor institucional do PT, desapareceu de cena, dando lugar ao Lula populista. Na falta de candidatos viáveis nas fileiras partidárias, o dedazo presidencial apontou para Dilma Rousseff, nome com tradição no PDT, mas sem tradição no PT, sem experiência eleitoral, com estilo abrasivo e reputação de operosidade e pertinácia.

A essa altura não há mais margem para dúvidas: a candidatura é politicamente pesada. Sua decolagem tem requerido ingredientes populistas que passam pela redefinição de diversas políticas que marcaram a fase mais prudente dos mandatos de Lula. No terreno macroeconômico, o que se vê é o crescimento explosivo dos gastos do governo, com a progressiva erosão do compromisso com metas de gastos que foram essenciais para recuperar a credibilidade da política macroeconômica. Na discussão do pré-sal, ministros, presidente e candidata presidencial têm explicitado posições que revelam falta de compromisso com as reformas que viabilizaram o relançamento do Brasil como país capaz de crescer de forma sustentada. Pior: há a clara intenção de maximizar o custo de reversão futura dos retrocessos de hoje.

Em meio ao rolo compressor da propaganda oficial prospera a confusão entre nacionalismo, estatismo e patriotismo. Ressurgem dois pilares semipétreos da política econômica pré anos 90: proteção quase absoluta do mercado brasileiro e hipertrofia da participação do Estado na economia. O papel reservado à Petrobrás na exploração do pré-sal, em meio a defesas apaixonadas do nacionalismo, revela visão acrítica quanto ao desempenho do Estado empreendedor no passado, além de desprezo pelos mais comezinhos critérios de equidade na distribuição de benesses a grupos especiais, em detrimento do interesse coletivo. É óbvio que compras públicas podem ter papel relevante na política industrial. Mas a justificativa de decisões em relação a compras de equipamentos petrolíferos deixa dúvidas quanto à memória de seus formuladores. Será tão curta que não há lições a tirar da experiência passada com reservas de mercado?

Em clima de uso indevido da máquina pública, a opção pela rota populista agrava também os riscos gerados por política externa crescentemente imprudente, em sintonia também com as exigências de radicalização impostas pela agenda eleitoral. Os episódios recentes em Honduras são constrangedores. Qualquer que seja o resultado da crise deve ficar devidamente registrada a posição vulnerável em que se colocou o Brasil em meio a uma briga de golpistas. Meias palavras não resolvem: trata-se de diplomacia inepta em relação a tema de interesse subsidiário para o Brasil. Hugo Chávez viu coroada de sucesso a sua estratégia de consolidar a posição do Brasil como linha auxiliar do chavismo. Os tartamudeios do governo brasileiro em defesa da democracia soam incoerentes. A quem engana a sinceridade na defesa veemente de princípios democráticos quando entremeada com abraços a ditadores sinistros como Mugabe ou Khadafi, e endosso irrestrito a eleições duvidosas no Irã?

Está só começando. É duro fazer um poste decolar.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

Autoritarismo Eleitoral

Lourdes Sola
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Nos últimos anos vários governos latino-americanos eleitos democraticamente têm recorrido a fórmulas antidemocráticas com o objetivo de controlar a arena política e, assim, minimizar a concorrência eleitoral preexistente. Buscam livrar-se de um dos atributos da democracia eleitoral que lhes garantiram o acesso ao poder. É justamente esse impulso regressivo que chama a atenção como uma das características dos experimentos de "governo popular" em curso na Venezuela, na Bolívia, no Equador e na Nicarágua. Insisto: uma das marcas. Pois esse caráter regressivo se combina com o componente popular, inaugurando uma lógica e uma dinâmica política novas, das quais as noções de "populismo" ou "neopopulismo" não dão conta. Ao cientista social cumpre observar o fenômeno novo sem se esquivar da tarefa de nomeá-lo adequadamente, recorrendo a uma inovação conceitual, se necessário. Pode ser útil para refletir sobre as fórmulas de terapia preventiva mais adequadas.

Esses governos governam sob a égide de duas contradições que convém analisar melhor, pois delas derivam sua força e suas fraquezas. A primeira diz respeito à atitude para com a concorrência eleitoral: por um lado, são levados a jogar o jogo de eleições multipartidárias regulares, minimamente competitivas, para continuarem se legitimando - é que o otimismo democrático que varreu a América Latina desde 1980 e o resto do mundo a partir dos anos 90 fixou a preferência popular por eleições como o principal critério de legitimação para acesso ao Poder Executivo e ao Legislativo; por outro, onde há concorrência e, portanto, oportunidade de contestação, eleva-se o teor de incerteza quanto aos resultados das urnas. A contradição incômoda é resolvida pelo controle da arena eleitoral, que pode assumir várias formas: cerceamento dos direitos políticos e das liberdades civis, restrições aos meios de comunicação de massa e de financiamento quando em mãos oposicionistas, regras eleitorais discriminatórias.

Acabo de listar as características típicas de um novo animal: o autoritarismo eleitoral. É uma variedade de regimes cujo traço distintivo é uma profunda ambiguidade institucional. Têm eleições multipartidárias, socialmente inclusivas, porque baseadas no sufrágio universal, e são minimamente pluralistas, pois a oposição tem direito a concorrer e, embora nunca ganhe, obtém votos e cadeiras no Congresso. O autoritarismo eleitoral, em suma, caracteriza-se por fazer de eleições competitivas um instrumento de poder autoritário, não de democracia. A lista cobre países da antiga União Soviética, inclusive a Rússia; do Oriente Médio e do Norte da África, como Egito, Argélia e Tunísia; alguns do Leste e do Sul da Ásia, como Cingapura, Camboja e Malásia; além de vários da África subsaariana.

Os experimentos latino-americanos de autoritarismo eleitoral são uma espécie singular desse gênero porque resultam de uma dinâmica política regressiva - ao contrário dos demais, que em sua grande maioria nunca experimentaram instituições representativas e/ou sistemas de contrapesos entre Poderes. Estes têm matrizes autoritárias e são experimentos de liberalização política embrionários.

Uma segunda contradição, remete ao controle da arena política, graças à instrumentalização da participação popular. Por um lado, o recurso a eleições competitivas implica o reconhecimento institucional de um princípio de cepa liberal: a "vontade do povo soberano". Por outro, implica conceder ao eleitor e às oposições os recursos institucionais - e os valores - que os capacitam a contestar as eleições e o próprio regime. Com isso a coalizão dominante corre riscos de se deslegitimar, vendo-se obrigada a optar entre duas alternativas indigestas: arrochar o controle da arena política ou ceder mais espaço às oposições.

Essa caracterização vale para o gênero, mas a espécie dominante na nossa região se distingue pelo fato de que os governos relevantes têm (ou tiveram) raízes populares. É essa condição que lhes serve de incentivo para erigir a parcela majoritária do eleitorado em "vontade do povo soberano". Daí o impulso revisionista (das Constituições) e a vocação para legitimar-se por meio de plebiscitos. O problema é que, em condições mínimas de concorrência eleitoral e de liberdade de informação, periga que a "vontade do povo soberano" se revele volátil e, além disso, se apresente dividida. Por isso o controle da arena política passa necessariamente pelas restrições à liberdade de imprensa e pela tendência ao monopólio da informação. Deve-se isso a dois conjuntos de problemas, inerentes à democracia de massa e que a liberdade de imprensa contribui para atenuar - a par de instituições que obrigam os governantes a prestar contas. O primeiro é que a operação ideológica pela qual a vontade do eleitorado é convertida em "vontade do povo soberano" passa ao largo do xis da questão: quanto o eleitorado e a opinião pública sabem ou podem saber dos assuntos de interesse público? Mas há um segundo problema que se torna agudo nos países periféricos. Nas democracias de massa há uma enorme defasagem entre a democratização das informações, às quais a população tem acesso via rádio, TV, jornais, internet, e a capacidade que a população tem de elaborar as informações. No curto prazo, é à imprensa que cabe reduzir o espaço dessa defasagem, sempre e quando apresenta e divulga as formas possíveis e alternativas de elaboração da mesma informação por diferentes atores políticos. Nessas circunstâncias exerce um papel pedagógico.

A fórmula complementar para minimizar a defasagem, no longo prazo, é apostar na educação de qualidade.

Lourdes Sola, professora da USP, ex-presidente da Associação Internacional de Ciência Política, é diretora do Global Development Network, da International Institute for Democracy e do Conselho Internacional de Ciências Sociais

Desigualdade, polarização e coalizões

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Os novos dados da Pnad, com o que contêm de boas e más notícias quanto a nossa desigualdade social, permitem retomar algumas questões gerais a que o assunto remete. A reflexão sociológica sobre os desdobramentos políticos da desigualdade há muito explora (nem sempre com pleno reconhecimento disso) certas intuições que se ligavam, no marxismo clássico, com a ideia de polarização social. Basicamente, a de que a sociedade polarizada, em particular na situação "pré-revolucionária" que seria supostamente produzida pelos automatismos da dinâmica do capitalismo, tenderia a reduzir-se ao enfrentamento unidimensional ao longo de uma grande linha de clivagem. A polarização redundaria em que as posições definidas em termos ocupacionais (trabalhadores e empresários) estariam fortemente correlacionadas com o grau de acesso a recursos de qualquer natureza, incluindo os recursos políticos e os de ordem intelectual - não obstante a simplificação da estrutura de hostilidades e solidariedades resultante ajudar, em conjunto com as condições estruturais modificadas, a produzir o caráter pré-revolucionário ao facilitar a eventual "tomada de consciência" e a mobilização política dos proletários.

A sociologia acadêmica, olhando como que a outra face da mesma medalha, tendeu a ressaltar não só a negação da polarização representada pela emergência das classes médias, mas também o fato de que essa emergência se associava com o surgimento e a relevância de múltiplas dimensões de estratificação que operariam, em maior ou menor grau, com independência umas das outras: ocupação, nível educacional e de renda etc. Se isso já diversifica os fatores relevantes de identificação e lealdade e mitiga o potencial de enfrentamento e conflito, a multidimensionalidade e seus efeitos são intensificados, na complexidade das sociedades contemporâneas, com a operação, ao mesmo tempo, da diversidade de fatores como raça, etnia e religião, cuja natureza adscritícia (ou seja, o fato de se referirem a condições dadas amplamente pelo nascimento e tipicamente menos passíveis de mudança por decisões ou ações do próprio indivíduo) tende a torná-los singularmente importantes na conformação da identidade pessoal.

Estudos recentes das ramificações políticas da multidimensionalidade têm destacado seus efeitos sobre a política de coalizões, com ênfase sobre as consequências para a redistribuição econômica no âmbito das democracias. Como seria de esperar, maior multidimensionalidade abre espaço a um jogo mais complexo de formação de coalizões, e o que temos visto na articulação, nos Estados Unidos, da "guerra cultural" com religiosidade, por um lado, e raça, por outro, ilustra a proposição. De toda maneira, no ensaio de 2006 que aqui tenho citado ("Democracia e Capitalismo"), T. Iversen salienta, com referência a trabalhos de J. Roemer, D. Austen-Smith e A. Przeworski, que os países caracterizados pela relevância de um número maior de dimensões tendem a ter menor redistribuição e que "as políticas de esquerda se tornam menos proeminentes à medida que a competição partidária se mostra mais influenciada por questões não econômicas". Isso pode ser ligado, ainda, à tese, proposta especialmente por R. Inglehart, de que valores "pós-materialistas" (envolvendo participação política significativa, ambientalismo etc.) viriam a sobrepujar, em condições de maior prosperidade econômica, os valores "materialistas" a que a redistribuição se refere; mas a tese foi devastadoramente criticada em seus supostos e metodologia mesmo antes de que a crise atual viesse comprometer de modo mais radical seu interesse.

Esses temas levam a indagações quanto ao Brasil. A incipiente redistribuição que nossos dados recentes revelam sugere a pergunta de como foi possível preservar a desigualdade e prescindir de qualquer redistribuição por tanto tempo - sobretudo em circunstâncias de notável ausência de um campo propício a coalizões multidimensionais. A resposta envolve o reconhecimento de que a desigualdade brasileira, com sua base na duradoura estrutura de castas do escravismo, foi tudo menos "pré-revolucionária", no sentido marxista da polarização propícia à mobilização intelectual e política, onde a simplificação do quadro de lealdades e hostilidades supõe justamente um sentimento de igualdade e dignidade básicas que se transforma em sentimento de injustiça diante da experiência objetiva de desigualdade persistente. A expansão do sufrágio e da participação político-eleitoral, cada vez mais impossível de evitar nas condições do mundo contemporâneo, não pode senão mudar esse quadro. Ao dar um decisivo recurso de poder às maiorias destituídas, ela acaba por corroborar, mesmo no quadro de precário acesso a bens educacionais e intelectuais e de simplismos "populistas", a propensão redistributiva da democracia que outros estudos recentes têm destacado.

Outro aspecto é o das relações entre raça e redistribuição. Apesar da incipiente relevância política da religião, em razão da difusão entre nós de certas formas de protestantismo, o fator raça é o único fator não econômico em torno do qual temos tido alguma movimentação realmente significativa no plano político-administrativo. À parte o debate sobre como situar-se, de um ponto de vista valorativo orientado pelo ideal democrático, perante a questão de raça versus critérios sociais uma vez que se concorde quanto à necessidade de ação do Estado contra a desigualdade, cabe ponderar se a ênfase na raça, à luz do sugerido acima, não poderá vir a representar um obstáculo à eficácia geral da política de redistribuição - e com isso afetar negativamente, talvez, a própria promoção da igualdade em termos raciais.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

É mais que saúde ou feiura

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Tanto no Serra feio de Ciro quanto na belezura da Dilma pós-doença, os sobressignificados políticos ultrapassam a vã fotografia

- A inclusão da feiura na agenda negativa da campanha para as eleições presidenciais de 2010, pelo pré-candidato Ciro Gomes, é dos fatos mais interessantes e mais significativos do cenário de nossa decadência política. Com a contrapartida da beleza, como indício de competência, entrou também, nestes dias, o item da saúde no rol dos atributos meritórios da política como contrapartida negativa da doença. A pré-candidata Dilma Rousseff informou que está curada do câncer diagnosticado há algum tempo. Numa das fotografias do noticiário, a poderosa "mãe do PAC" apresenta-se sorridente e saudável. A foto contém mais do que o indício visual dessa cura: a ministra curou-se, também, da carranca de guerrilheira que ameaçava suas chances de chegar à Presidência. Tanto na feiura apontada em José Serra pelo pré-candidato cearense quanto na belezura ostentada pela gaúcha Dilma Rousseff, temos as indicações de que o retrato será o grande candidato nas eleições do ano que vem.

A ocultação de estigmas físicos e de caráter de políticos e candidatos não é novidade. A fotografia atenuou a paraplegia de Franklin D. Roosevelt num momento em que sua plena visibilidade teria sido politicamente desastrosa para os EUA. Antes disso, o retrato a óleo já cumpria essa função na política. O jovem d. Pedro II, quando viu a noiva desembarcar do navio que a trouxera da Sicília, chorou e comentou com quem estava ao seu lado: não sei se vou conseguir. Ele havia sido enganado por um retrato, para que a monarquia tivesse filhos e herdeiro. A fotografia tornou-se instrumento poderoso do caráter cada vez mais teatral da política. Mas, ela é polissêmica, revestida de múltiplos e contraditórios significados.

Em fotografia há o que se chama de aura, o sobressignificado que propõe a interpretação da imagem, particularmente do retrato, a partir de detalhes circunstanciais e até mesmo não visuais. Gandhi era feio, muito magro e meio gambeta. Em seus retratos ninguém vê isso, mas vê a imensa beleza de sua figura humana devotada à paz, ao próximo e à emancipação política da Índia. A foto que Margaret Bourke-White dele fez, em 1946, esquálido e careca, fiando, ao lado da roca que se tornaria o símbolo da Índia independente, certamente não o tornaria uma figura do apreço do candidato Ciro Gomes. O Getúlio Vargas do Estado Novo e da ditadura tinha sua fotografia exibida em todas as repartições públicas do País, por meio dela anunciada a onipresença do chefe da Nação. Seu retrato o apresentava revestido da aura do poder. Quem via o retrato não via o homem baixo, gordo e ditatorial, via o poder. A fotografia oficial procurava forjar uma consciência popular da nacionalidade que responde até hoje por uma cultura do retrato que deforma nossa consciência republicana.

Há uma dialética na polissemia do retrato, tanto no real, como o de Dilma, quanto no fictício, como o que de Serra fez Ciro Gomes. No inevitável contraponto de Lula, na moldura do poder, Dilma parece pequena e descabida. A doença é o pretexto imaginário dessa imperfeição. Ciro, por outro lado, ao pretender criar uma imagem, criou um espelho. Fez com que se notasse que tem "cara de chupa-ovo", como ouvi de alguém, pelos gestos faciais que faz quando fala, a boca tendendo para a forma da dos que têm o hábito de chupar diretamente da casca o ovo cru, fortificante e afrodisíaco popular dos que estão em convalescença. É nesse jogo de contrários que o retrato se compõe com os parâmetros de sua interpretação, como uma coisa só. Os dois casos são expressões do efeito bumerangue da comunicação imperfeita, porque ocultadora e enganadora, as imperfeições dos bastidores invadindo o palco da encenação política.

Há aí os circunstantes visíveis e os circunstantes invisíveis. Na leitura do retrato de Dilma o que vai dizer se ela está bem de saúde política é a saúde do vice-presidente José Alencar, pois a saúde que importa é a saúde da instituição. Na subliminaridade da comunicação, Alencar é hoje o que Dilma corre o risco de ser amanhã. As constantes viagens de Lula ao exterior dão a Alencar a visibilidade de um homem frequentemente hospitalizado, a República sob o risco de estar sendo governada por alguém diminuído em sua capacidade de decidir. No otimista retrato de Dilma, o que se vê é a doença de Alencar. Mas se vê, também, a agonia de Tancredo, o bloqueio da esperança na sucessão sem carisma.

Na maldade do retrato que Ciro Gomes criou para destroçar o corpo e a alma do adversário, como nos tempos da Inquisição, já operam as circunstâncias e os circunstantes inevitáveis na rede de condutas que trazem à memória do povo outras maldades. De um lado, calou fundo sua teima no desvio das águas do Rio São Francisco para perenizar rios temporários do Nordeste seco: tirar o sangue de um moribundo para supostamente dar vida aos mortos. De outro lado, a vítima poderosamente simbólica dessa truculência política, d. Cappio, o paulista que é bispo de Barra, na Bahia, com sua greve de fome contra a violência ambiental e social, fez a decisão de Ciro e do governo Lula incidir, violando-o, sobre o sagrado tema da vida da teologia católica, revelou na decisão política a feiura de um pecado.

Na polissemia das imagens, reais ou imaginadas é necessário levar em conta as funções desconstrutoras do inesperado e do indesejável. Uma ação judicial contra este jornal proíbe no noticiário sobre atos que têm merecido o repúdio da opinião pública a menção ao nome do filho do presidente do Senado. Forma de dar um retoque cidadão num retrato que é expressão típico-ideal da dominação patrimonial. A trama oligárquica desses arcaísmos do poder aparece justamente numa foto em que estão juntos os vários que compõem essa forma anômala da concepção do mandato na nossa opção republicana, até mesmo o juiz. Quanto mais a censura permanece, mais revela o caráter do censor, mais o censor nela se retrata. A República do retrato retocado expõe-se na corrosiva imagem invertida do negativo.

*Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, autor de Sociologia da Fotografia e da Imagem (Contexo, 2009)

Do quanto somos (im)perfeitos

Renato Lessa
DEU NA FOLHA DE S. PAULO /+MAIS


Desconfiança generalizada em relação a a outras pessoas contrasta com o elevado padrão moral assumido individualmente pelos brasileiros

A crer em números, parece ser mais seguro emprestar seu carro a um amigo filiado ao PMDB do que a outro pertencente às hostes petistas. Com efeito, 93% dos respondentes simpáticos ao PMDB acham moralmente errado avançar um sinal de trânsito (ou furar um semáforo, o que vem a ser mais ou menos a mesma coisa). O escore petista limita-se tão somente a magros e preocupantes 71%.

Já os apoiantes do PSDB são os mais tolerantes no que diz respeito a fornecer dados inverídicos para a Receita Federal. Isso a despeito -ou a propósito, sabe-se lá- da fúria fiscalista que o consulado de seu partido impôs ao país, no século passado.

Para além do pitoresco -inevitável em qualquer tentativa de varredura de atitudes e opiniões em meio à população heteróclita-, há matéria para reflexão. Para já, gostaria de considerar os seguintes aspectos: a definição conceitual de corrupção, os marcadores de ética e moralidade, os perfis de admissibilidade quanto a práticas ilícitas e a distinção entre autopercepção e avaliação pública.

O que é corrupção

Para 43% dos respondentes, o termo refere-se a um conjunto de práticas fixadas na esfera pública. Para 21%, corrupção está associada a comportamentos individuais -levar vantagem, traição, deslealdade etc.

Um terceiro conjunto, de 19%, associa o conceito a "roubar bens/dinheiro". Quando questionados a respeito de que instituições concentram com maior ênfase práticas corruptas, os respondentes elegem os poderes Executivo e Legislativo, federal e estaduais. Há, contudo, alguma estratificação nessas respostas.

Quanto maior a escolaridade, maior a desconfiança institucional: o Poder Executivo federal é mencionado negativamente por 83% dos que possuem educação fundamental; aqueles com educação superior marcam 92%. A mesma progressão pode ser encontrada de acordo com variações da renda familiar e de classificação econômica.

Variações à parte, é possível dizer que a desconfiança é pesada e generalizada. Os campeões da pureza, tais como a Igreja Católica, as Forças Armadas e a imprensa, são julgados como corruptos por, respectivamente, 53%, 54% e 61% do total dos entrevistados.

Não é pouco. Ainda que algum viés de classe se manifeste na avaliação dos poderes públicos, a concentração das desconfianças gerais nesse âmbito parece reeditar o clássico juízo de Louis-Antoine-Léon Saint-Just: "Qualquer povo tem apenas um inimigo poderoso, e este é o governo".

Marcadores de ética

Os entrevistados foram submetidos a uma bateria de 32 ações hipotéticas condenáveis [genéricas, acrescidas de cinco ações de políticos, policiais e outros servidores] para revelar a ordem de suas aversões éticas e morais. O resultado agregado da simulação é curioso: há um padrão generalizado de repulsa às ações hipotéticas, com algumas variações significativas.

Vejamos: os menos educados e mais pobres demonstram maior rigorismo moral em todos os quesitos. Trata-se de variação, contudo, que não agride a sensação de certa homogeneidade.

Há, ainda, marcadores mais finos. Dois deles podem ser licenciosamente designados como "kantianos". O resultado não é de todo mau, mas um tanto desequilibrado: 74% concordam com a ideia de obediência à lei como algo superior ao interesse privado (adeptos de um imperativo categórico moral).

Já apenas 56% concordam com o diagnóstico de que as pessoas estão dispostas a "tirar vantagens" umas das outras (ou tomá-las como meios, e não como fins). O desenho revela assimetria entre autoavaliação e avaliação dos outros como sujeitos morais. A destacar, ainda, os mais velhos e a malta da classe D/E como antropologicamente mais otimistas.

Admissibilidade

Os entrevistados foram convidados a revelar admissibilidade -ou não- com relação a "práticas ilegítimas". De forma mais agregada, 83% dos respondentes admitem tê-las cometido, em diferentes escalas de gravidade (leve, média e pesada).

Trata-se de aspecto importante, pois revela forte adesão ao "ilegítimo", a despeito das respostas anteriores dotadas de maior rigorismo. Nada de errado com isso: não somos animais socráticos, para os quais o conhecimento do bem conduz necessariamente a seu cumprimento.

No entanto, há distinções importantes: quanto maiores os níveis de educação e de renda familiar e mais elevada a classificação econômica, maior a admissibilidade. Para uma imagem mais nítida, 93% dos que possuem educação superior admitem envolvimento; o escore cai para 74% para os que têm educação fundamental.

E mais: se tomarmos o envolvimento com práticas ilegítimas pesadas, os mais educados ganham dos menos educados por uma razão de 2,5; os de maior renda ganham dos de menor renda com uma razão de 4 e os de classe A/B ganham dos D/E por uma razão de 6,5.

Há algo aqui, ressalvada a insinceridade dos mais pobres.

Talvez uma pálida reedição de velha máxima de San Tiago Dantas, para horror dos demofóbicos: o povo enquanto povo é melhor do que a elite enquanto elite.

Assimetrias do mundo

Não ficamos de todo "mal na fita". Mas há coisas curiosas. O alto padrão de admissibilidade evapora-se quando os entrevistados são submetidos a 39 perguntas sobre diversos ilícitos. O que emerge é uma população ordeira que, no pior dos casos, admite delitos leves: contrabando, compra de produtos piratas, colar em provas etc.

É espantoso ver que 94% dos respondentes jamais ofereceram dinheiro para agentes públicos que, para 87%, jamais o solicitaram. Assim como Nelson Rodrigues duvidava dos vídeos dos jogos, eu duvido desses números.

Mas, como disse, não ficamos mal na fita. Há uma generalizada e consistente presença de marcadores morais e éticos. A variabilidade não elimina a evidência de que o piso é alto. Cremos saber o que é a corrupção e onde e quando se apresenta. No mais, desconfiamos dos outros.

Com efeito, 82% das pessoas dizem não admitir mudar seu voto por dinheiro, embora 79% estejam certas de que os brasileiros em geral estão dispostos a fazê-lo. É evidente a assimetria, já antes apontada, entre autoavaliação ética e moral e expectativa do comportamento dos demais. Os "demais" -outras pessoas, o governo, os políticos etc.- parecem ser, afinal, sempre piores. Enfim, somos falíveis e desconfiados, pero no assustadores.

Renato Lessa é professor de teoria e filosofia política no Iuperj e na Universidade Federal Fluminense e diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje.

Eleição expõe crise do socialismo europeu

Steven Erlanger*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO (4/10/2009)

Um fantasma assombra a Europa - o espectro do lento colapso do socialismo. Mesmo em meio a um dos maiores desafios para o capitalismo nos últimos 75 anos, que envolve uma crise profunda do sistema financeiro decorrente de uma "exuberância irracional", da cobiça e da debilidade dos sistemas reguladores, os partidos socialistas da Europa e seus primos de esquerda não encontraram uma resposta convincente e tampouco tiraram proveito da debilidade da direita.

Os eleitores alemães derrotaram o Partido Social-Democrata (SPD), dando-lhe apenas 23% dos votos, o pior desempenho desde a 2ª Guerra. E puniram também os candidatos esquerdistas nas eleições para o Parlamento Europeu, além de esmagarem os socialistas franceses em 2007. Nos países em que a esquerda se mantém no poder, como na Espanha e na Grã-Bretanha, ela sofre ataques constantes. Onde não está, como na França, Itália e agora Alemanha, está dividida e sem ação.

Alguns conservadores americanos demonizam o estímulo fiscal e a reforma do sistema de saúde do presidente americano, Barack Obama, como uma guinada perigosa para o socialismo de estilo europeu - mas é a direita europeia e não a esquerda que está usando sua agenda política.

Os partidos de centro-direita da Europa absorveram muitas ideias da esquerda: generosos benefícios no âmbito da previdência, estatização do sistema de saúde, rigorosas restrições às emissões de carbono e cessão parcial da soberania à União Europeia. Mas ganharam votos prometendo atuar de modo mais eficiente do que a esquerda, trabalhando para reduzir impostos, melhorar a regulação do setor financeiro e tratar do problema do aumento da população idosa. Os conservadores europeus, segundo Michel Winock, historiador do Instituto de Estudos Políticos de Paris, "adequaram-se à modernidade".

Quando o presidente francês, Nicolas Sarkozy, e sua colega Angela Merkel, da Alemanha, condenam os excessos do "modelo anglo-saxão" de capitalismo, louvando ao mesmo tempo o poder protetor do Estado, usam ideias socialistas que se tornaram tradicionais.

Em Portugal, os socialistas no governo reelegeram-se no domingo, mas perderam a maioria absoluta no Parlamento. Na Espanha, os socialistas ainda têm o mérito de terem se oposto à ditadura de Franco e à guerra no Iraque. Na Alemanha, a esquerda ampla, que inclui os verdes, tem uma maioria estrutural no Parlamento, mas os social-democratas, em crise pós-eleitoral, terão de considerar uma aliança com a esquerda intransigente, cujas raízes estão no antigo Partido Comunista da Alemanha Oriental.

O problema é, em parte, "o muro, (que continua) na cabeça" dos alemães. Enquanto os democratas-cristãos foram se deslocando sem problemas ao leste, os social-democratas do lado ocidental nunca se uniram aos comunistas. "As duas Alemanhas, uma socialista, outra comunista, nunca se fundiram", disse Giovanni Sartori, professor emérito da Universidade Columbia.

A situação na França é até pior para a esquerda. Ao ser questionado sobre se o partido poderia estar morrendo, Bernard-Henri Lévy, um socialista emblemático, respondeu: "Não, já morreu. Ninguém, ou quase ninguém ousa afirmá-lo. Mas todos, ou quase todos, estão conscientes disso." Embora seja acusado de exagerar, porque o partido é o maior na oposição e continua popular no governo local, suas palavras tiveram grande repercussão.

Os socialistas franceses venceram as eleições presidenciais pela última vez em 1988 e Ségolène Royal, candidata em 2007, perdeu a presidência para Sarkozy por 6,1%, uma ampla margem na época.

Na França, o Partido Socialista "está preso na armadilha de uma contradição sem esperanças", disse Tony Judt, da Universidade de Nova York. Ele adota uma plataforma radical que não pode pôr em prática e o resultado deixa espaço para os partidos à sua esquerda que chegam a obter 15% dos votos.

As lutas fratricidas na França e em outros países não contribuíram absolutamente para colocar os partidos socialistas em condições de responder à pergunta do momento: como preservar o Estado do bem-estar numa época de crescimento mais lento e de déficits cada vez maiores?

Judt argumenta que os socialistas europeus precisam de uma nova mensagem - como reformar o capitalismo "reconhecendo o caráter central dos interesses econômicos, mas tirando-o um pouco de sua posição dominante como único foco da política".

"Mas sem esse tipo de reforma, não acredito que o socialismo tenha futuro na Europa", diz Judt. "E, considerando que ele constitui uma parte central do consenso democrático europeu, esta é uma péssima notícia."

*Steven Erlanger é comentarista político

Consumo abrirá nova guerra cultural

David Brooks*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO (4/10/2009)

Alguns séculos atrás, historiadores criaram uma teoria clássica para explicar a ascensão e o declínio das nações. De acordo com ela, as grandes nações, no seu início, são tenazes e plenas de energia. A tenacidade e a energia produzem riqueza e poder. Riqueza e poder conduzem à opulência e luxo, que levam à decadência, corrupção e declínio.

"A natureza humana, sob nenhum aspecto dela, nunca consegue suportar a prosperidade", escreveu John Adams numa carta a Thomas Jefferson, alertando-o da chegada da corrupção no país. Mas, não obstante sua riqueza impressionante, os EUA no geral permaneceram imunes a esse ciclo. O padrão de vida americano ultrapassou o dos europeus em 1740. Mas nos EUA a riqueza não levou à indulgência e declínio.

Isso porque, apesar do notório materialismo do país, sempre existiu uma corrente se contrapondo aos sólidos valores econômicos. Os primeiros colonos do país acreditavam na moderação calvinista. Os pioneiros se candidataram voluntariamente à brutais privações nas suas jornadas para o Oeste. Os primeiros imigrantes trabalharam duro e com abnegação para seus filhos conseguirem ser bem sucedidos. O governo era limitado e não protegia as pessoas das consequências dos seus atos, obrigando com isso a disciplina e a moderação.

Quando os valores econômicos corroeram, o establishment no poder tentou restaurar o equilíbrio. Após a Era de Ouro, (entre 1870 e 1898, quando houve uma grande expansão econômica), Theodore Roosevelt determinou medidas severas contra a intemperança financeira. O establishment protestante tinha muitos defeitos, mas não era decadente, os velhos anglo-saxões protestantes eram avarentos, enviavam seus filhos para internatos de disciplina espartana e mantinham a sobriedade financeira.

Nos últimos anos, contudo, observou-se nitidamente um desgaste dos valores financeiros que ocorreu numa época em que os monitores culturais estavam ocupados com outras coisas. Estavam envolvidos numa guerra cultural envolvendo a oração nas escolas e a teoria evolucionista. Estavam debatendo sobre sexo e a separação entre Igreja e Estado, alheios completamente à ampla corrosão dos valores econômicos que ocorria sob os seus pés.

As evidências dessa mudança de valores estão por toda a parte. Alguns dos sinais eram aparentemente inócuos. Os Estados do país começaram a patrocinar as loterias: jogos de apostas aprovados pelo governo cujas vítimas eram sobretudo os pobres. Executivos e administradores de fundos hedge começaram a se gabar dos seus pacotes de compensação, que seriam considerados vergonhosos algumas décadas antes.

Outros sinais foram maiores. Como observou William Galston, da Brookings Institution, nas três décadas entre 1950 e 1980, o consumo pessoal ficou notavelmente estável, representando 62% do PIB do país. Nas três décadas seguintes ele disparou, atingindo 70% do PIB em 2008.

Durante esse período, a dívida explodiu. Em 1960, a dívida do cidadão americano representava 55% da renda nacional. Em 2007, ela subiu vertiginosamente para 133% da renda nacional.

Nos últimos cinco meses, os níveis da dívida começaram a baixar. Mas isso não quer dizer que retornamos aos padrões de contenção pessoal.

Simplesmente mudamos da dívida privada para a dívida pública. Em 2019, a dívida federal deve atingir o espantoso patamar de 82% do PIB (sem contar os custos da reforma da saúde). Nesse ano, só o pagamento dos juros da dívida federal custará US$ 803 bilhões.

Parecem números secos, de interesse especialmente dos estudiosos de orçamentos. Mas eles são o sinal exterior de uma mudança de valores. Se uma correção tiver de ser feita, ela exigirá um movimento cultural e moral. Nossas politicas culturais vigentes são organizadas em função de uma obsoleta guerra cultural, que colocou liberais seculares de um lado e conservadores religiosos do outro. Mas o deslize da moralidade econômica afligiu tanto conservadores como liberais.

Se houver um movimento para restaurar os valores econômicos, ele terá de transcender as taxonomias atuais. A meta será tornar os EUA novamente uma economia de produção e não uma economia de consumo. E ele terá de defender o autocontrole financeiro.

Esse movimento terá de enfrentar o que podemos chamar de ethos lobista, a convicção justificada de que, desde as associações de aposentados ao agronegócio, seus grupos têm direito a qualquer apropriação possível, independente do quão enorme será o gasto público.

E esse movimento terá de enfrentar também a demanda por impostos mais baixos e gastos mais altos. Uma cruzada pela moderação econômica terá de refazer as atuais alianças e adotar políticas como a implementação de um imposto sobre a energia e cortes de gastos, considerados politicamente impossíveis. O país realmente necessita de um renascimento moral.* David Brooks é analista político

Democracia ou não intervenção?

Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Os países desenvolvidos só realizaram sua transição para a democracia após completar sua revolução capitalista

SE A OEA (Organização dos Estados Americanos) lograr acordo que garanta o retorno de Manuel Zelaya à Presidência de Honduras e, em seguida, a realização de eleições, teremos afinal chegado a um bom resultado para a democracia na América Latina; não será, porém, um avanço no sentido da autonomia nacional dos países latino-americanos. Existe aqui um conflito entre o ideal de democracia e o de não intervenção. Os indivíduos precisam ser livres, e as nações, soberanas. Que fazer diante desse dilema? Ignorar um golpe antidemocrático, e, assim, desrespeitar o princípio da não intervenção, ou reafirmar esse princípio? Ter uma garantia contra o autoritarismo interno ou contra o imperialismo inerente aos países mais poderosos?

Em um tempo em que a democracia se tornou um valor universal, pode parecer evidente que sua garantia tem precedência sobre o princípio da soberania nacional. Não estou, entretanto, seguro a respeito dessa tese. Como também não deveria estar seguro o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que, agora, cobra o restabelecimento da democracia. Em 2002, ele sofreu um golpe com participação dos Estados Unidos no qual a justificativa era que seu governo não era democrático.

A política de exigência internacional de democracia nasceu de uma mudança da estratégia de poder dos Estados Unidos no início dos anos 1980 (governo Reagan), quando o país deixou de se associar a ditaduras militares na América Latina e passou a intervir de forma crescente na política interna de países de todo o mundo para que eles se democratizassem e conservassem a democracia. Não tenho simpatia por governos autoritários, mas só em países em que o desenvolvimento econômico e social já alcançou um nível razoável é possível afirmar que a democracia deve ser defendida como valor último, não negociável. Antes, é preciso estudar cada caso.

Para os Estados Unidos, a política de exigência de democracia tornou-se uma forma de assegurar que nos outros países os governos lhes sejam favoráveis do ponto de vista econômico e estratégico: que recebam seus investimentos e garantam seus direitos de propriedade intelectual sem restrições, e que, no jogo internacional, apoiem sua política internacional contrária a outros grandes países nacionalistas que consideram como adversários. Dado o fato de que nos países em desenvolvimento os governos eleitos tendem a representar elites econômicas e políticas associadas aos Estados Unidos, essa "política democrática" transformou-se em instrumento de sua dominação. Isso, entretanto, não os impediu de continuar a apoiar governos autoritários como os do Egito, da Jordânia e de Cingapura.

A democracia só se torna o melhor dos regimes políticos depois que o país realizou sua revolução capitalista e a apropriação do excedente econômico deixou de ser feita através do controle direto do Estado para ser feita através do lucro obtido no mercado competitivo.

Antes disso acontecer, a democracia será inviável ou então muito instável porque a oligarquia sabe que, se perder o poder nas eleições, poderá perder tudo. Provavelmente por isso, todos os países hoje desenvolvidos só realizaram sua transição para a democracia depois de terem completado sua revolução capitalista.

Honduras definitivamente não a completou. Mas o golpe nesse país não leva ao desenvolvimento econômico ou à revolução capitalista; apenas à maior dependência. Nesse caso, a política de exigência de democracia é a correta.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

Oposição está inibida, diz pesquisadora

Breno Costa
Da Agência Folha, em Belo Horizonte
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Cientista política da UFMG Magna Inácio afirma que a popularidade de Lula deixa PSDB e DEM sem uma agenda clara

Peso crescente do Executivo e coalizão heterogênea do governo Lula contribuíram para enfraquecer papel do Legislativo, diz estudiosa


A um ano da definição do sucessor de Luiz Inácio Lula da Silva, a oposição está inibida diante da popularidade do presidente, sem agenda clara, com dificuldades de agir de forma coesa e vendo um peso cada vez maior do Executivo na definição de prioridades do país. É dessa maneira que, segundo a cientista política Magna Maria Inácio, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), PSDB e DEM chegarão a 2010 com o objetivo de impedir Lula de eleger seu sucessor.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

FOLHA - A aprovação de Lula por dois terços dos brasileiros inibe a oposição?

MAGNA MARIA INÁCIO - Inibe, porque a própria oposição tem dificuldade de construir uma agenda alternativa. E atua muito mais no sentido de tentar modificar a agenda do presidente ou de trabalhar com obstrução, para forçar o governo a negociar sua agenda.

FOLHA - Em relação à era FHC, a oposição perdeu caráter ideológico? Tornou-se mais circunstancial?

INÁCIO - A oposição tem dificuldade de agir de forma coesa. Até porque tem um perfil diferente de quando o PT estava nesse campo. Era um comportamento mais fiscalizador, mas que, pelo próprio tamanho naquela época, influenciou pouco.

FOLHA - A coalizão do governo Lula influencia esse comportamento?

INÁCIO - Coalizões supermajoritárias reduzem muito a capacidade de atuação das oposições. No caso de FHC, era uma coalizão mais homogênea. Isso permitiu ao governo atuar no Legislativo com maior previsibilidade, embora houvesse deserções. No caso de Lula, a coalizão é muito heterogênea.

FOLHA - O governador Aécio Neves (PSDB-MG), pré-candidato tucano à Presidência, costuma elogiar o governo. Isso reflete maturidade ou receio de bater no presidente?

INÁCIO - Isso reflete a força do Executivo no Brasil. Temos um Executivo muito forte do ponto de vista de controle dos recursos públicos, de definição da agenda legislativa e do perfil de políticas públicas. Isso reduz o incentivo aos partidos a se definirem como oposição.

FOLHA - De que maneira a oposição poderia influir nessa agenda?

INÁCIO - O ponto importante, nos últimos tempos, tem sido a judicialização da política. O recurso ao Judiciário como forma de reverter decisões ou garantir direitos. São os próprios partidos que acionam [o Judiciário]. O espaço para a competição política, no que se refere à agenda do governo, deveria ser o Legislativo. O acionamento do Judiciário é uma transferência de poder, um processo difícil para as próprias oposições.

FOLHA - A linha que hoje separa a oposição da situação é mais tênue do que no governo passado?

INÁCIO - O que observamos foi um aumento no nível de indisciplina nos partidos de oposição, deputados votando com o governo. O fato de o governo ser mais heterogêneo facilita para atrair votos de quem está na oposição, mas que sofre influência governista. Há uma dificuldade cada vez maior de líderes fazerem com que seus legisladores se comportem efetivamente como oposição.

Constituição brasileira completa 21 anos

Isabel Braga
DEU EM O GLOBO

Proposta reduz número de artigos

BRASÍLIA. Promulgada há exatos 21 anos, em 5 de outubro de 1988, a Constituição brasileira já foi emendada 58 vezes e é criticada tanto por conservadores como liberais. Volta e meia, a proposta de uma revisão ressurge. E não deixam de aparecer sugestões polêmicas de reforma do texto. Atualmente, existem 1.565 emendas à Constituição tramitando no Congresso (1.158 na Câmara e 407 no Senado). Uma delas provoca arrepios nos constituintes de 1988: pretende um enxugamento radical, reduzindo de 250 para 61 artigos o texto atual.

A polêmica proposta está na CCJ da Câmara. Seu autor é o deputado Regis Oliveira (PSC-SP). O relator, o deputado baiano Sérgio Carneiro (PT), retirou do texto original o que considerava inconstitucional e decidiu não mexer, por exemplo, na separação dos poderes ou na estrutura do Estado. Para enxugar o texto, Carneiro propõe que se trate em lei, e não na Carta, de temas como garantias dos trabalhadores, índios, idosos, assistência social e divórcio.

Carneiro admite que a bancada do seu partido, o PT, é contra a ideia, mas pede que os colegas debatam o tema:

- Do jeito que vai, daqui a pouco a nossa Constituição terá 500 artigos.

O debate sobre o tamanho da Constituição remonta a 1988. Muitos constituintes mantêm a tese predominante à época de que a melhor maneira de garantir direitos é incluí-los na Carta. A ideia de enxugar o texto tem adeptos, mas encontra resistências e está parada na CCJ desde junho.

Brasil mantém 75º lugar no IDH

Antônio Gois
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O relatório da ONU mostra que o Brasil melhorou seu IDH (Índice de Desenvolvimento
Humano), mas manteve a mesma 75ª posição no ranking de nações elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. O índice variou de 0,808 para 0,813.
O avanço se deu principalmente pelo crescimento do PIB per capita. Educação e saúde também progrediram, mas em ritmo menor.

Aumento da renda eleva IDH do Brasil

País se manteve estável, no entanto, no ranking que compara o desenvolvimento humano de 182 nações, na 75ª posição

De 2006 para 2007, o IDH brasileiro passou de 0,808 para 0,813; valores acima de 0,800 representam "alto desenvolvimento humano"

Impulsionado mais uma vez pelo aumento na renda, o Brasil registrou uma melhora em seu IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), mas permaneceu estável no ranking de nações elaborado anualmente pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), na 75ª posição.

O IDH varia de 0 a 1 e tenta medir o desenvolvimento humano dos 182 países comparados a partir de três dimensões: saúde, educação e PIB per capita. De 2006 para 2007 (os relatórios sempre se referem a dois anos antes), o IDH brasileiro variou de 0,808 para 0,813. Um valor acima de 0,800 é considerado nível de alto desenvolvimento humano.Neste ano, o tema principal do relatório foi migração. Para facilitar as análises sobre este tópico, pela primeira vez, o Pnud separou nações com IDH acima de 0,900 num grupo considerado de muito alto desenvolvimento humano.

Fazem parte desta elite, que concentra a maioria dos imigrantes, 38 países, liderados por Noruega (0,971), Austrália (0,970) e Islândia (0,969).

Na base do ranking encontram-se Níger (0,340), Afeganistão (0,352) e Serra Leoa (0,365). O Pnud destaca que uma criança que nascer hoje em Níger terá expectativa de viver apenas até os 51 anos, enquanto uma norueguesa deverá chegar aos 81.

"Muitos países testemunharam retrocessos nas últimas décadas devido às retrações econômicas, crises induzidas por conflitos e epidemias de HIV", afirma a principal autora do relatório deste ano, Jeni Klugman.

Como os dados divulgados no relatório deste ano vão somente até 2007, ainda não é possível mensurar o impacto da crise econômica mundial, iniciada no fim do ano passado.

Alison Kennedy, chefe da equipe de estatística do IDH, no entanto, diz esperar que os efeitos não sejam tão grandes: "O PIB per capita de muitos países pode ter sido bastante afetado, mas os indicadores de saúde e educação não reagem tão rapidamente a crises, o que poderá fazer com que a oscilação não seja tão significativa."

Brasil

Os indicadores brasileiros no IDH serão detalhados hoje pelo escritório do Pnud no país, mas, na comparação com o relatório de 2008, é possível verificar que o avanço se deu principalmente por causa do PIB per capita.

Educação e saúde também melhoraram, mas em ritmo menor, já que o analfabetismo adulto tem caído pouco no país e a expectativa de vida ao nascer (único componente do índice de saúde) não costuma sofrer oscilações bruscas de um ano para o outro.

Além do próprio IDH, o Relatório de Desenvolvimento Humano permite comparar outros indicadores.

É possível destacar, por exemplo, que apesar de ter registrado queda na desigualdade desde o início da década, o Brasil ainda permanece no grupo de dez países mais desiguais do relatório, atrás apenas de Namíbia, Ilhas Comores, Botsuana, Haiti, Angola, Colômbia, Bolívia, África do Sul e Honduras. No Brasil, os 10% mais ricos detêm 43% da riqueza nacional, enquanto os 10% mais pobres, apenas 1%.

Na Noruega, país que lidera o ranking, os 10% mais ricos concentram 23% da riqueza, enquanto os 10% mais pobres respondem por 4%.

Outro indicador em que o Brasil destoa dos líderes é o investimento público em educação e saúde. Noruega, Austrália e Islândia investem, respectivamente, 35%, 31% e 36% de seu gasto público nessas áreas.

No Brasil, a proporção é de apenas 22%. O maior desnível acontece na saúde, setor em que o Brasil investe 7% dos gastos, menos da metade do que Noruega (18%), Austrália (17%) e Islândia (18%).

Zelaya acredita que fim da crise está próximo

Ricardo Galhardo
DEU EM O GLOBO

Presidente deposto de Honduras e representantes da OEA vislumbram solução para impasse nos próximos 10 dias

TEGUCIGALPA. O presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, e representantes da Organização dos Estados Americanos (OEA) em Tegucigalpa avaliaram ontem que uma solução para a crise que se arrasta por mais de três meses pode ocorrer nos próximos dias.

Na avaliação do presidente deposto, existem 90% de chances de uma solução para a crise nos próximos dez dias. Ele disse estar disposto a abrir mão da convocação de uma Assembleia Constituinte que poderia instituir a reeleição, pivô do golpe que o derrubou no dia 28 de junho, e reiterou estar à disposição da Justiça para responder pelos 18 crimes dos quais é acusado. Zelaya, porém, não abre mão de sua restituição, que, segundo ele, seria um exemplo de que o continente não aceita mais golpes.

- Sou a solução para as eleições. Sou a solução para a crise - disse Zelaya em entrevista à TV Globo, ontem à tarde.

O secretário de Assuntos Políticos da OEA, Víctor Rico, também prevê uma solução para a crise. Segundo ele, a reunião de chanceleres marcada para quarta-feira deve ser acompanhada de resultados concretos:

- O secretário-geral disse que o que esperamos é que a reunião de chanceleres traga um resultado para esta crise.

Ontem, um grupo de membros de movimentos sociais que integram a Frente Nacional de Resistência divulgou uma nota pedindo a revogação do decreto que suspende as liberdades civis básicas, em vigor desde 26 de setembro. O comunicado é assinado por Rasel Tomé, que acompanha Zelaya desde o dia 21 na embaixada brasileira.

Diante do rechaço de diversos setores que apoiaram o golpe, como o Congresso, a Igreja, a Corte Suprema e o empresariado, o presidente interino Roberto Micheletti prometeu revogar o decreto na semana passada, mas não cumpriu a palavra.

Em Bruxelas, onde acompanha a visita oficial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro do Exterior, Celso Amorim, disse acreditar que a situação em Honduras está mais favorável para negociações. Amorim afirmou ainda que a presença de Zelaya em Tegucigalpa contribui para que haja diálogo. Já Lula se recusou a responder perguntas sobre o assunto e disse que Honduras agora é um assunto para a OEA.

Colaborou Fernando Duarte, de Bruxelas

'Retorno de Zelaya é inegociável'

Gilberto Scofield Jr.
DEU EM O GLOBO

WASHINGTON. O representante do Brasil na OEA, embaixador Ruy Casaes, integra a comitiva que vai a Tegucigalpa depois de amanhã a fim de desenhar o "mapa do caminho" para a volta de Manuel Zelaya ao poder.

Há grandes perspectivas para um acordo agora?

RUY CASAES: É perceptível isso porque os dois lados já admitem recuos, um cenário que não víamos antes. Nós nos encontraremos em Miami na terça-feira à noite e chegamos a Tegucigalpa na quarta-feira de manhã.

E em que termos será costurado um acordo?

CASAES: Já há representantes da OEA em Honduras costurando isso. O que nós consideramos inegociável é o retorno de Zelaya ao cargo de presidente. Se isso será feito com um governo de coalizão, se os dois lados serão totalmente anistiados, isso vamos tentar definir neste encontro de quarta-feira. O governo de Roberto Micheletti tomou decisões equivocadas que o forçaram a recuar e a enfrentar o descontentamento de seus próprios apoiadores. Já há quem admita que a expulsão pura e simples de Zelaya, sem um processo judicial contra o que eles pensavam ser um abuso do presidente, foi um erro.

O Brasil sai com a imagem arranhada deste episódio todo?

CASAES: O governo brasileiro deu apoio a Zelaya de forma racional, equilibrada e consistente. Não participou de sua volta, mas não poderia lhe negar abrigo, e Zelaya escolheu a embaixada brasileira até mesmo pelo prestígio brasileiro no continente e no mundo.

Canto raro, repleto de sentimento

Lauro Lisboa Garcia, Com Agências Internacionais
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / CADERNO 2

Arte da argentina Mercedes Sosa encerrava um universo em si, baluarte de sua gente e antena das questões de seu tempo

A cantora Mercedes Sosa morreu ontem, aos 74 anos, em Buenos Aires, em consequência de complicações nos rins, no fígado e nos pulmões. Hospitalizada há duas semanas, Mercedes passou os últimos dias respirando com ajuda de aparelhos. Seu corpo foi velado no Congresso Nacional, na capital argentina. Segundo a família, seus restos serão cremados e as cinzas, espalhadas na cidade natal de Tucumán, em Mendoza e Buenos Aires.

Um dos pilares fundamentais da música popular argentina, ao lado de Carlos Gardel e Astor Piazzolla, Haydée Mercedes Sosa fez história pelo dom daquelas raras vozes que encerram um universo em si - pela importância histórica e pelo sentimento que carregam, baluartes artísticos de sua gente, antenas de seu tempo, genuinamente comoventes, gigantes por natureza. É como Luiz Gonzaga no Brasil, Odetta Holmes nos Estados Unidos, Celia Cruz em Cuba, Miriam Makeba na África do Sul.

A seu modo, La Negra - como foi carinhosamente apelidada por causa da cor dos cabelos - tornou-se referência de cantora, da grandeza de uma Ella Fitzgerald, de uma Edith Piaf. Foi a voz combatente da América Latina nos penosos anos da ditadura, quando passou a ser duramente perseguida e censurada por defender os direitos civis.

Herdeira de um movimento de música folclórica com forte compromisso político, tendo Atuahualpa Yupanqui como maior referência, gravou canções simbólicas dos anseios por liberdade e justiça e que valorizavam o trabalho da mulher e do homem comum. Canções como Los Hermanos (Atahualpa Yupanqui), Gracias a la Vida e La Carta (ambas da chilena Violeta Parra) e Hermano Dame Tu Mano (J.Sánchez/J.Sosa) correram mundo em sua voz.

Entre as estrelas internacionais que dividiram palcos e gravações com ela estão Luciano Pavarotti, Sting, Joan Baez, Lucio Dalla, Silvio Rodríguez, Pablo Milanés e Gal Costa, além de outros brasileiros com os quais cultivou grande amizade (leia na página ao lado).

Entre os feitos marcantes de sua carreira estão uma atuação na Capela Sistina do Vaticano (em dezembro de 1994), no Carnegie Hall (Nova York) e no Coliseu de Roma (ambas em 2002) para pedir a paz no Oriente Médio junto a Ray Charles, entre outros.

Em 1979, com a violência militar recrudescendo, Mercedes foi presa na cidade de La Plata, depois de um show, junto com todo seu público. No mesmo ano refugiou-se em Paris e em 1980 mudou-se para Madri. Ela podia voltar à Argentina quando quisesse. Com o princípio de agonia do regime militar, Mercedes pôde voltar ao país em 1982. O show que marcou o reencontro com seu público, no Teatro Colón, em Buenos Aires, causou grande comoção.

Com a volta da democracia, Mercedes passou oscilante pela ressaca dos anos 1980. A América Latina respirava novos ares e ela adaptou seu estilo aos novos tempos, ampliou seu repertório para além de zambas e milongas, cantando tango, baladas de amor, o cancioneiro brasileiro e cubano e até se aproximou do rock, via Charly García. Rodou o mundo com bem-sucedidas turnês, como a de 1986, que passou por vários países europeus e a trouxe de volta ao Brasil.

Identificada como uma espécie de Robin Hood da América Latina, Mercedes disse ao Estado em 2007, acreditar que as coisas tinham mudado para melhor no continente. Em entrevista para a biografia La Negra, de Rodolfo Braceli, confirmou que sua ideologia política sempre foi o comunismo, apesar de ter rompido com o partido comunista. Disse também detestar quem canta música de protesto por puro oportunismo.

A canção de protesto perdeu o significado em tempos mais amenos. Contudo, Mercedes jamais deixou de afrontar as injustiças. "Nosso continente é muito difícil, não há como deixar de ser idealista. Vendo, por exemplo, como a família de Pinochet se tornou milionária não há como se conformar. Não mudei nada na maneira de pensar. O que mudou é o que canto, o que dizem os compositores, mas não sou compositora. Canto de acordo com o que sinto no momento", afirmou há dois anos ao Estado.

Na memória coletiva, a imagem cristalizada de Mercedes é a de tocadora de bumbo, vestida de poncho e gritando palavras de ordem, como nos anos de chumbo. Os detratores, porém, diziam que ela defendia os pobres vestida de Armani e cobrando cachê em dólares. Mercedes sentia o peso do estereótipo e lamentava ter de atender a insistentes pedidos do público para que cantasse canções surradas como Gracias a la Vida (Violeta Parra), um de seus maiores sucessos. Apesar de contrariada, dizia que tinha de cantá-la. "Estive tão doente em 1997 que agora compreendo o que é estar viva e entendi melhor a canção, que não é de amor, mas de agradecimento por estar viva. Para mim é muito importante", disse ao Estado em 2007.

Sua brilhante trajetória artística e pessoal foi reconhecida com diversos prêmios, entre eles o da Unifem (órgão da ONU), em 1995, por seu empenho em defesa dos direitos da mulher. No ano seguinte foi a vez de receber em Porto Alegre a Medalha Simões Lopes Neto, pela contribuição para a união dos povos, como artista e personalidade influente.

Gravações históricas nos anos da ditadura

Lauro Lisboa Garcia
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / CADERNO 2

Seus maiores sucessos foram canções libertárias da década de 1970, que viraram verdadeiros hinos latino-americanos

Mercedes Sosa notabilizou-se, sobretudo na década de 1970, pelas atitudes humanistas, condizentes com o conteúdo social e político das canções libertárias, ora ternas, ora indignadas, que interpretava, como La Carta (Violeta Parra), Cuando Tenga a la Tierra (Daniel Toro/Ariel Petrocelli), Canción para mi América (Daniel Viglietti), Canción con Todos (A.Tejada Gómez/C.Isella), Si se Calla el Cantor (Horácio Guarany) e Plegaria a un Labrador (Victor Jara).

O evento que revelou sua estupenda voz em escala nacional na Argentina foi a participação no Festival Nacional de Folklore de Cosquín, de 1965. No mesmo ano, Mercedes lançou o álbum Canciones con Fundamento, de título tão sugestivo quanto o de seus sucessores, Yo no Canto por Cantar e Hermano, Para Cantarle a mi Gente e Traigo un Pueblo em Mi Voz.

Em mais de 40 álbuns, compactos e participações em discos alheios, ela gravou os mais importantes compositores argentinos, como Ariel Ramirez, Atahualpa Yupanqui, Horacio Guarany, César Isella, María Elena Walsh, León Gieco, Víctor Heredia e Gustavo Leguizamón. Dedicou quatro discos inteiros a Ramirez em parceria com o poeta Félix Luna (Mujeres Argentinas, Cantata Sudamericana, Mujeres Argentinas, Navidad con Mercedes Sosa e Misa Criolla) e outro a Yupanqui.

A autora de Gracias a la Vida e Volver a los 17 também foi contemplada por ela com o antológico álbum Homenage a Violeta Parra (1971). A gravação de Alfonsina y el Mar (Ramirez/Luna) é um dos momentos mais sublimes de toda sua discografia, assim como Violín de Becho (Alfredo Zitarrosa), Como la Cigarra, Cantor de Ofício...

Um de seus melhores discos é o de 1976, que originalmente leva apenas seu nome, mas ficou também conhecido como La Mamancy (título da primeira faixa, assinada por Isella e Tejada Gómez) ou En Dirección del Viento. Com a voz tão impecável quanto o repertório e os arranjos, Mercedes registrou belíssimas canções dos compositores e poetas chilenos Victor Jara (Cuando Voy al Trabajo) e Pablo Neruda (Poema 15), dos argentinos Hamlet Lima Quintana e Tacúm Lazarte (Los Pueblos de Gesto Antiguo), María Elena Walsh (Las Estatuas) e Miguel A. Morelli (Cantor de Oficio), o cubano Ignacio Villa, o "Bola de Nieve" (Drume Negrita), entre outros.

Outro álbum marcante é Serenata para la Tierra de Uno, de 1979, que tem O Cio da Terra (Chico Buarque/Milton Nascimento) e Como la Cigarra (Walsh). "Tantas veces me mataron/ Tantas veces me morí/ Sin embargo estoy aquí resucitando./ Gracias doy a la desgracia/ Y a la mano con puñal,/ Porque me mató tan mal,/ Y seguí cantando./ Cantando al sol, como la cigarra,/ Después de un año bajo la tierra,/ Igual que sobreviviente/ Que vuelve de la guerra", diz a letra desta canção que sintetiza sua personalidade e tornou-se sua assinatura, sua identidade. Não foi à toa que causou grande emoção ao cantá-la no show que marcou a volta do exílio em 1982, lançado em álbum duplo naquele ano.

Mesmo sem a mesma repercussão dos tempos das canções de protesto, Mercedes não parou de cantar, fazendo shows e lançando regularmente bons CDs nos anos 1990. Em 1997 ficou seriamente doente, mas mesmo sofrendo de diabetese andando com dificuldade recusou-se a se aposentar. Em 2000 lançou um dos melhores trabalhos dos últimos anos, a obra-prima Misa Criolla/Navidad Nuestra, de Ariel Ramirez e Félix Luna, gravado em 1999.

Pouco tempo depois, aos 67 anos, em entrevista para a biografia de Braceli, definiu-se como "uma mulher que trata de aprender a viver e que estuda para aprender a cantar melhor". Uma lição e tanto para certas novatas brasileiras sem personalidade, que mal saem da casca e já se acham as tais.

Em 2005, lançou o bom CD Corazón Libre, pela gravadora alemã Deutche Grammophon. A maioria de seus principais álbuns da áurea década de 1970 nunca saiu em CD, nem mesmo na Argentina. Seu último trabalho discográfico foi Cantora, lançado em dois volumes neste 2009, com vários convidados, entre eles Caetano Veloso, o uruguaio Jorge Drexler, vários conterrâneos de velhos tempos e da cena atual - Victor Heredía, Charly Garcia, Fito Páez, Pedro Aznar, Vicentico, Gustavo Santaolalla - e o espanhol Juan Manuel Serrat e até Shakira e Daniela Mercury, entre outros. Mesmo sem o vigor e a exuberância do passado, a grande voz não se perdeu.

Discografia Selecionada

Canciones con Fundamento (1965)
Yo no Canto por Cantar (1966)
Hermano (1966)
Para Cantarle a Mi Gente (1967)
Con Sabor a Mercedes Sosa (1968)
Mujeres Argentinas (1969)
El Grito de la Tierra (1970)
Homenaje a Violeta Parra (1971)
Hasta la Victoria (1972)
Cantata Sudamericana (1972)
Traigo un Puebloen Mi Voz (1973)
A Que Florezca mi Pueblo (1975)
La Mamancy (1976)
Mercedes Sosa Interpreta a Atahualpa Yupanqui (1977)
Serenata para la Tierra de Uno (1979)
A Quien Doy (1980)
En Vivo en Argentina (1982)
Gente Humilde (1982)
Como un Pájaro Libre (1983)
En Vivo en Europa (1990)
Escondido en Mi País (1996)
Alta Fidelidad (1997)
Al Despertar (1998)
Misa Criolla (2000)
Acústico (2002)
Corazón Libre (2005)
Cantora, vols. 1 e 2 (2009)

A amizade com vários artistas brasileiros

Lauro Lisboa Garcia
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /CADERNO 2

Ela foi próxima de Milton Nascimento, Beth Carvalho, Fagner, Chico Buarque...

O auge da popularidade de Mercedes Sosa no Brasil foi nas décadas de 1970 e 1980, quando se tornou amiga de medalhões da MPB, que chamaram a atenção para a sua importância e para a beleza contundente de seu canto. Amiga de Milton Nascimento, Caetano Veloso, Fagner, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Elis Regina e Beth Carvalho, Mercedes fez duetos em shows e gravações com vários deles. Numa de suas últimas vindas a São Paulo, em 2007, dividiu o palco com Maria Rita. Registrou em discos também canções de Vitor Ramil, Djavan, Marcos Valle e Kleiton Ramil.

Milton é o brasileiro mais presente no repertório da cantora, que também fez duetos históricos com ele em Volver a los 17 (Violeta Parra) e Sueño con Serpientes (do cubano Silvio Rodriguez). Em 1985, os dois dividiram o palco com o argentino León Gieco num grande show em Buenos Aires, que virou disco: Corazón Americano. Procurado pelo Estado, Milton, segundo sua empresária, não quis dar declarações por estar muito abalado com a morte da amiga.

Outros encontros marcantes de Mercedes com brasileiros foram com Beth Carvalho, em Solo le Pido a Diós (León Gieco) e com Fagner em Años (Pablo Milanés). Um compacto com O Cio da Terra (Chico Buarque/Milton Nascimento) e San Vicente (Milton/Fernando Brant) é outro registro que merece destaque.

"Éramos bastante amigas desde que vi um show dela no Scala, no Rio. Depois convidei-a para gravar em 1986. Foi uma gravação muito feliz, muito bonita", lembra Beth Carvalho. Depois ela me convidou para fazer um espetáculo no Luna Park, em Buenos Aires, chamado Sin Fronteras, em 1988. Ela estabeleceu que era uma reunião das rainhas de cada lugar. Do Brasil fui eu, do México tinha Amparo Ochoa, da Venezuela foi uma outra. Foi muito lindo, eu encerrava o show com ela", lembra Beth.

Em 1980, Mercedes gravou o álbum Ao Vivo no Brasil e em 1982 teve um outro disco montado só para o mercado brasileiro, Gente Humilde, puxado pela faixa-título de Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Garoto. O álbum também incluía Viola Enluarada (Marcos/Paulo Sérgio Valle) e o dueto com Fagner em Años. Em 1986. ela fez uma participação no programa Chico & Caetano, da Rede Globo, cantando Volver a los 17 com os anfitriões mais Milton Nascimento e Gal Costa. O encontro saiu em CD numa coletânea brasileira.

Recentemente, Vitor Ramil, de quem Mercedes gravou Semeadura, a tinha convidado para participar de seu novo álbum, mas ela já estava doente. O produtor Ricardo Frugoli tinha um projeto de gravar um novo álbum de Mercedes no Brasil ainda este ano. "Seriam 14 canções, sete com cantores brasileiros consagrados e sete canções com cantores brasileiros de várias gerações com enorme talento e menor visibilidade", conta Frugoli.

Mercedes também estaria no projeto que Beth Carvalho vem alimentando há anos, que se chama Beth Carvalho Canta as Músicas Revolucionárias Latino-Americanas. "Ela topou na hora quando falei desse projeto. Iria cantar com ela, com Silvio Rodríguez, cada um representante de cada lugar desse tipo de música, revolucionária, que acho linda. Queria fazer uma coisa grandiosa, gravar em Cuba. Mas eu vou fazer, pena que não vou ter mais a Mercedes."

Repercussão

"É a maior, maravilhosa, tem uma voz que me emociona demais. É tudo o que eu acho que uma cantora tem de ser. Tem de ter ideologia, musicalidade, bom gosto. E ela foi bailarina clássica, tinha uma leveza, apesar de estar gorda. E era muito carinhosa. A última vez que estive com ela foi no Teatro Municipal no Rio, já não estava muito bem de saúde. Estou muito triste. Acho que o mundo inteiro perdeu uma grande intérprete, uma grande representante da latinidade. Uma grande cantora e uma grande mulher."

BETH CARVALHO, CANTORA

"Perdi uma amiga, uma pessoa muito próxima e muito generosa. Todos nós perdemos uma mulher guerreira, de voz linda, que colocou sua grande arte a serviço das causas mais importantes. Foi uma grande amiga. Sua voz era única na América Latina e por isso acabou se transformando em uma grande bandeira do continente."

RAIMUNDO FAGNER, COMPOSITOR E CANTOR

"Foi uma grande honra poder compartilhar o palco com Mercedes por ocasião de uma turnê que fizemos ao lado de Milton Nascimento por diversos países. Era uma intérprete de enorme talento, de muito bom gosto na escolha de repertório. Pessoalmente, era uma mulher de muito valor, de origem pobre e que conseguiu triunfar na vida. Estou muito triste, é uma grande amiga que se vai."

WAGNER TISO, COMPOSITOR

"Foi a voz dos que não tinham voz na época da ditadura (1976-1983) e levou a angústia pelos direitos humanos na Argentina a todo o mundo."

VÍCTOR HEREDIA, COMPOSITOR

"Minha primeira milonga, Semeadura, compus inspirado nela e ela a gravou anos depois. Mais recentemente ela me pediu uma versão de Não é Céu. As duas representam duas pontas dos meus interesses musicais. O fato de ela se interessar justamente por essas canções foi muito significativo para mim. Passei uma semana na casa dela em Buenos Aires. Foi um privilégio ter podido conviver um pouco com essa artista que amo tanto."

VITOR RAMIL, COMPOSITOR

"Mercedes tem uma força incomparável, e, enquanto é dolorido entender sua eventual partida, é fácil aceitar a mesma devido a tudo o que ela fez em sua história. Sua arte é testemunho dessa mulher forte. Que fará falta, sim. Que nos deixa essa tristeza pairando no ar, sim. Mas que tanto fez, que tanto nos deixou, que merece seu descanso. Agora, é com a gente."

MARIA RITA, CANTORA
"Mercedes Sosa é a voz que embalou minha adolescência e que me disse o que era a América Latina, seus povos, seus cânticos, suas dores. Do texto de Bertolt Brecht que diz como ninguém - Hay hombres que luchan un día, y son buenos... - a uma infinidade de canções absolutamente necessárias que povoam meu imaginário, seu canto percorre com coragem as veias abertas da vida humana no que ela tem de singular e universal, e me ensinam como ser maior e mais inteira."

ANA LUIZA, CANTORA