domingo, 19 de dezembro de 2010

Reflexão do dia – Raimundo Santos

Armênio Guedes pode ser considerado nome bem expressivo do processo de conversão do PCB em operador político no tempo contemporâneo. Desde meados dos anos 1950 ele aparece ligado ao “pensamento político” identificado com a valorização da política no agir pecebista, recorrente no PCB. Sua escrita, que não é muito extensa, também pode ser visualizada ora em passagens dos documentos oficiais nos quais colaborou, ora publicada à margem dos jornais comunistas, como, por exemplo, depois da anistia de 1979, entrevistas à grande imprensa e alguns artigos publicados em revistas. É notável ver como, ao longo do tempo, o seu “pensamento político” mantém traços marcantes – previsão de cenários e perspectiva de ação –, guardando o autor nas suas análises de conjuntura distância tanto em relação ao tempo largo da doutrina quanto ao “desespero” imediatista nos momentos difíceis, como ultimamente costuma dizer ao relembrar os anos duros do regime de 1964.



Raimundo Santos. "Teoria e prática no nosso marxismo político (antecedentes do campo da “revolução passiva”). In: Interpretações, Estudos Rurais e Política – Roberto José Moreira e Regina Bruno, Orgs., editoras Mauad e Universidade Rural do Rio de Janeiro, 2010.

Armênio Guedes: Comunista avulso

DEU NA FOLHA DE S. PAULO/ ILUSTÍSSIMA

Aos 92 anos, Armênio Guedes espera duas biografias e uma indenização de R$ 1,4 mi

Natalia Viana

RESUMO Armênio Guedes, 92, é um dos poucos militantes remanescentes dos tempos do líder Luiz Carlos Prestes, a quem fez um contraponto nos debates internos do Partido Comunista Brasileiro, em favor de alianças e da democracia. Interlocutor de partidários do PSDB, PPS, PSOL, ele espera uma indenização trabalhista e duas biografias.

Quem costuma ir aos concertos da Sala São Paulo tem grande chance de encontrá-lo no mezanino superior, na última fileira. Armênio Guedes é um homem miúdo, calvo, o corpo já curvo, de gestos econômicos e elegância discreta. Aos 92 anos, o último dos figurões do velho Partido Comunista Brasileiro -além de Oscar Niemeyer- não chama especialmente a atenção, durante o intervalo, caminhando a passo lento em meio a tantos casais. E, no entanto, é uma figura central no pensamento democrático brasileiro. Por ele, José Serra, que o conheceu no exílio chileno, foi capaz de deixar seu gabinete de governador para ir pessoalmente à gravação do "Roda Viva", na TV Cultura, prevendo que o amigo ficaria nervoso, desacostumado com os holofotes. "Ele sabe que eu gosto dele e do seu jeito de ser e de pensar", diz Serra. "E eu sei que ele me aprova, concorda com o que faço no atacado, mesmo à distância. Sempre foi assim desde que convivemos por alguns anos no exílio." Não está só. O velho comunista tem, entre seus admiradores, políticos de variadas matizes da esquerda, muitos dos jornalistas que dirigem as principais redações do país e alguns de seus principais intelectuais. Conviveu com muitos deles, seja quando militava no Partidão nas décadas de 40 e 50, seja no exílio, durante a ditadura, ou após deixar o PCB, na década de 80. Um deles notou jamais ter conhecido alguém que não gostasse de Armênio. "Se existe um ser humano que deu certo, foi Armênio Guedes", resume o historiador Ivan Alves Filho.

FAMÍLIA Armênio Guedes nasceu em Mucugê (BA), em 1918 ("um ano depois da Revolução Russa", como gosta de frisar), no seio de uma família de 11 irmãos cujo pai, lapidário, se preocupava com a educação dos filhos. Para isso foram a Salvador e ali, coisa raríssima naqueles dias, quase todos fizeram curso superior. Foi ali também que Armênio vibrou pela primeira vez com a política. O pai comprara um aparelho de rádio e, à noite, muitos vizinhos se reuniam para ouvir as notícias sobre a Revolução de 1930. Entrou para o PCB pouco depois de ingressar na Faculdade de Direito da Bahia, em 1935. "Era a época da frente mundial contra o fascismo", lembra. "Eu participei daquilo." Setenta e cinco anos depois, em 20 de julho deste ano: "O que você não esperava que tivesse acontecido?" "O fim da União Soviética. Que ia desmoronar daquele jeito." "O que é ser comunista hoje?" "Uma pessoa de cultura socialista, também antifascista, internacionalista, contra a xenofobia, pela melhoria da situação do povo. Uma pessoa impregnada desses valores que só podem se desenvolver na democracia."

TEIMOSO Armênio Guedes está ao volante do seu Honda 99, dirigindo com zelo pelo centro de São Paulo. É teimoso, faz questão de levar a repórter e outro acompanhante de carona até um ponto melhor para cada um, mesmo que seja fora do seu trajeto de volta para o apartamento onde mora, em Higienópolis. No encontro com a repórter, em julho, ao volante do seu carro, não teve dúvidas: "Olha, se precisar de um carro emprestado é só falar, eu empresto". Era a terceira vez que a encontrava. Antes, na segunda vez, preocupado em chegar atrasado à entrevista no seu apartamento, avisou que deixaria a chave na portaria. O Armênio é assim. "Tenho um ódio disso!", diz, meio brincando, meio séria, a mulher, Cecília. "Tenho medo de ele ser enganado, mas ele não é uma pessoa enganável. Não é burro, de jeito nenhum. Ele empresta dinheiro pra as pessoas, ajuda o cara que foi torturado e ficou sem dente, paga o dentista..." Não é sempre que ele se perde no caminho, pelo contrário. Faz questão de guiar seu carro todos os dias para o trabalho - no escritório da Imprensa Oficial, onde edita uma agenda cultural. Leva a mulher, Cecília, 26 anos mais jovem, aonde ela precisar. Vai conversando, sua principal arte: "Foi um século fantástico, esse. Vi a coletivização da agricultura na União Soviética, a ascensão do fascismo, a Segunda Guerra Mundial, o franquismo na Espanha, aqui no Brasil o Estado Novo, a ditadura...". Armênio ingressou para o núcleo do partido em 1943, quando ajudou a organizar a histórica Conferência da Mantiqueira, que decidiu pelo apoio a Getúlio Vargas na guerra. Nunca mais saiu, mas permaneceu a maior parte do tempo como suplente por causa de suas posturas "liberais", em busca de alianças e do caminho político ("a arte do possível", costuma lembrar). Foi membro efetivo do Comitê Central apenas entre 1975 e 1980.

PRESTES Em quase tudo, sua atuação foi antagônica à do imponente Luís Carlos Prestes - que entrou na história com alarde, à frente da coluna batizada com seu nome. Já Armênio foi marcando sua passagem aos poucos, escutando, conversando, um "comunista sem pressa", como foi descrito certa vez: "Não se pode conseguir hegemonia à força", ensina. Não que fossem inimigos; houve até um período de amizade, lembrado com carinho. Quando Prestes foi libertado, em 1945, Armênio tornou-se seu secretário, indo morar com ele numa casa próxima ao largo do Machado, no Rio. "Ele tinha passado esses anos todos segregado, então tinha necessidade de falar, falar, fazia sabatinas todo dia. E em casa, conosco, ele falava muito, sobre a coluna, sobre a vida dele na União Soviética. Fiquei muito ligado a ele." Armênio estava presente quando Prestes soube da morte da mulher, Olga Benário, e quando conheceu a filha Anita Leocádia. "Eu era da segurança dele, apesar de ser um intelectual franzino. Eu era tão magro que o revólver escorregava para dentro da calça. Era uma farsa", ri. Mas havia pontos de discórdia. Enquanto Prestes sempre foi um fiel seguidor das diretrizes do PC soviético e da ortodoxia marxista, Armênio sempre teve uma "intuição" democrática. Um dos documentos que mais se orgulha de ter escrito é a resolução do Comitê Estadual da Guanabara, de março de 1970, quase um ano e meio após o Ato Institucional nº 5. A resolução foi um dos primeiros documentos a condenar a luta armada e a defender a aliança com o MDB, então único partido de oposição consentida -estratégia que seria bem- sucedida. "A figura que mais influiu na orientação política do partido durante várias décadas foi exatamente ele", diz o ex-deputado pecebista Marco Antônio Coelho. A cisão alargou-se. "Em política, Prestes era um comandante militar. Foi um militar de muito talento, muito criativo. Mas acho que não foi um político talentoso", avalia Armênio. No último encontro com Prestes, em 1983, nem uma palavra. "Era o velório do Gregório Bezerra. Ele chegou ali, apertou a mão de todo mundo, não me olhou. Eu também não olhei. Quer dizer, olhei, vi que não ia falar comigo, eu também não me dirigi a ele. Ele era assim, firme."

MILITÂNCIA Em 50 anos, dedicou-se tanto à militância que, se fosse escrever uma autobiografia, dividiria os capítulos de acordo com as fases do partido. Quando saiu do PCB, em 1983, passara menos de quatro anos na legalidade. No início, quando se mudou para São Paulo, em 1947, ainda pôde tomar o vapor com seu próprio documento, mesmo com o partido na ilegalidade; não havia um sistema de segurança nacional que cruzasse dados, coisa que seria aprimorada na ditadura militar. No final daquela década, sofreu um processo, a perseguição apertou. Foi por ali que conheceu sua primeira mulher, Zuleika Alambert. "Quando fomos morar juntos, nosso casamento foi aprovado pelo Marighella", lembra. Em 1968, com o AI-5, cada um precisou ir para um lado: Zuleika em casa de amigas, ele pingando de casa em casa. "Nos primeiros meses, chegava umas seis da tarde, eu pensava: 'Onde eu vou dormir?' Tinha a casa da minha tia, tinha a casa do fulano... Eu simplesmente não sabia pra onde ir." Às vezes, os dois passavam meses sem se ver. Nunca puderam ter filhos. Armênio teve muitos nomes e muitos passaportes: foi "Marcos", "André", "Vítor". Hoje até se confunde. Em Paris, onde viveu entre 1973 e 1980, o nome do passaporte era Lásaro Feitosa Alexandre, mas, na comunidade, era conhecido como "Júlio, representante do Partidão". Foi lá que conheceu Cecília, sua segunda mulher, que até hoje o chama de "Júlio". Hoje o nonagenário tem uma casa confortável e uma indenização mensal que lhe dá um bom padrão de vida. É a primeira vez em uma vida de apertos. Abriu a primeira conta bancária aos 64 anos. Próximo dos 70, ainda morava numa quitinete. "O que mais te marcou na clandestinidade?" "Viver na casa dos outros. Me relacionar bem com as pessoas. Eu aprendi muito o valor da solidariedade... E observava também, fazia tudo para não ser uma carga, não comprometer as pessoas que me davam guarida e também não desorganizar a vida deles. Acordava bem cedo, antes deles, para não atrapalhar e eles não notarem minha presença."

LIVROS Agora sua trajetória começa a ser recontada em dois livros. Desde o final de 2009, o jornalista Sandro Vaia, ex-diretor de Redação de "O Estado de S. Paulo", está fazendo uma longa série de entrevistas para uma biografia, a pedido da editora Barcarolla. A outra, escrita pelo amigo Mauro Malin, começou a ser elaborada em 1980, mas só agora ganha forma. "Eu, no começo, não queria, não, mas se eles querem tanto, eu conto", diz Armênio. "Na verdade, acho que ele foi um comunista por acaso", arrisca Sandro Vaia. "Ele vai ficar bravo comigo, mas é isso. Era um momento histórico no Brasil, em que estar no PCB era símbolo dos melhores valores da época. Se o comunismo virou o que virou, isso não diminui as pessoas, porque era um valor humanista." Vaia, que está longe de ser um simpatizante da ideologia, quer entender por que Armênio se manteve no partido por tanto tempo. "É uma questão metafísica." Já a outra biografia está sendo escrita por um simpatizante, o historiador Mauro Malin, que conhece Armênio desde o exílio em Paris. O projeto, que estava parado, foi retomado a pedido de Serra. Ventilou-se a possibilidade de sair pela Imprensa Oficial. Agora está sem editora definida. Ao lado de Leandro Konder, Milton Temer e Carlos Nelson Coutinho, Malin fez parte do grupo que se formou em Paris em torno de Armênio, defendendo a democracia não como meio, mas como fim da luta pelo socialismo. Mantinham contato com o PC francês e PC italiano de Enrico Berlinguer.

EUROCOMUNISTAS "A direção do PCB rapidamente nos desqualificou como 'eurocomunistas'", lembra Carlos Nelson. "Armênio, com seu agudo senso de humor, dizia que éramos, na verdade, 'neurocomunistas'." Até hoje alguns dos amigos do grupo se reúnem todo mês, na casa do cineasta Zelito Viana, no Rio. Com o mesmo carinho com que sempre ouviu as histórias alheias, agora Armênio cuida de recontar a sua. Revisa cuidadosamente os esboços escritos por Malin e chegou a ligar mais de uma vez para esta repórter, pedindo para não deixar de fora um detalhe, para excluir outro. Só depois de muita insistência topou contar, hesitante, a história do copo que guarda na sua cristaleira, um pequeno vaso arredondado, de cristal: "Roubei na datcha do Stálin, numa reunião do Comitê Central, em 74. Eu estava em Paris, mas o Comitê Central se reunia em Moscou, né?". A Datcha Kuntsevo era a casa de veraneio em que Stálin morou nas duas últimas décadas da sua vida, nos arredores de Moscou. "Ele recebia os amigos, tomava sua vodca... Eu tava lá na casa, abri a cristaleira, tirei e guardei. Pra ter uma lembrança daquele lugar."

IRMÃO Nas entrevistas, raramente entra num tom mais pessoal. Aprendeu a ser discreto e quase invisível na clandestinidade, sob muitos nomes, em casas que ninguém sabia onde ficavam. Suas diversas narrativas parecem sempre seguir um mesmo roteiro, aquele que ele escolheu - a história do partido. Pouco fala da maior tristeza da sua vida, causada justamente por um vacilo do Comitê Central: a morte do irmão mais novo, Célio, durante a ditadura. "Meu irmão era dessas coragens de que a gente tem medo. Ele dizia: se eu for preso eu não vou ser torturado, vou partir com uma violência tamanha pra cima dos torturadores". Celito também dedicou boa parte da vida ao partido. "Ele era um ponto de apoio para a direção. Foi ele que levou o Prestes para sair do Brasil, em 1970." Em agosto de 1972, o irmão tinha ido buscar um militante que trazia dinheiro da URSS. A polícia sabia da empreitada, e o Comando Central sabia que a polícia sabia. Mas manteve a ordem. "Eles não precisavam mandar ele fazer isso", lamenta o irmão. Presos na fronteira, os dois foram levados para o 1º Distrito Naval do Rio, onde Célio morreu em 15 de agosto de 1972. Teria "se jogado" do sexto andar, segundo a versão oficial. "Ele se sentiu culpado da morte do irmão. Mas não tem culpa nisso", diz Cecília. Na volta ao Brasil, Armênio tentou abrir um processo pela morte de Celito no PCB.

AVULSO Sentia-se cada vez mais isolado no partido, avesso a alianças e apegado ao centralismo: o novo Comitê Central, sob Giocondo Dias, tampouco se mostrava inclinado à democracia. Armênio acabaria saindo após uma demonstração de autoritarismo. Em 1983, foi chamado a dar explicações por ter contado a um colega que ele estaria sofrendo processo de expulsão. Um puxão de orelha. Saiu da sede e jamais voltou. Nunca mais entrou em partido nenhum. Tornou-se um "comunista avulso", diz. Não é bem assim: ele segue sendo um interlocutor para muitos políticos. "Seja José Serra ou Dilma Rousseff, o processo histórico de uma revolução passiva, de uma modernização do país, vai se dar", dizia, durante a campanha eleitoral. "Não que eu ache que dá no mesmo. Acho o Serra muito mais capaz. Mas, na realidade, a diferença entre esses partidos é tão grande. Talvez, quem sabe no futuro, venham a ser um partido só, um partido social-democrata brasileiro realmente forte." Nos últimos anos, Armênio tem se reaproximado do PPS por iniciativa do presidente Roberto Freire. Até hoje mantém a amizade com os que constituíram o "Grupo de Armênio", embora sejam de variados partidos: Ivan Alves Filho trabalha na Fundação Astrojildo Pereira, do PPS; Carlos Nelson Coutinho é do PSOL, assim como Milton Temer. Aloysio Nunes Ferreira, recém-eleito senador pelo PSDB, também era do grupo: "Armênio é uma espécie de superego meu em matéria de política".

GAZETA Quando saiu do partido, Armênio foi ser jornalista. Levado por companheiros do Partidão, foi trabalhar na revista "IstoÉ" e depois fez longa carreira na "Gazeta Mercantil". Entrou já septuagenário e ficou lá por 17 anos. Editava a página de Opinião, secretariava a Redação e foi editorialista. "O primeiro emprego de carteira assinada dele foi lá", diz Roberto Müller Filho: "É um grande jornalista". Quando a "Gazeta Mercantil" começou a se desmilinguir, ele se manteve firme. Foram anos sem receber em dia até que veio uma decisão trabalhista do novo dono, Nelson Tanure -um dos poucos contra quem Armênio não hesita em praguejar- que acabaria provocando sua demissão, em 15 de março de 2005. Tinha 87 anos. "Foi muito difícil, desarticulou a vida dele", lembra Cecília. Na Justiça, o final melancólico virou processo e pode, quem sabe, render uma riqueza tardia: Armênio está a um passo de ficar milionário. O primeiro processo, já julgado, lhe confere uma indenização de R$ 1.405.135,21. O outro aguarda julgamento, mas deve superar os R$ 2 milhões. "Vai sair em um ou dois anos" diz, confiante, o advogado Wladimir Durães.

CORAÇÃO Aos olhos da mulher, Armênio envelheceu há poucos anos. Tem poucos problemas de saúde; na semana passada, uma dor forte no peito o levou ao hospital. Foi internado, examinado, e a conclusão é que não tem nada de errado no coração do velho comunista. Ele só agora começa a brigar com a memória. Faz ginástica, continua lendo (grande parte do apartamento é forrada de livros), come pouco e bem. É difícil encontrá-lo sozinho em casa sem que esteja ouvindo música clássica ou jazz. Casaram-se no final de 2007. Assim, ele garante que a sua aposentadoria vá para ela. "Vou morrer antes dela, certamente. Uns três ou quatro anos de vida aí, se tiver. Eu trabalho com cem anos, que eu chegue aos cem. Assim mesmo é daqui a oito anos..." Extrovertida e enérgica, Cecília esmera-se em planejar belas viagens e aniversários marcantes. Quando ele fez 90, organizou uma festa-surpresa: "Eu não sabia se o Armênio ia viver mais, entendeu? Cada ano, cada aniversário é sempre uma incógnita", diz ela. "Isso é uma coisa angustiante de vez em quando. Depois eu esqueço, vou trabalhar."Este ano, passaram dez dias em Nova York para celebrar os 92 anos, e quase um mês na Alemanha - entre o primeiro e o segundo turno da eleição, aos quais ele faz questão de comparecer. "Acho que ele merece tudo isso e muito mais. Porque ele se privou de muitos anos da vida dele em função do país". Só agora que começam a chover pedidos de entrevistas, perfis, homenagens, conta Cecília.E olha para a repórter: "Ninguém conseguiu captar a essência do Armênio".

A busca da verdade :: Merval Pereira

DEU EM O GLOBO

No discurso que fiz quando tomei posse recentemente na Academia Brasileira de Filosofia, na cadeira 48, cujo patrono é Hipólito da Costa - fundador do primeiro jornal brasileiro, o "Correio Braziliense", impresso em Londres em 1808 -, destaquei o surgimento das novas tecnologias e seu impacto na relação do jornalismo com a sociedade.

O ponto de interseção entre o jornalismo e a filosofia é a busca desinteressada da verdade, a principal tarefa do jornalista, a ponto de constituir-se em um imperativo ético da profissão.

Nesse particular, os vazamentos de documentos da diplomacia americana pelo WikiLeaks têm a função de revelar os meandros das tomadas de decisão dos governos, o que colabora para a descoberta da verdade, cuja revelação nunca será total por ser a verdade, por definição, inesgotável.

Mas, como comenta o sociólogo Manuel Castells, um dos principais estudiosos dos novos meios de comunicação e seus efeitos na sociedade moderna, "nunca mais os governos poderão estar seguros de manter seus cidadãos na ignorância de suas manobras".

Ele diz que "seria preciso sopesar" o risco da revelação de comunicações secretas que poderiam dificultar as relações entre Estados "contra a ocultação da verdade sobre as guerras aos cidadãos que pagam e sofrem por elas".

Desse ponto de vista, sem dúvida o que Julian Assange e seu blog WikiLeaks fazem é puro jornalismo, embora, por suas declarações, se possa concluir que a motivação para a exigência de transparência dos governos não seja informação pura e simples, mas uma ação anárquica contra todo tipo de governo, o que retiraria a característica jornalística de sua atividade para transformá-la em ação política, como alguns o veem.

Com relação ao jornalismo, há um livro canônico, "Os elementos do jornalismo", no qual os jornalistas americanos Bill Kovach e Tom Rosenstiel definem como a finalidade do jornalismo essa busca da verdade e a responsabilidade com o cidadão: "fornecer informação às pessoas para que estas sejam livres e capazes de se autogovernar".

No discurso, destaquei que o problema da ética jornalística tem uma complicação própria.

Exercemos um papel socialmente relevante - ao produzir um primeiro nível de conhecimento, acabamos por ser um canal de comunicação que liga Estado e nação, mas também os muitos setores da nação entre si.

É nossa atribuição fazer com que o Estado conheça os desejos e as intenções da nação, e com que esta saiba os projetos e desígnios do Estado. Ainda, incumbe-nos permitir à sociedade acompanhar, com severidade de fiscal, aquilo que os governos fazem em seu nome e, supostamente, em seu benefício.

Justifica-se essa definição de nosso papel com o fato de que, no sistema democrático, a representação é fundamental, e a legitimidade da representação depende muito da informação, que aproxima representados e representantes.

Essa função do jornalismo sem dúvida foi afetada pelo surgimento das novas mídias, que - na opinião do professor brasileiro Rosental Calmon Alves, da Universidade do Texas, em Austin, um dos maiores especialistas no assunto - representa uma revolução que só pode ser comparada, na História das comunicações, com a invenção da imprensa por Gutenberg, em 1495.

Ele não está falando apenas da internet, mas da revolução digital que está transformando profundamente o mundo em que vivemos.

Não é uma simples evolução tecnológica, que dá seguimento às evoluções do século passado; é muito mais do que isso. É uma ruptura de paradigmas. A revolução digital tem como impacto mais importante a repartição de poder dos meios de comunicação de massa com os indivíduos, destaca Rosental.

Essa é a nova sociedade civil global que está se formando, na definição do sociólogo Manuel Castells, da University of Southern California, nos Estados Unidos, que tenta preencher o "vazio de representação" a fim de legitimar a ação política, fazendo surgir "mobilizações espontâneas usando sistemas autônomos de comunicação".

Internet e comunicação sem fio, como os celulares, fazendo a ligação global, horizontal, de comunicação, proveem um espaço público como instrumento de organização e meio de debate, diálogo e decisões coletivas, ressalta Castells.

Mas é o jornalismo, seja em que plataforma se apresente, que continua sendo o espaço público para a formação de um consenso em torno do projeto democrático.

O jornalismo de qualidade, tão importante para a democracia, teve papel fundamental na divulgação dos documentos do WikiLeaks, e não foi à toa que Assange procurou companhias de jornalismo tradicional, como "The New York Times", para dar credibilidade a seu trabalho.

A tese de que as novas tecnologias, como a internet, blogs, Twitter e redes sociais de comunicação, como o Facebook, seriam elementos de neutralização da grande imprensa é contestada por pesquisas.

Especialistas das universidades de Cornell e Stanford demonstram que a internet é a "caixa de ressonância" da grande imprensa, de que precisa para se suprir de informação, e para dar credibilidade às informações.

Não é à toa que os sites e blogs mais acessados tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil são aqueles que pertencem a companhias jornalísticas tradicionais, já testadas na árdua tarefa de selecionar e hierarquizar a informação. O jornalismo profissional tem uma estrutura, uma deontologia, uma forma profissional de colher e checar informações que a vasta maioria dos blogueiros não tem, define Rosental.

O filósofo alemão Jürgen Habermas revelou, em artigo recente, seu temor de que os mercados não façam justiça à dupla função que a imprensa de qualidade, segundo ele, até hoje desempenhou: atender à demanda por informação e formação.

No artigo, intitulado "O valor da notícia", Habermas ressalta que estudos sobre fluxos de comunicação indicam que, ao menos no âmbito da comunicação política - ou seja, para o leitor como cidadão -, a imprensa de qualidade desempenha papel de "liderança": o noticiário político do rádio e da televisão depende em larga escala dos temas e das contribuições provenientes do que chama de jornalismo "argumentativo".

Sem o impulso de uma imprensa voltada à formação de opinião, capaz de fornecer informação confiável e comentário preciso, a esfera pública não tem como produzir essa energia, escreveu Habermas, e o próprio Estado democrático pode acabar avariado.

Ativista de si mesmo:: Dora Kramer

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Luiz Inácio da Silva adora uma invenção de moda: inventou uma herança maldita hipoteticamente recebida do antecessor que acabara de lhe propiciar uma fase de transição civilizada como nunca antes neste país; inventou a Presidência espetáculo e agora dá sinais de que inventará a ex-Presidência esfuziante.

Avisa que participará de protestos, à exceção daqueles cujo alvo for o governo de Dilma Rousseff, e liderará uma campanha pela reforma política, com Constituinte exclusiva se preciso for.

Anuncia-se como arauto da liberdade de imprensa; proclama que lutará pelo povo pobre mundo afora e que fará política em tempo integral a partir de seu instituto com sede em São Paulo e sucursais a serem montadas em outros Estados.

São tantas as atividades a que se propõe como ex-presidente que já se desenha no horizonte a figura do ativista de si mesmo.

Na verdade, nada muito diferente do que fez nos oito anos como presidente da República. Período durante o qual não comprou uma só briga com setores cuja insatisfação poderia impedi-lo de construir a popularidade e a rede de sustentação política que construiu com pleno êxito.

Ao custo de avanço significativo nenhum em saúde, educação, infraestrutura, segurança pública, setores essenciais para que o Brasil consiga com sucesso prosseguir na trajetória ascendente dos últimos anos e chegar a uma condição satisfatória de desenvolvimento.

Evidentemente, a nova presidente terá de fazer frente a esses e a outros desafios.

Lula cuidou muito bem da própria biografia. Propagandeou o que fez e o que não fez. Falou dia e noite bem de si, contando para isso com o espaço natural de que dispunha como chefe da Nação nos meios de comunicação.

Pelo jeito, prepara-se para continuar em cena, criando fatos que o coloquem em constante destaque, instalando-se no centro de uma hipotética assembleia permanente a partir da qual possa continuar como protagonista.

Claro, dependerá da disposição da imprensa de criar uma espécie de "editoria Lula". Fará de tudo para isso.

Com qual objetivo? O pessoal tanto pode vir a ser uma futura candidatura à Presidência ou, como aventou outro dia um bom observador da cena, a governador de São Paulo a fim de tentar derrubar de vez a cidadela mais poderosa do PSDB.

O objetivo político mais geral está claro: consolidar um projeto de poder a partir da construção da hegemonia definitiva do PT.

Vida como ela é. Mal terminaram as eleições, o governador do Rio, Sérgio Cabral, abriu campanha contra a "hipocrisia e a demagogia" defendendo a descriminalização do aborto e a legalização do jogo.

Causas pertinentes se bem pesadas e medidas em face das demandas da sociedade e da precaução do Estado como guardião da legalidade e do bem-estar da coletividade.

Por isso mesmo, temas que governantes e candidatos a representantes populares deveriam debater em público preferencialmente antes de se submeterem a voto. Para não padecerem dos males da demagogia e da hipocrisia pré-eleitoral.

Síntese. O Poder Legislativo no Brasil não se dá ao respeito, não merece respeito e isso está traduzido na figura do palhaço de 1 milhão de votos que o eleitor decidiu mandar a Brasília para que suas excelências se lembrem permanentemente de como a população vê o Congresso.

Uma instituição à altura de um semianalfabeto que se deixou usar por espertalhões profissionais, cuja matéria-prima é a união da desqualificação do Parlamento com a despolitização de uma sociedade referida no entretenimento.

E agora há quem, entre os bem-pensantes que não votaram nele, o celebre dando-lhe status de vítima do preconceito elitista.

O mesmo raciocínio conferiu a Severino Cavalcanti, quando eleito presidente da Câmara, proteção das críticas por encarnar o esforço do homem simples que chegou lá. Há registros.

Isso meses antes de ser obrigado a renunciar, pego em flagrante delito de corrupção.

No apagar das luzes :: Rubens Ricupero

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Reconhecer o Estado palestino se enquadra nas retificações que Dilma sinaliza na diplomacia?

O reconhecimento do Estado palestino é dessas iniciativas no apagar das luzes que os governos tomam para criar fato consumado para os sucessores ou para poupar-lhes o desgaste de decisão controvertida.

Mais do que o gesto em si, interessa indagar em que medida ele se enquadra ou não nas retificações de rumo que Dilma Rousseff sinaliza na diplomacia, na política econômica e na política estrita. Em outras palavras, a decisão será o fim de uma política ou o começo de outra?

Na substância, é difícil contestar o reconhecimento. Tornou-se universal a tese em favor da coexistência de Israel e do Estado palestino. Em relação às fronteiras de 1967, a recusa da aquisição de território por conquista militar decorre tanto das resoluções da ONU e do direito internacional quanto da doutrina sempre sustentada pelo Brasil. Restam oportunidade e conveniência. A primeira pode ser fabricada, como se vê da desenxabida versão de que a decisão só saiu agora por causa da carta do presidente palestino...

A conveniência não é quanto ao efeito sobre o próprio problema. Desse ponto de vista, conforme admitiu o ministro Amorim, a medida é simbólica, pois nada mudou no terreno. As fronteiras palestinas vão depender, como sempre, de negociação que refletirá a correlação das forças em presença. O máximo que a iniciativa brasileira poderá fazer e estimular passo idêntico de países como a Argentina e o Uruguai, pouco influindo sobre os que contam em termos de poder: os aliados europeus da Otan e outras nações próximas dos EUA.

Da perspectiva do interesse nacional, o gesto acentua tendência anterior de aproximar o governo brasileiro dos árabes e distanciá-lo de Israel e dos americanos. Em relação à esses últimos, ao Congresso, à imprensa e aos lobbies judaicos dos EUA (bem como da comunidade judaica no Brasil), haverá perdas adicionais. O mínimo que se pode dizer é que não tornará mais fácil promover junto a tais setores causas brasileiras até de caráter comercial, para não falar da aspiração ao Conselho de Segurança.

Como não é claro o que se espera em troca obter dos árabes, deve-se deduzir que a decisão é questão de princípio ou doutrina, não de interesse. Nada haveria a objetar se a diplomacia de Lula se destacasse pela coerência na fidelidade aos princípios. Não é esse o caso, como se conclui dos votos do Brasil sobre direitos humanos ou da inconsistência de condenar golpe contra a democracia em Honduras, ao mesmo tempo em que se cortejam ditaduras assumidas como Cuba ou o Irã.

Portanto, não sendo matéria de princípios, só pode ser de inspiração doutrinário-ideológica. De fato, as circunstâncias do reconhecimento - seu momenta tardio, o efeito surpresa de não ter havido debate - se ajustam a guinada da política exterior na última metade do segundo mandato: Honduras, condenação ao acordo militar EUA-Colômbia, declarações sobre greve de fome de prisioneiros de consciência em Cuba, visita ao Irã e acordo sobre urânio enriquecido.

O traço comum a essas ações é que reanimam o apoio de correntes de esquerda e tradição antiamericana, intensificando a oposição de setores centristas ou conservadores, inclusive a maioria da imprensa e meios empresariais. Isto é, são medidas que não visam a edificar consenso; ao contrário, é como se, desistindo de converter os adversários, o governo tivesse optado par radicalizar.

O estilo "paz e amor" foi posto de lado na campanha, partindo-se para ataques a mídia, ameaças de lei de "controle social", apelos a "extirpar" a oposição, seguidos da efetiva liquidação de candidaturas de oposicionistas aguerridos, sem esquecer os problemas suscitados pelo plano impropriamente chamado de direitos humanos.

Como revelou o mapa eleitoral do segundo turno, uma reação de medo a essa polarização alienou o apoio das classes médias, levando os estrategistas da situação a mudarem de tom. Desde o discurso da vitória, tem sido nítido o esforço de exorcizar o medo e reocupar o centro. É o que se percebe nos apelos à união nacional, garantias de liberdade de imprensa e religião, promessas de cortes de gastos, combate à inflação. O esforço estendeu-se à diplomacia na decisão de mudar o comando do Itamaraty e na entrevista na qual a presidente eleita condenou o apedrejamento no Irã, mostrou-se sensível aos direitos humanos e fez aceno positivo aos EUA.

Ora, não há como harmonizar o espírito conciliador de tais gestos com o do reconhecimento. Este parece marcar o fim da política anterior, ou quase (pode haver, sob pretexto natalino, a libertação do terrorista Cesare Battisti ou algo parecido). A permanência de boa parte dos ministros, inclusive do assessor de política externa da Presidência, indica uma continuidade básica, temperada pelos sinais de mudanças importantes e animadoras.

Até agora a mudança é de discurso. É preciso, quanto antes, que ela saia do papel e se traduza em fatos: cortes efetivos, abandono de projetos inviáveis como o trem-bala, conciliação do crescimento com o meio ambiente.


Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro da Fazenda: foi secretário-geral da UNCTAD - Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento

Entre o real e a fantasia :: Suely Caldas

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Em oito anos de poder, o governo Lula acumulou erros e acertos. Os acertos foram amplificados, maquiados e glorificados nos seis volumes impressos do balanço de gestão registrados em cartório na última quarta-feira. Já os erros foram omitidos, ignorados. "Errar é humano", "o homem aprende com seus erros" são assertivas aplicadas a todos os mortais, menos a Lula. Afinal, seu governo alcançou a perfeição absoluta, ocupou o vazio deixado por todos os antecessores que, na sua interpretação, "nada fizeram" no seu tempo.

Menos Lula, menos! Difícil avaliar se, nos últimos oito anos, os acertos do governo superaram os erros ou o contrário. São valores incomparáveis, seja no grau de benefício ou prejuízo à população, seja no tempo ou no espaço da construção da história recente. Nas três áreas em que a atuação do governo é determinante para a vida do País e de seu povo, é possível afirmar genericamente que o governo Lula acertou mais na economia e errou muito na política e na área social - o sucesso do Bolsa-Família não apagou os fracassos na saúde, na educação, na segurança e na ausência de investimento em saneamento.

Começando pela área social, a saúde pública foi um fiasco. O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma boa ideia e um estrondoso fracasso de gestão. Hospitais públicos expulsam doentes graves por falta de leitos, de aparelhos de exames, de medicamentos e de médicos; quem depende de saúde pública morre esperando por uma consulta ou uma cirurgia. É um verdadeiro caos que mereceu de Lula o absurdo e soberbo comentário de que Barack Obama precisaria aprender com o Brasil como fazer saúde pública.

Como nunca reconhece erros, culpou a oposição pela falta de recursos. Esquece de que o crescimento da receita tributária ultrapassou em muito a arrecadação da CPMF. Negou-se a aprender com erros e hoje, apesar da popularidade em alta, tem 54% da população a reprovar sua atuação na saúde.

Menos grave, porém deficitário, é o quadro da educação: crianças vão à escola e não entendem o que leem. O Brasil é lanterninha do mundo em matemática; professores estão despreparados e mal remunerados; vexames nos exames do Enem; em pesquisas sobre água e esgoto tratados, temos a companhia de países pobres da África. E vai por aí... Ponto positivo para o Bolsa-Família, que hoje alcança mais de 11 milhões de famílias e ajuda a ascensão social de muita gente.

A atuação profissional da direção do Banco Central foi responsável pelo sucesso na estabilidade econômica. Levou o Brasil de devedor a credor na relação com outros países e encurtou os efeitos da crise de 2008. Mas não foi capaz de convencer Lula e seus ministros de gastarem menos e economizarem dinheiro para pagar a dívida pública. Com isso a dívida bruta saltou para 60% do PIB.

O programa de microrreformas do ex-ministro Antonio Palocci para tirar o País do atoleiro da ineficiência da economia foi abandonado pelo sucessor Guido Mantega. Mas fato é que o a economia cresceu, o número de empregos com carteira assinada subiu e a renda salarial se expandiu, alimentando o consumo e a alta das taxas do PIB.

Mas o legado mais desastroso de Lula se deu no plano político. A decepção com a generalidade da corrupção, com um presidente tolerante que, em vez de punir, todo tempo absolveu corruptos e distribuiu cargos técnicos a políticos despreparados e mal-intencionados. Na sua história recente, o Brasil não colecionava tantos escândalos, abusos e desvios do dinheiro público. A amplitude do loteamento de cargos entre os partidos políticos deu força e fez do fisiologismo uma degradante política de Estado que Lula aceitou, incentivou e ampliou.

O que restou de avanços nessa área do governo anterior ele tratou de destruir, ferindo as instituições e golpeando a democracia. E agora ele vem dizer que o mensalão não existiu, foi tentativa de golpe. Quer dizer que o relatório do ministro Joaquim Barbosa, do STF, que classificou o mensalão de quadrilha chefiada por José Dirceu foi uma farsa?


Jornalista e professora de comunicação da PUC-RIO

Por quem é mais racional:: Luiz Carlos Bresser Pereira

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

A crise demonstra que os governos dos Estados são mais racionais que agentes privados e suas empresas

Durante os 30 anos neoliberais aprendíamos que o Estado era a fonte de todos os males; que o setor privado estava sempre equilibrado porque era coordenado pelo mercado,

enquanto que o Estado -regido pela política- era objeto do populismo econômico e se constituía em um obstáculo maior ao crescimento com estabilidade.

Além de antidemocrática, a tese era falsa, porque as crises financeiras demonstraram através dos tempos que o mercado jamais foi capaz de controlar o comportamento especulativo dos agentes privados.

E era meia verdade em relação ao Estado, porque há políticos populistas, mas a maioria é responsável fiscalmente, porque sabe que dessa responsabilidade depende sua sobrevivência.

O que não estava claro era que os grandes deficit financeiros do Estado eram devidos ao setor privado, não ao populismo dos políticos.

Quando estoura uma crise bancária, o Estado, primeiro, age como um emprestador de última instância para socorrer os bancos, e, em seguida, aumenta os seus gastos para restabelecer a demanda agregada e evitar o colapso do sistema econômico.

Em consequência desses dois fatos, incorre em grande deficit público, e a dívida pública se torna muito elevada não obstante não tenha havido irresponsabilidade fiscal.Este fato tornou-se patente em relação aos grandes países ricos na crise financeira global de 2008.

Na maioria dos casos os governos estavam com suas contas equilibradas; a irresponsabilidade foi privada e se expressou em bolhas de ativos: de imóveis, de commodities, e do mercado acionário.

Quando a crise arrebentou, apenas o Estado tinha condições de socorrer o setor privado. Foi o que fez; em consequência, seu deficit público e sua dívida pública explodiram.

Estes fatos podem ser observados de maneira clara em um país pequeno como a Irlanda, que, agora, está na crista da crise financeira de 2008, hoje transformada em quase-estagnação dos países ricos.

O governo estava com seu deficit público sob controle, de forma que, entre 2004 e 2007, a dívida pública diminuiu de 30% para 25% do PIB. Entretanto, quando rompeu a crise e os bancos quebraram, o deficit público explodiu e, neste ano, se forem considerados os aportes aos bancos, o deficit público será de 32% do PIB! Em consequência, a dívida pública já no ano da crise subiu para 44%, em 2009 foi para 65%, e neste ano deverá alcançar 99% do PIB!

O caso é exemplar. E a crise como um todo mostra uma coisa mais geral: os governos dos Estados são mais racionais do que os agentes privados e suas empresas. Sim, mais racionais.

O político toma decisões com razoável conhecimento das consequências de seus atos, enquanto que os agentes privados fazem profecias autorrealizadas ao preverem o aumento dos preços dos ativos e os comprarem.

Entram, assim, em um ciclo irracional de manias, euforias e crises. Em outras palavras, as bolhas de ativos surgem, crescem e explodem porque compras de ativos promoveram a valorização prevista.

Não estou sugerindo que o mercado seja uma instituição de coordenação econômica que possamos dispensar. É insubstituível. Mas desde que permanentemente regulado e rerregulado por quem é mais racional: o Estado.

Sucesso do fracasso:: Míriam Leitão

DEU EM O GLOBO

Ficou a impressão de que Copenhague foi um grande fiasco e Cancún, um inesperado sucesso. A verdade é mais complexa. As negociações do clima desafiam simplificações. As duas COPs foram complementares. Cancún consagrou o que foi desenhado em Copenhague. Na Dinamarca e no México, o mundo caminhou, mas não o bastante para tirá-lo da beira do desastre climático.

Em Cancún, o acordo que surgiu foi a formalização de pontos que haviam sido duramente negociados em Copenhague: num novo acordo do clima, países como os Estados Unidos, China, Índia e Brasil terão metas; será formado até 2020 um Fundo Verde para o qual os países se comprometem a mobilizar recursos de US$100 bilhões ao ano; os países concordam com a meta de dois graus centígrados como limite de aumento da temperatura média da Terra.

Os registros de especialistas aqui e no exterior mostram que houve diferenças de métodos de negociação entre as duas Conferências das Partes da Convenção da ONU sobre Clima. No ano passado, houve papel demais. Uma verdadeira guerra de documentos dominou o debate da COP-15, a partir do vazamento de um texto que foi negociado pela Dinamarca com alguns países. Depois, apareceram outros textos: da China, da Europa, dos países-ilha, enfim, cada grupo que se sentia excluído resolveu fazer sua própria versão do que seria o documento final. Isso alimentou um ambiente de suspeitas e radicalização.

O México aprendeu com os erros da Dinamarca, e a presidente da COP-16, a chanceler Patricia Espinosa, escolheu um formato leve, informal, sem papéis. Isso, segundo especialistas, reconstruiu a confiança entre os países, que havia sido rompida em Copenhague, mas ao mesmo tempo deixou a COP no ar até o final. Não se sabia se não haveria nada - já que nada estava escrito - ou se haveria algum avanço. Nas últimas horas é que o documento final foi redigido e chegou-se a um bem sucedido conjunto de acordos.

No final, tumultuado e dramático de Copenhague, o que havia obtido apoio foi apresentado a um plenário esvaziado e conflagrado. Os chefes de Estado tinham saído de fininho. O presidente da Conferência, primeiro-ministro dinamarquês, Lars Rasmussen, não teve pulso para administrar o veto de grupos minoritários. No final, ele apenas "tomou nota" do texto final. Esse texto, do qual apenas se tomou nota em Copenhague, orientou a busca de consensos da bem sucedida direção mexicana da crise. Houve uma cena inesquecível para quem viu, em Copenhague, no tenso último dia de negociação. O presidente do México, Felipe Calderón, se distanciou de tudo e ficou olhando, como se fosse um mero espectador, debruçado sozinho no balcão do mezanino do Bella Center. Embaixo, a imprensa se agitava.

Nas salas do mezanino, os chefes de Estado se desentendiam. Ele, distante de tudo, apenas mirava. Hoje, parece que naquele momento ele estava aprendendo com os erros da Dinamarca.

Os analistas afirmam que Calderón e Espinosa foram transparentes, trabalharam para que todos os países se sentissem consultados, e evitaram a ideia de que um acerto feito entre os grandes seria imposto aos países menores. Houve também um avanço produzido na prática da direção firme de Espinosa. Nas COPs, as decisões são tomadas por consenso. Isso permite que pequenas minorias - ou, às vezes, um único encrenqueiro - impeça um acordo do agrado da vasta maioria. Quando a Bolívia ficou solitariamente contra o acordo de Cancún, Espinosa tomou nota da divergência, mas fechou o acordo. Desta forma, ela criou uma interpretação nova de consenso, bem mais sensato do que a unanimidade praticamente impossível de se conseguir.

O momento talvez mais difícil de Cancún foi quando o Japão ameaçou abandonar o Protocolo de Kioto. As negociações nas COPs andam em duas trilhas, conhecidas por siglas. Aliás, negociadores do clima adoram siglas. A trilha AWG-KP discute um novo período de compromisso dos signatários do Protocolo de Kioto, porque o atual vai até 2012. A trilha AWG-LCA negocia um novo acordo de longo prazo do clima. O problema em relação a Kioto é que ele só estabelece metas para quem faz parte dele, e isso deixa de fora grandes poluidores como Estados Unidos, China, Índia e Brasil. Ele é parcial, mas é o único que está em vigor; o outro é amplo, mas ainda é um esboço. E está parado em alguns pontos: o acordo terá força de lei ou não? A China aceita que suas metas sejam verificadas internacionalmente? Haverá um fundo para os países em desenvolvimento? Quem administra o fundo?

Cancún conseguiu contornar a rebeldia do Japão e manteve Kioto ainda sem novos compromissos. Confirmou-se o Fundo Verde para financiar ações de adaptação e mitigação em países em desenvolvimento. Ele será gerido temporariamente pelo Banco Mundial. O mundo confirmou que dois graus é o limite máximo tolerável de aumento da temperatura média da Terra. O mecanismo financeiro de compensação por desmatamento evitado - o REDD - ficou mais bem definido.

O mais importante de Copenhague, que poucos se deram conta, é que até Poznam, na COP-14, Estados Unidos, China, Brasil e Índia não aceitavam ter metas. Na COP-15, os quatro aceitaram. Copenhague ficou conhecida como fracasso, mas nela o mundo atravessou uma fronteira da qual não pode mais recuar. Foi o que Cancún mostrou.

Os cientistas quando olham o cenário se afligem. A soma de todos os compromissos não leva o mundo ainda a um terreno firme, longe dos cenários de tragédias ambientais mais severas e mais frequentes, que a ciência prevê e todos tememos.

Lá vem o Patto: Urbano Patto

DEU NO JORNAL DA CIDADE DE PINDAMONHANGABA/SP

Pode parecer um tanto pernóstico, mas cada vez mais fico com uma sensação de “terceiro mundismo” quando vejo essas cerimônias de autoglorificação pessoal e demonstrações explícitas de bajulação como essa reunião festiva recentemente promovida pelo presidente Lula na qual juntou todos os ministros que tiveram passagem pelo seu governo, Zé Dirceu inclusive, a guisa de despedida e prestação de contas.

Se há uma coisa em política que me causa preocupação é o chamado culto à personalidade e a visão de que a realização das coisas públicas depende exacerbadamente e quase que exclusivamente da vontade e/ou do tirocínio dos líderes.

Sem negar a importância e o papel das lideranças, não há como negar que, historicamente, sempre que se concentra poder e o povo é colocado sob tutela a Democracia se reduz e, nas situações extremas, chega a ser eliminada. Nas situações menos ferozes, como a do Brasil atual, os resultados são o populismo e o messianismo e, quase sempre, a produção desses espetáculos tão megalomaníacos quanto caricatos.

Num país com carências crônicas e com conhecidos problemas na educação, que facilitam a manipulação e a ilusionismo da população, tal situação é reproduzida nas mais diversas escalas. Não é incomum encontar-se esse perfil de liderança até mesmo em vereadores e líderes comunitários e religiosos. Agem como se fossem os provedores de soluções que acontecem apenas por sua ação ou com sua intermediação, quando tais soluções deveriam decorrer simplesmente do cumprimento pelo poder público de suas obrigações básicas.

A ascensão ao poder central da República de uma presidente como Dilma Roussef que não tem esse perfil carismático e que está se portando discretamente nesse processo de transição, poderá abrandar no imaginário do povo brasileiro um pouco dessa característica personalista e messiânica do atual governo, dando-lhe um caráter mais objetivo e menos fantasioso.

Resta saber se Lula, que é o grande fiador de Dilma e que tratou a sua campanha e vem tratando a composição do novo governo, como um fruto de sua vontade e de sua onipresença, gostará de uma mudança desse tipo, pois quanto mais racional seja a vinculação da população com a política e com a administração pública menos o seu jeitão populista e falastrão cativará o eleitor.


Urbano Patto é Arquiteto Urbanista, Mestre em Gestão e Desenvolvimento Regional e membro do Conselho de Ética do Partido Popular Socialista - PPS - do Estado de São Paulo. Críticas e sugestões: urbanopatto@hotmail.com

O legado do fenômeno Lula

DEU EM O GLOBO

A principal definição da Era Lula foi feita pelo próprio presidente Lula. No meio do primeiro mandato, citando Raul Seixas, ele afirmou: “Eu sou uma metamorfose ambulante”. Foi o momento em que as políticas que o PT sempre condenara na economia começavam a mostrar resultado sob Lula. Há 15 dias, traçando um retrato de seu governo, ele disse: “O segredo do meu sucesso é ter feito apenas o óbvio”. Um balanço por dentro da administração Lula mostra que isso é verdade. O que revela um paradoxo: um presidente com uma popularidade recorde e um governo com poucos avanços em áreas-chave para o país, como educação, saúde, saneamento, infraestrutura e as reformas política, previdenciária, trabalhista e sindical.

A construção do mito Lula

Presidente deixa o poder após oito anos como fenômeno político, apesar de seu governo pouco ter avançado em áreas fundamentais da administração, como educação, saúde, saneamento, infraestrutura, reforma agrária e sem ter feito as reformas política, previdenciária, trabalhista e sindical

A13 dias de deixar o Planalto, o presidente Lula exibe uma inédita popularidade na História da República. Seu governo foi marcado por um avanço sem precedentes na educação do país; na saúde, ele consolidou o SUS, deixa serviços de qualidade para a população e uma gestão mais eficiente dos recursos; como se esperava de um governo de esquerda, Lula universalizou o saneamento básico; da mesma forma, cumpriu a promessa histórica do PT e fez a reforma agrária; na área da infraestrutura, deixa aeroportos novos, estradas duplicadas e portos desburocratizados; além disso, usou a sua ampla maioria no Congresso para avançar na reforma política e na atualização da legislação previdenciária, das relações trabalhistas e sindicais.

Infelizmente, nenhuma das afirmações anteriores é verdadeira — com exceção da estratosférica popularidade de Lula. Mas como podem conviver um presidente bom e um governo ruim? Só a estabilidade econômica (herdada do governo anterior) explica isso? Seria o Bolsa Família? Ou é tudo fruto do carisma pessoal do ex-operário, com quem o povo brasileiro se identifica? Para debater essas e outras questões e contradições da riquíssima Era Lula, O GLOBO publica este caderno especial. Míriam Leitão, Merval Pereira, Marco Antonio Villa e Carlos Alberto Sardenberg analisam esses últimos anos, em que “nunca antes na História deste país...” houve paradoxos tão grandes. Articulistas que escreveram no primeiro caderno especial sobre o governo Lula, ainda sobre as expectativas que o rondavam naquele 2002, reexaminam seus textos e analisam o que foi feito e o que ficou para depois.

O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e o ex-ministro de Desenvolvimento Social Patrus Ananias, responsáveis pelos resultados que mais ajudaram a alavancar a popularidade do presidente, na economia e no social, falam de suas experiências. Da mesma forma, o chanceler Celso Amorim, um dos poucos ministros a atravessar os oito anos ao lado de Lula, fala sobre a política externa do período. O jornalista José Casado revisitou as promessas eleitorais de Lula e também faz um balanço do que foi cumprido ou não. Um resumo de oito anos de um governo é trabalho para a História. O presidente Lula já começou a fazer o seu: na quarta-feira, fez um balanço cor-de-rosa de sua gestão numa solenidade oficial. O GLOBO deixa a sua contribuição, ainda no calor do governo, neste momento em que Lula deixa o Planalto e entra para a História.

Lula já sofre de crise de abstinência do gabinete do 3º andar do Planalto

DEU EM O GLOBO

Em discursos e atos, presidente não esconde a saudade que terá do poder

Chico de Gois

BRASÍLIA. O presidente Lula está sofrendo de um mal que, se cura houver, só se manifestará, na hipótese mais otimista para ele, em 2014, na próxima eleição presidencial: crise de abstinência do gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto. Ou, para simplificar: saudade adiantada de ser presidente da República. O homem que tentou, tentou, tentou e conseguiu se tornar presidente, e presidente de novo, agora, quase como o personagem do romance de Gabriel García Márquez, vê anunciada a sua partida - não desta vida, é claro, mas da vida do glamour, em que ele, e só ele no Brasil inteiro, era o único presidente da República de plantão.

Os sinais da síndrome são visíveis. Ou audíveis. Desde o início do mês, Lula vem anunciando que vive um calvário. Não passa uma solenidade na qual não vocalize que faltam tantos dias para deixar a cadeira de presidente e que está difícil desencarnar, um verbo que adotou para si, como se, depois de passar a faixa para Dilma Rousseff, fosse vagar pelo mundo como um espírito de luz.

Ainda lá atrás, antes de entrar nessa fase mais saudosista, ele brincou quando falava de passar o poder para Dilma, que, se pudesse, "colava a faixa presidencial na barriga".

Até as pastilhas agora vão para Dilma

Na terça-feira passada, durante a entrega do Prêmio Nacional de Direitos Humanos, no Planalto, Lula deu o tom da lamúria:

- Está chegando um momento chato e desagradável do governo porque está chegando o final do mandato, e cada dia que vai se aproximando, tudo o que faço é a última que eu faço como presidente da República. Então, isso vai criando uma emoção desnecessária - disse.

Na cerimônia de formatura do programa Todos pela Alfabetização, dia 10, em Salvador, demonstrou em praça pública seu dilema de vida:

- Oito anos, Waldir (Pires, ex-ministro da Defesa), oito anos é pouco para quem está no governo, é muito para quem está na oposição. Para mim foi nada. Quando eu comecei a gostar, pronto: venceu meu mandato.

Para amenizar a dor da despedida, Lula recorre à pilheria de si mesmo. Outro dia, diante de ilustres convidados no Palácio do Planalto, provocou, com bom humor, o ministro da Fazenda, Guido Mantega. Com uma pontinha de inveja do auxiliar que passará mais tempo no poder do que ele - Mantega está com Lula desde seu primeiro mandato e foi confirmado para permanecer na função no governo de Dilma -, Lula disse que, com a proximidade de se tornar um ex igual aos tantos que passaram por ali, já é menosprezado.

- Eu queria, primeiro, contar uma coisa para vocês: o que é o começo e o que é o fim de um mandato. Durante todo esse tempo, o Guido se sentava comigo nas reuniões e ele colocava uma latinha de pastilhas Valda cheia para eu chupar o quanto quisesse. Já vi agora ele em reunião com a Dilma: ele coloca a caixinha de pastilhas do lado da Dilma. Hoje ele chegou aqui, eu, como estava habituado, falei: Guido, cadê a pastilha? Ele tinha só uma no bolso! Certamente, esqueceu a caixinha na mesa de reuniões com a Dilma. Não tem nada, não.

Nada como um dia atrás do outro, Guido.

Na verdade, o que Lula tem é o mesmo mal que outros que passaram pela mesma cadeira. Fernando Henrique Cardoso, que permaneceu o mesmo tempo que Lula na função, também sofreu com o fim do poder. Dizia que um presidente se acostuma à rotina de ter sempre alguém que lhe faça tudo, até mesmo abrir uma porta. E que deixar esse cotidiano não é tarefa fácil.

Mas, o que mais FH sentiu falta, em termos de objeto de culto, não foi da cadeira propriamente dita, mas da piscina do Palácio da Alvorada, como ele próprio disse. Era ali que, diariamente, quando não estava em uma de suas muitas viagens, dava umas braçadas.

Mas nem todos são como Lula e FH. O ex-presidente Itamar Franco, que assumiu a função por imposição das circunstâncias, mantinha em seu gabinete uma folhinha na qual marcava com um X os dias que ia passando na sala que, para ele, se parecia com uma prisão. Itamar não tinha apego à faixa.

- O poder é efêmero - constatava o mineiro, que se sentia mais feliz governador de seu estado do que presidente de um país tão diferente.

Outro que deixou o cargo de presidente, mas não o apetite pelo poder, foi José Sarney, que cunhou a expressão "liturgia do poder". Apesar de fora do gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto, ele prova da cozinha de Lula - que, dizem os mais frequentes, tem mais sabores do que o café sem gosto servido na sala do presidente.

PSDB deve adiar embate Serra-Aécio mais uma vez e manter Sérgio Guerra

DEU EM O GLOBO

Senador, atual presidente do partido, está cotado para permanecer no cargo

Adriana Vasconcelos

BRASÍLIA. Diante da disputa entre José Serra e Aécio Neves pelo comando do PSDB, o nome do senador Sérgio Guerra vai ganhando espaço para permanecer na presidência do partido e, assim, adiar um pouco mais a briga entre as estrelas tucanas. Isso pode ser, na avaliação de alguns tucanos e aliados do DEM, outro grande erro do PSDB: não enfrentar logo seus fantasmas e divisões internas para tentar chegar unido em 2014.

Após a ofensiva de Serra para conquistar a presidência do PSDB, Aécio e outros nomes de expressão do partido, como o senador Tasso Jereissatti (CE), o governador eleito de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso reagiram à intenção do ex-governador de São Paulo e candidato derrotado à Presidência de garantir antecipadamente a vaga de candidato do partido à sucessão presidencial de 2014.

Tanto que teria chegado a Serra um recado: se ele insistir em se candidatar à presidência do PSDB, aliados de Aécio prometem lançar o nome do mineiro para disputar a vaga com ele. Isso teria feito Serra repensar seus planos, embora publicamente Aécio negue que pretenda disputar a presidência do PSDB.

Aécio tenta se cacifar rumo às eleições de 2014

DEU EM O GLOBO

Adriana Vasconcelos

Alckmin e FH defendem Sérgio Guerra no comando do PSDB

BRASÍLIA. Embora o ex-governador de Minas e senador eleito Aécio Neves tenha garantido não ter interesse, neste momento, em disputar a presidência do PSDB ou outra função no Senado, ele não esconde suas pretensões para 2014. Após abrir mão da vaga de candidato à Presidência em favor de José Serra este ano, respeitando a chamada fila do partido, o mineiro considera que chegou a sua vez de se arriscar em uma disputa nacional. E, se para garantir isso, for obrigado a conquistar a presidência do partido, dificilmente hesitará.

Como uma briga interna neste momento não interessa a Serra nem a Aécio, a aposta entre tucanos influentes no partido é que a melhor alternativa será manter Sérgio Guerra no comando do PSDB. A estratégia contaria com o apoio de parte do tucanato paulista, inclusive Geraldo Alckmin e Fernando Henrique Cardoso.

Apesar da derrota sofrida nas eleições deste ano, Serra estaria confiante de que poderá repetir a trajetória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que venceu a disputa presidencial após perder três eleições. Mas a estratégia montada por Serra para tentar assumir o comando do partido e garantir, antecipadamente, a vaga de candidato à Presidência em 2014 é vista com preocupação pelos tucanos.

Até porque parte deles considera que os 45% de votos recebidos por Serra no segundo turno teriam sido mais fruto de uma insatisfação do eleitorado com o atual modelo de gestão adotado pelo PT, do que uma preferência real pelo candidato tucano. Os 20 milhões de votos obtidos no primeiro turno pela candidata do PV, Marina Silva, ajudam a comprovar essa tese de que uma parcela do eleitorado não queria Dilma nem Serra.

Serra teria procurado apoio do DEM

A movimentação de Serra também estaria incomodando alguns aliados do PSDB. Na última semana, o ex-governador teria telefonado para o líder do DEM no Senado, José Agripino (RN), para anunciar que apoiaria seu nome para a presidência do partido, num sinal claro de que trabalha em parceira com o ex-senador Jorge Bornhausen para tirar o deputado Rodrigo Maia (RJ) do comando da legenda.

Há quem acredite que Serra estaria estimulando o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, a trocar o DEM pelo PMDB, ainda que os objetivos deles sejam distintos. Serra estaria interessado em pôr um aliado no PMDB paulista, de olho numa nova disputa presidencial em 2014. Já Kassab está em busca de uma sigla para disputar o governo de São Paulo contra os tucanos.

Na expectativa de manter a seu lado parte do tucanato paulista, Aécio teria autorizado a bancada mineira na Câmara a apoiar o deputado Duarte Nogueira (SP), ligado a Alckmin, para assumir a liderança do PSDB.

Após dois mandatos, Lula deixa reformas para Dilma

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Bernardo Mello Franco

SÃO PAULO - No primeiro discurso com a faixa no peito, o presidente Lula afirmou, no Planalto, que "nenhum momento difícil" o impediria de fazer "as reformas que o povo brasileiro precisa".

Oito anos depois, ele descerá a rampa do palácio longe de cumprir a promessa. Deixará para a sucessora, Dilma Rousseff, o desafio de modernizar a Constituição nos campos político, previdenciário, tributário e trabalhista.

O programa que levou o PT ao poder, em 2002, serve como inventário das ideias esquecidas. Do financiamento público de campanhas ao fim da guerra fiscal, quase todas ficaram na gaveta.

Sobre as mudanças, só há um consenso: sem elas, será difícil manter o país na rota do crescimento.

Entre a posse em 2003 e a despedida em 2010, o governo promoveu seminários, criou grupos de trabalho e enviou ao Congresso diferentes propostas de reformas.

No entanto, as iniciativas esbarraram em lobbies contrários, na desarticulação dos aliados e na falta de vontade política do próprio Lula, que deixou de tratar o tema como prioridade depois de garantir a reeleição.

Em seu primeiro ano, a administração petista chegou a aprovar a versão inicial de duas reformas: a tributária, que visava eliminar a cumulatividade de impostos sobre a produção, e a da Previdência, que propunha, para os servidores públicos, um teto de aposentadoria equivalente ao do setor privado. Mas os textos ficaram aquém do script original e não tiveram a continuação prevista.

Em outros campos, o fracasso foi maior. Para formular a reforma sindical, o governo chegou a montar um fórum de 600 integrantes, que levou dois anos para encaminhar relatório à Câmara. O texto nunca foi votado.

A reforma política, sempre defendida nos discursos presidenciais, também ficou fora da pauta parlamentar. Foi trocada por duas minirreformas eleitorais e pelo ativismo do Judiciário, que instituiu a fidelidade partidária.

Entre aliados, a avaliação é que o escândalo do mensalão, em 2005, selou o abandono das mudanças. O deputado Maurício Rands (PT-PE), ex-líder do partido na Câmara, vê o episódio como decisivo: "A crise do mensalão estagnou o curso das reformas. Depois disso, a oposição se radicalizou e o governo canalizou toda a energia política para se defender".

No segundo mandato, os projetos de reformas perderam espaço para os investimentos de infraestrutura do PAC e os programas sociais.

O governo chegou a apresentar uma minuta de reforma política no ano passado, mas ela também não foi à frente. Agora, o presidente diz que se empenhará fora do poder para aprová-la.

No mesmo tom da posse de Lula, o programa de governo apresentado há oito anos anunciava um ambicioso "programa de reformas".

A reforma tributária previa a unificação das alíquotas de ICMS dos Estados e o imposto sobre grandes fortunas. No campo trabalhista, o PT se comprometia a dar fim às contribuições obrigatórias. E, na Previdência, a acabar com as distorções entre os setores público e privado.

"À medida que a população envelhece, a reforma fica mais urgente", alerta o economista José Márcio Camargo, da PUC-Rio. "Todos concordam que o sistema atual é inviável. A pergunta é se a Dilma vai pagar o preço necessário para mudá-lo."

A exemplo de Lula, a presidente eleita caprichou nas promessas durante a campanha deste ano. Chegou até a fixar prazo de cem dias para a reforma tributária.

Mesmo que se empenhe, enfrentará a oposição dos Estados produtores, já que a cobrança do ICMS será feita nos Estados consumidores. "É o problema de toda reforma no Brasil", diz Rands. "No começo todo mundo é a favor. Já na hora de votar..."

Carga tributária é recorde, mas investimento patina

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Com gasto engessado, infraestrutura recebeu o mesmo que nos anos FHC

Confirmada previsão de crescimento econômico de 7,5%, impostos serão 37% do PIB; espaço para cortar despesa é mínimo


Fernando Canzian

SÃO PAULO = Em breve o presidente Lula deixará o cargo após oito anos com o Estado se apropriando de cerca de 37% de tudo o que o Brasil tiver produzido em 2010. Será mais um recorde de "nunca antes na história deste país".

Se confirmada a expectativa de crescimento da economia de 7,5% neste ano, o PIB (Produto Interno Bruto) de 2010 chegará a R$ 3,42 trilhões. Com a arrecadação estimada em R$ 1,27 trilhão, ela equivalerá a 37,1% do PIB.

No período pós-democratização, o governo Lula terá sido o que mais aumentou o peso dos impostos sobre a sociedade: 4,5 pontos percentuais a mais em oito anos.

Nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso, o aumento foi de quatro pontos (de 28,6% para 32,6%), segundo série estatística do IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário).

Mesmo tendo acelerado a arrecadação como proporção do PIB, Lula (na média de sete anos, até 2009) não ultrapassou FHC nos investimentos em infraestrutura.

Apesar dos PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) 1 e 2, ambos os governos investiram o mesmo: uma média de 0,7% do PIB.

Com o resultado de 2010, é provável que Lula supere a média de FHC, mas por pouco. Ela passaria a 0,76%.

CORTE DE GASTOS

Quase a totalidade do aumento da carga tributária sob Lula foi destinada a gastos correntes, que se tornaram obrigatórios e permanentes.

Por conta desse "engessamento" do gasto, no momento em que se discute a necessidade de cortes (e a presidente eleita, Dilma Rousseff, prometeu fazê-lo) é pequena a margem para contenção.

Apesar da arrecadação em alta, só 8% do gasto não financeiro (excluindo os juros da dívida pública) são passíveis de cortes caso o governo opte por não reduzir ainda mais os investimentos.

Segundo especialistas, o aumento do gasto e sua contrapartida (o baixo nível de poupança do Estado) vêm produzindo ao menos três grandes desequilíbrios:

1) Uma trajetória mais lenta na queda da dívida pública, pois, mesmo tendo mais receita, o governo diminuiu a poupança para pagar juros;

2) A possibilidade crescente de o Banco Central ter de elevar os juros (e a dívida pública) para conter a atividade econômica e a inflação;

3) A rápida deterioração das contas externas, já que o país importa mais para atender ao consumo em alta.

O pano de fundo de tudo é um modelo de crescimento baseado em crédito e consumo (públicos e privados). Não em mais investimentos.

"O Brasil insiste em um padrão, o mesmo que ajudou a eleger Dilma, que vai chegando ao seu limite", afirma o especialista em contas públicas Raul Velloso.

Pelos seus cálculos, cerca de 51 milhões de brasileiros/ eleitores (1 milhão deles servidores federais) absorvem hoje 70% do gasto não financeiro da União via salários, aposentadorias e outros benefícios sociais.

Há quatro anos, eram 40 milhões. Daí a margem cada vez menor para diminuir as despesas (veja quadro).

CONTA DE JUROS

Para o economista Amir Khair, Dilma poderá ter receitas maiores para investimentos caso consiga diminuir as despesas com juros.

Khair elogia a ação do Banco Central de restringir a oferta de crédito ao consumo pela via do recolhimento de parte dos depósitos à vista dos bancos (o chamado depósito compulsório no BC).

Isso tende a esfriar a economia, evitando juros e dívida pública maiores.

Patrocinadora do Impostômetro, painel que mede a arrecadação tributária, a ACSP (Associação Comercial de São Paulo) considera difícil a meta de conter rapidamente os gastos em 2011.

"Gasto quase sempre tem nome e endereço. E ele foi ficando cada vez mais engessado", diz Marcel Solimeo, economista da ACSP.

Na semana passada, Lula e o presidente do Senado, José Sarney, criticaram o fim da CPMF (o imposto do cheque) e a correspondente perda de R$ 150 bilhões desde 2008.

"Não ficaria surpreso se o governo voltar a insistir no retorno da CPMF e conseguir aprová-la", diz José Elói Olenike, presidente do IBPT.

Escuta da PF flagra ministeriável do PMDB

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Deputado Pedro Novais pediu ao empresário Fernando Sarney que beneficiasse um aliado na Justiça Eleitoral

Conversas indicam que filho do senador Sarney foi procurado por sua relação próxima com Nelma Sarney, do TRE

Fernanda Odilla

SÃO LUÍS - O futuro ministro do Turismo, Pedro Novais (PMDB-MA), foi flagrado em escutas da Polícia Federal pedindo ao empresário Fernando Sarney que beneficiasse um aliado na Justiça Eleitoral.

Filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), Fernando é investigado há três anos pela PF. As conversas interceptadas pela polícia mostram que ele foi procurado pelo futuro ministro por manter uma relação próxima com a tia, a desembargadora Nelma Sarney, à época corregedora do Tribunal Eleitoral do Maranhão.

Indicado ao Ministério do Turismo pela bancada do PMDB da Câmara, Novais, que diz não se recordar das conversas gravadas pela polícia, é alinhado politicamente aos Sarney no Maranhão.

O pedido ao empresário seria em favor do prefeito de Bacuri (MA). Ele enfrentava problemas com a Justiça Eleitoral por não ter participado da convenção que escolheu o candidato do PSB à prefeitura e, a seguir, fez a própria reunião para ser aclamado como representante do partido para disputar o cargo.

Em 14 de julho de 2008, uma hora depois da primeira tentativa frustrada de falar com Fernando Sarney, o deputado e futuro ministro ligou novamente, por meio do gabinete na Câmara, em Brasília. Na conversa, ele pede ao empresário que interceda junto à desembargadora Nelma para ajudar o prefeito.

Novais diz que uma ala do PSB da cidade maranhense fez convenção paralela para impedir a candidatura do prefeito, que tentava a reeleição (veja a transcrição).

DIÁLOGOS

"Como o juiz local é uma pessoa ligada à Nelma, o prefeito me pediu para falar com você pra ver se você interfere no sentido de que o prefeito, que é o Washington [Oliveira], que votou em mim, [tenha decisão] favorável a ele", diz o deputado.

"Manda um fax ou e-mail com informações detalhadas para eu falar com ela", responde Fernando, dizendo que se encontraria com a desembargadora naquele dia.

No dia seguinte, Novais liga novamente para o empresário. Fernando Sarney diz estar com o prefeito naquele momento e que está "vendo como resolver" a situação.

Na ocasião, Novais e o prefeito aliado trocaram algumas palavras: "Está tudo encaminhado, né?", pergunta o deputado. Diante da resposta positiva e do agradecimento a Novais, eles desligam.

O prefeito ganhou o caso com a decisão do juiz local. O processo seguiu ao TRE um mês depois, e Nelma Sarney foi nomeada relatora. Como estava de licença, um juiz substituto deu voto favorável ao prefeito, contrariando parecer do Ministério Público Eleitoral.

Washington foi reeleito prefeito de Bacuri.

O advogado João da Hora, que defendeu a coligação adversária, está convencido de que foi derrotado pela ação de políticos poderosos.

Ele conta que foram muitas as pressões e diz que sempre suspeitou de tráfico de influência -definido como crime de solicitar ou obter vantagem para influir em órgão público, que prevê de dois a cinco anos de prisão.

"Ele [Washington] teve muita gente ao lado dele. Correu tudo ao arrepio da lei", disse o advogado.

Além do pedido de Pedro Novais, as escutas da Polícia Federal indicam ao menos outras duas situações em que Fernando recebe pedidos de aliados, e os casos acabam passando pelas mãos de Nelma, com decisões favoráveis na Justiça Eleitoral.

Gabeira: ‘A tradição é estar onde as coisas acontecem’

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Dezesseis anos depois de ter trocado a redação pela política, Gabeira volta à ativa como colaborador do ‘Estado’

Fernando Paulino Neto / RIO

Aos 70 anos e sem exercer o jornalismo há 16, desde que se elegeu pela primeira vez deputado federal, Fernando Gabeira planeja reinventar a vida e avançar como jornalista. Em seus planos está a colaboração para o Estado, onde estreia em janeiro como articulista da página 2, blogueiro do estadão.com.br e repórter especial multimídia do jornal. Nas reportagens especiais, fará texto e contribuições em áudio para a Rádio Eldorado e para a TV Estadão.

Na última vez em que fez uma cobertura internacional, a guerra da Iugoslávia, Gabeira utilizou o telex para enviar suas matérias. Hoje, acredita que a evolução tecnológica é importantíssima. Não só por permitir a utilização de diversas mídias em uma mesma reportagem, mas pela possibilidade de "sobrevivência sem papel e tinta", com o advento do iPad.

Gabeira se propõe a fazer uma "quarentena" de temas mais próximos ao que abordou em recentes campanhas políticas. O objetivo é dissociar a imagem de político do jornalista. Pretende abordar principalmente assuntos como meio ambiente - em especial as enchentes -, Olimpíada, América Latina e questão nacional, "que, por enquanto, fica entre parênteses".

Sua volta à redação traz com ele o espírito de repórter de prontidão. "Eu não sou jornalista de sentar e fazer só comentários. Minha tradição é de ir onde as coisas acontecem. Esse jornalismo que gosto de fazer se rege pelas mesmas leis que Gentil Cardoso determinou para o futebol: ‘Quem se desloca, recebe’. Você tem de estar lá."

O que o sr. espera encontrar de diferente? As novas mídias são um desafio?

Os instrumentos à disposição hoje são muito maiores e mais perfeitos do que no passado. Significa que você tem mais tempo para fazer o trabalho e aperfeiçoá-lo. Agora descobriram uma nova bactéria que pode sobreviver sem o fósforo. Pode ser que o iPad seja uma nova vida para nós e possamos sobreviver sem o papel e a tinta. O processo de evolução está em curso. Isso é o mais importante que existe. Você tem também uma mudança no leitor, que passou a ser um usuário e um produtor, interagindo com o material. Mas, na verdade, são os jornais que gastam quase 30% de seu orçamento checando as notícias.

Qual seria o espectro da cobertura do Rio?

Existe uma curiosidade muito grande sobre o Rio no cenário internacional, o que já existia, mas foi estimulado pela Olimpíada e pela Copa do Mundo. Existe uma interrogação. O Rio tem condições de realizar bem uma Olimpíada? E, é claro, dentro dessa grande pergunta, a questão da segurança está envolvida. As UPPs foram construídas inicialmente como uma tentativa de criar um cinturão de paz em torno das áreas mais usadas pela Olimpíada.

O debate é se a segurança é para a Olimpíada ou para o Estado no conjunto. O cobertor não vai ficar curto?

No Alemão (conjunto de favelas na zona norte do Rio), o governo foi impelido a mudar de estratégia e antecipar a invasão. A presença do Exército, como Força de Paz, não há dúvida que estendeu o cobertor um pouco. Por que fugiram os traficantes do Alemão? Por que fizeram um cerco à Vila Cruzeiro e eles fugiram para o Alemão. E não havia cerco no Alemão. Ali era preciso no mínimo uns 2,5 mil homens para fazer frente aos 600 homens armados no Alemão. O cálculo é sempre de quatro para um. É uma tarefa para o Exército chinês. Precisamos contratar 7 mil policiais por ano para atender a essa demanda, sem contar os que são expulsos por mau comportamento. Nós estamos em duas comunidades no Haiti e isso já nos custa quase cinco vezes o gasto de segurança do Rio. Além disso, aqui no Rio foi um caminho invertido. Você fez obras infraestruturais e sociais onde o tráfico dominava, como Manguinhos, Alemão e Rocinha. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) começou de uma forma estranha. Ninguém escreveu ainda a história de como foi possível o PAC no Alemão. Embora eu tenha absoluta certeza de que a polícia tem gravações telefônicas e depoimentos que possam reconstituir essa história. Evidentemente que isso não vai aparecer, até porque o WikiLeaks não está interessado.

O sr. se preocupa com o problema das enchentes. O que mudou desde o ano passado?

Não mudou nem a organização da Defesa Civil. Nós temos uma série de dificuldades. A Defesa Civil não está estruturada como deveria, os bairros não estão se organizando para essa contingência. É preciso saber onde estão os barcos, onde está a lista das pessoas que não podem se mover. Uma série de providências que no Caribe, com os furacões, eles já estão acostumados. Aqui as enchentes parecem que acontecem de vez em quando. Então acontece o que eu vi no ano passado. Estavam construindo casas para pessoas que tiveram casas destruídas por enchentes no passado, mas os atuais flagelados as ocuparam. A leva de flagelados já era outra.

Como vai ser o governo Dilma em sua opinião?

Estou esperando algumas contradições internas na estrutura do próprio governo Dilma. Mais contradições entre os partidos que compõem a aliança do que contradições entre oposição e governo. Mas esse tipo de contradição vai resultar é em denúncia específica. Devo ficar um pouco à margem disso.

Como o sr. vê a questão do controle social da mídia?

Eu sempre tive uma posição contrária à expressão ‘controle da mídia’. Muitas vezes o que está por baixo da expressão ‘controle social’ é o controle de algumas entidades aparelhadas pelo partido do governo. Eu vejo com muita suspeição. Acho que a imprensa tem de ser deixada livre e trabalhar com todas as possibilidades. É claro que uma regulamentação do setor do ponto de vista de ajustar o papel das teles, o papel das telefônicas, é viável e possível. Mas não nenhum tipo de controle.

Que momento é hoje o da América Latina?

America Latina não é uma coisa única. Eu gostaria de fazer uma passagem pelos países que estão experimentando esse novo tipo de política, como a Bolívia, o Equador, a Venezuela e, parcialmente, a Argentina, para ver o que está se passando, qual o mecanismo dessa democracia plebiscitária. Os caminhos da Venezuela começam a ser bastante complicados. É um momento histórico interessante. Não com uma visão apologética, mas porque acho que vai haver problemas.

Campanha da ‘despedida’ de Lula custa R$ 20 milhões

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Peças publicitárias para marcar fecho da era Lula na Presidência estão sendo divulgadas em 325 veículos

Julia Duailibi

A campanha publicitária de "despedida" do presidente Lula da Presidência custou R$ 20 milhões. Com um novo slogan "Estamos vivendo o Brasil de todos", a propaganda em rádio, TV, jornais e revistas fala sobre o crescimento econômico dos últimos anos e ressalta números sobre redução da desigualdade social.

As peças publicitárias começaram a ser exibidas em dezembro e, de acordo com a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom), estão sendo divulgadas em 325 veículos de comunicação pelo País.

"Comida na mesa, carteira assinada, crianças na escola, vida no rumo. Estamos vivendo o Brasil de todos", diz uma das duas propagandas veiculadas em revistas. Na outra peça, o texto diz: "Está no número, está no dia a dia dos brasileiros. Estamos vivendo o Brasil de todos."

Segundo a Secom, o novo slogan "Estamos vivendo um Brasil de todos" é uma "evolução do conceito" anterior "Estamos vivendo um novo Brasil". A campanha foi feita pelas agências Propeg e Matisse, duas das três que detêm a conta da secretaria.

A verba para publicidade institucional da Presidência, que tem como objetivo divulgar ações e projetos do governo federal, foi orçada em R$ 167 milhões neste ano. Segundo o sistema de execução orçamentária das contas do governo federal, até agora já foram empenhados (comprometidos) R$ 165 milhões. Em todo o ano passado, foram usados cerca de R$ 159 milhões com esse mesmo tipo de propaganda. As peças publicitárias pretendem fazer uma "revisão" sobre os atos do governo.

"Nestes últimos anos, nós brasileiros nos encontramos com nós mesmos", começa a propaganda de um minuto na televisão. "Nos encontramos com o respeito, com a dignidade, com os projetos de vida, com a força que a gente tem e com a vontade de crescer. Nos reencontramos com nossos sonhos, com a felicidade, com a esperança de um futuro melhor. E ele será melhor, com certeza. Enfim, nós brasileiros nos reencontramos com o Brasil", diz o locutor, enquanto aparecem imagens de pessoas se abraçando.

No rádio, os spots dizem que a "maior riqueza" do País é o "seu povo": "O nosso país se reencontrou com o seu povo e descobriu que essa é sua maior riqueza. É por isso que o Brasil de hoje é melhor que o de ontem. E movido pela força, pelos sonhos desse povo, a gente sabe que o Brasil de amanhã será ainda melhor."

Gastos. Segundo dados da Secom, foi gasto, até a primeira semana de dezembro, R$ 1,1 bilhão com propaganda em mídia da administração direta e indireta do governo federal - no ano passado foi R$ 1,6 bilhão. O total não inclui publicidade legal (divulgação de balanços), gastos com produção de comerciais e eventos.

A maior parte dos recursos foi destinada às emissoras de televisão (R$ 707 milhões). Depois vieram os jornais (R$ 100 milhões), as rádios (R$ 99 milhões) e as revistas (R$ 82 milhões). O Ministério da Saúde foi a pasta que, até agora, usou mais recursos: R$ 137 milhões, seguido pelo Ministério das Cidades, R$ 60 milhões.

Os órgãos que apresentaram maior crescimento com veiculação de propaganda em relação a 2009 foram o Ministério da Justiça, que até agora praticamente dobrou os custos, chegando a R$ 8,4 milhões, e a Embratur, cujos gastos passaram de R$ 8,2 milhões para R$ 16,1 milhões.

Procurada pelo Estado, a Secom alegou que, nesta semana, divulgará balanço sobre investimentos em publicidade e, por isso, não comentaria os gastos na área.

Cartão de Natal:: João Cabral de Melo Neto

Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.