Nem as fantásticas narrativas de Gabriel Garcia Marques, nem o absurdo teatral de Eugène Ionesco cogitaram produziram cenas mais estapafúrdias e burlescas que as produzidas na pantomima do mensalão.
No palco suntuoso, sob suas capas pretas, os pretores vaticinam lições de direito e de ética, entre sonoridades de roncos e flatulências, na encenação do “maior julgamento da história do país”. Em julgamento, autoridades e personalidades públicas, ex-ministros, deputados, gente do colarinho branco influente no entorno da Presidência da República da era Lula, acusados de crimes de formação de quadrilha, corrupção ativa, lavagem de dinheiro, fraude e evasão fiscal, estelionato, falsificação de documentos e tantos outros.
O Supremo Tribunal Federal é a corte guardiã da Constituição, órgão máximo da organização judiciária nacional, composto por 11 Ministros, nomeados todos pelo Presidente da República. O concurso é político, sem provas ou títulos, dependente de nomeação livre à investidura vitalícia. Portanto, a marmelada começa na própria estruturação do SFT.
No rabo preso do Tribunal, o acesso é mis em cène cujo enredo é escrito na Carta Constitucional. O Presidente da República tem a atribuição de nomear o escolhido. O enredo prevê uma sabatina no senado federal, a nacionalidade de brasileira; ter mais de 35 anos, reputação ilibada e vasto saber jurídico. Onde se lê tal ladainha, leia-se, “ser amigo do rei”.
Carapeba, velho pescador do Canto do Mangue, identifica da praia os cardumes e as espécies de peixes mesmo à distância e nas águas turvas. Nem o jaboti sobe sozinho no, telhado,nem o peixe vai prá panela, se encontramos um jaboti no telhado ou um peixe na frigideira, alguém o colocou lá.
Pela lógica do pescador, deve haver jaboti demais no telhado do STF. Haja vista o empurrão presidencial à nomeação e o beija-mão sanatorial que os especialistas na mímica da corrupção traduzem como “uma mão lava a outra”.
Obviamente, os especialistas em sofismas e retórica do mundo jurídico, podem contestar a afirmativa com centenas de jurisprudências firmadas nos pretórios, na sólida e tradicional doutrina jurídica e na própria lei, pois o ato atacado “consiste em atribuição constitucional do Presidente, devidamente previsto na Carta Magna”.
O Carapeba não concluiu o ensino fundamental, nem entende a linguagem do direito. Mas aprendeu no mar e na vida o sentido de rabo preso e de marmelada. De imoralidade. De falta de independência, quando sobram razões e motivos para acreditar em relações ou pendências econômicas, políticas, afetivas, ou meras dívidas de gratidão.
Afinal, o triste episódio do mensalão serve para expor as células cancerígenas do Estado e ressaltar as debilidades do arremedo de democracia à brasileira. A mídia bem que poderia aproveitar o ensejo para desencadear um debate sério sobre a reforma do Judiciário, a reforma política, a reforma tributária, o pacto federativo, entre outras.
Salve a liberdade de imprensa, mas a grande mídia que a tudo acompanha ufana-se com o escândalo em si, na obtenção da audiência a qualquer custo, a ver o circo pegar fogo, e divulgar detalhes bizarros dos ardis da trupe e gafes na função jurídica mambembe.
Na ênfase dos aspectos secundários da trama, a mídia não informa e não forma. As questões essenciais são encobertas pelas gafes do espetáculo. Espetáculo de quinta categoria com produção onerosa para o bolso do contribuinte.
Na peça acusatória do espetáculo, no papel de Arlequim de Pirandello, servo de dois amos, o senhor Procurador Geral da República. O Sr. Roberto Gurgel foi nomeado e empossado pelo então Presidente da república Luís Inácio Lula da Silva. Esse fato explica a peça processual na qual sobra farofa e falta carne. Milhares de páginas, uma denúncia gigantesca como um Zepellin, mas cheia de ar, pífia. Prato cheio para as defesas regiamente pagas. Da montanha de papel da denúncia sairão ratos. Insubsistências e prescrições. Quem responderá pela prescrição dos crimes? No final, culpados não cumprirão pena alguma. Mas o espetáculo deve continuar. Alguém deve receber uma condenação, talvez até exemplar.
Um boi de piranha para manter as aparências e preservar aura de seriedade da companhia artística. No fim da opereta bufa, a manada dos corruptos escapará incólume e o Cláudio Valério no papel do boi escolhido para o sacrifício das piranhas. Por Valério ninguém chorará. Mas, o Valério já foi boi gordo e influente, amigo do rei. Lula jura de pés junto não ter qualquer relação com a quadrilha e emotivo como ele é, decerto chorou por ver pessoas amigas e colaboradores no caminho da perdição. Porém, as circunstâncias mudam, e em política nada é o que aparenta, qual leciona o florentino. Assim, são lágrimas na chuva, como dizíamos na Moscou que não acreditava em lágrimas, e, portanto, não espere o boi de piranha por lágrimas nem dos polvos, nem das lulas.
O ministro Joaquim Barbosa com empáfia de pretor rejeitou, en passant, no seu relatório, a preliminar de inclusão do ex-presidente Lula no processo. Seria cômico, não fosse trágico. O ministro Barbosa excluindo da lide, sem maiores fundamentações, a pessoa que o nomeou o respeitável cargo de ministro do STF.
O ministro José Antônio Dias Toffoli também foi nomeado pelo Lula. Com agravante. Ele foi assessor e amigo do réu Zé Dirceu, o ex-comissário todo poderoso da era Lula. Mais. A mulher do ministro foi advogada do réu. No vasto saber jurídico do Tofolli, lamentavelmente, não contam as noção elemntares sobre impedimento e supeição.
O ministro Toffolli não se declarou suspeito ou impedo, como devia. O chefe da Procuradoria, o Gurgel, idem, e não suscitou o incidente: “ para não atrasar o andamento da sessão”. Tão célere o Gurgel, deve ter pressa para ver os acusados presos e por isso permite que juízes supeitos julguem o caso. A sessão “histórica” atrasou em cinco horas, motivada por bate boca entre os ministros. Nem o palco luxuoso, nem as capas pretas esconderam a nudez dos reis, deselegantes, sem respeito a liturgia do cargo.
“Nunca na história desse país” um Presidente nomeou tantos ministros. A caneta do Lula escreveu os nomes de Carlos Ayres Britto ( 2003), Joaquim Barbosa ( 2003), Ricardo Lewandowski (2006), Cármen Lúcia Antunes Rocha (2006), José Antônio Dias Toffoli (2009) e Antonio Cezar Peluso (2010).
Dizer que a nomeação pelo Presidente Lula não interfere na imparcialidade e na idoneidade do julgamento no qual Lula tem interesse direto é sofisma. O julgamento da quadrilha que atuava no governo do PT não é apenas jurídico, é político. Porém, sobrepujar, grotescamente, as regras básicas da legalidade democrática, do devido processo legal, da ética social é um gravíssimo precedente.
O estado de direito não comporta marmelada para salvar a pele do benfeitor, um simulacro de julgamento. Se o STF safar os sequazes, colocará a última pá de cal na credibilidade em estado de decomposição desse tribunal que é gigante pela força do poder, mas, mirrado em matéria de direito e de justiça.
Aprendizes dos primeiros anos de direito sabem a distinção entre suspeição e impedimento. Diferença que se perfaz pelo grau de comprometimento do juiz na causa. O escopo dos institutos é possibilitar o afastamento do juiz suspeito ou impedido a fim de assegurar a impessoalidade e a imparcialidade das decisões judiciais.
No impedimento, presume-se, absolutamente, a parcialidade do juiz. Na suspeição, presume-se, relativamente, o comprometimento. As causas de impedimento e de suspeição estão previstas, respectivamente, nos artigos 134 e 135 do Código processual civil.
Parte da doutrina civilista leciona que o rol não é numerus clausus, porquanto não se restringe aos casos taxativamente previstos, e alberga todas as situações de incompatibilidade lógica da função de julgar do juiz. É matéria de ordem pública, por essa razão, pode a suspeição ou o impedimento ser suscitado a qualquer tempo.
O dever legal e moral do magistrado é declarar-se impedido ou suspeito, por motivo de foro íntimo. Segredo de Polichinelo para a sociedade brasileira é por que os ministros apadrinhados na nomeação no governo Lula não se declaram suspeitos ou impedidos.
*Professor Dr. Titular do Departamento de Ciências Jurídicas/UNICAP e pesquisador do núcleo de História do Direito do grupo de história social do Departamento de história da mesma instituição