segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Opinião do dia: Luiz Werneck Vianna*

Diante desse cenário, embora a composição dos quadros governamentais revele opções erráticas que prometem ser fontes de problemas futuros, além das óbvias dificuldades para um governo que pretende realizar reformas dependentes de uma sólida base congressual com que não conta, o horizonte que agora se entrevê é de céu de brigadeiro para o início do seu mandato. No mais, as forças sociais e políticas que já se opõem a ele, esfaceladas e desarvoradas como se encontram, não devem, ao menos de imediato, significar obstáculos efetivos para a realização dos seus propósitos, e com todas as devidas vênias, não será um centro radical, esse espécime que não se vê desde a Revolução Francesa sob o consulado de Napoleão Bonaparte, que fará as vezes de uma oposição robusta.

Uma imagem trazida dos atletas do surf que praticam sua modalidade em ondas grandes talvez seja inspiradora para a oposição. Ondas grandes em geral vêm em série, um desequilíbrio do atleta que nelas se aventura pode ser-lhe fatal, em caldos sucessivos que não lhe permitam a respiração, mantendo-o preso ao remoinho das águas que o impeçam de voltar à superfície. Em cuidado com esses riscos, seus praticantes fazem exercícios de apneia, com que se preparam para o pior em suas evoluções.

Isso que aí está, aqui e alhures, é, sem dúvida, uma Praia da Nazaré com suas medonhas ondas grandes. Não se vai enfrentá-las sem treinamento adequado e sem lideranças de tirocínio comprovado, senão o caldo é certo, como o do AI-5, de infausta memória, há 50 anos. As lideranças se farão no caminho. E o caminho, adverte o poeta, se faz ao andar.

*Sociólogo, PUC-Rio. ‘As ondas grandes e a oposição’, O Estado de S. Paulo, 6/1/2019

Fernando Gabeira: Salvação e salvadores

- O Globo

Política externa do PT foi desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita

Outro dia, li uma nota levemente crítica ao ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores. Ele escrevera um artigo afirmando que Deus estava na diplomacia, na política, em todos os lugares.

Embora não seja propriamente um teólogo, considero bastante previsível a crença na onipresença divina. Algumas religiões estendem o dom da ubiquidade a todos os espíritos. Para dizer a verdade, alguns deuses, como o hindu Shiva, têm poderes muito mais ecléticos: dança, destrói, faz um carnaval.

Não temos o dom divino da onipresença porque somos humanos e não toleraríamos a presença na vastidão. No meu caso, dispensaria Bruxelas sob chuva e as noites de Codó, no Maranhão.

O que me intriga no pensamento do ministro Araújo é sua crença na salvação do Ocidente, liderado por Donald Trump. Essa história de salvação, creio que surgiu, pela primeira vez, com Zoroastro, perpassou o cristianismo, reaparece na religião laica que é o marxismo e sobrevive em alguns setores da ecologia que acreditam poder salvar o planeta.

Se a salvação para mim é um conceito duvidoso, o que diria do salvador? De que podemos ser salvos por alguém como Trump, que diz às crianças que Papai Noel não existe e contrata advogados para silenciar mulheres com quem transou?

Se pelo menos Trump usasse o que se diz sempre — errar é humano, a carne é fraca, atire a primeira pedra —, os valores ocidentais estariam em melhores mãos. O problema central é a relação com os Estados Unidos. Ela precisa de equilíbrio, e há quem trabalhe nesse tema desde o século passado.

Afonso Arinos, em 1952, quando ainda esboçava suas ideias sobre uma política externa independente, defendeu o Acordo Militar Brasil-EUA. O governo Vargas queria isso, mas não teve coragem de dar as caras. Resultado, Arinos apanhou sozinho da esquerda.

Renato Lessa: Presidencialismo de assombração

Ilustríssima /Folha de S. Paulo

Para autor, novo governo se estrutura a partir de uma linguagem, dotada de formas próprias de classificação das coisas, com quatro núcleos: rejeição ao contraditório, horror à mediação, atitude antiglobalista e desprezo pela liberdade política e cultural experimentada pelo país nos últimos 30 anos.

Comoventes os esforços da cobertura televisiva da posse de Jair Messias Bolsonaro. Fez-se de tudo para isolar nas falas neopresidenciais resíduos civilizatórios mínimos.

Houve mesmo quem destacasse como sinal de alento positivo o juramento do empossado, de compromisso com a salvaguarda da Constituição, em esquecimento de que se trata de texto de leitura e declinação compulsórias, segundo as regras do ritual de entronização. Em ato performático complementar e, no mínimo, ambíguo, o vice-presidente, ao tomar posse, declamou a mesma peça como quem dirigia à tropa uma ordem unida.

Cada um escuta o que quer. Nada a fazer a respeito. Há quem enfatize, ao ouvir o empossado, a vocalização dos lugares comuns de respeito à Constituição e de "governar para todos". Mas em época de hipervalorização do "novo", parece mais apropriado destacar o inaudito: a plena vigência de uma ideologia de combate ao "viés ideológico". Supor que se trate de má-fé, pelo evidente contraditório da expressão, talvez seja conceder aos defensores da novidade generosa hipótese de natureza cognitiva.

Parece haver entre eles crença inamovível de que só há "viés ideológico" nas palavras e nos atos dos "inimigos da pátria". Uma vez denunciado e afastado esse viés, a verdade e a realidade emergiriam de forma límpida, para que o Brasil "se reencontre consigo mesmo", tal como posto pelo novo chanceler.

Descreve-se, assim, o trajeto da consciência alienada, a que busca fora dos termos da realidade o significado de todas as coisas. O reencontro com a pátria repõe natureza objetiva da realidade, com o consequente imperativo de um governo de técnicos.

Cada um escuta o que quer; assim é se lhe parece. Tal como nos ensinou o sábio Pirandello. Mas nada do que se diz, em princípio, pode ser tomado como inconsequente.

Se digo que "amo a humanidade", desse ato genérico de fala nada pode ser diretamente inferido em termos práticos. É um daqueles sentimentos oceânicos, cujas consequências são indeterminadas. Mas, se envio a meu vizinho uma ameaça de morte, compreendo que seja prudente que vá à polícia dar parte da ameaça.

Esse é o limite do relativismo: o arco de consequências "expectáveis" —como bem dizem os portugueses— de nossos atos de fala. Em termos diretos, há atos de fala com relação aos quais é imperativo que se vasculhe o âmbito de suas consequências possíveis.

Sem a intenção de estabelecer qualquer analogia entre regimes políticos, é o caso de lembrar de Victor Klemperer, um professor alemão de literatura românica, e de sua obra-prima a respeito da linguagem praticada pelos donos do poder na Alemanha entre 1933 e 1945 ("A Língua do Terceiro Reich", de 1947, foi publicada entre nós em 2009 pela editora Contraponto).

Judeu e exilado em seu próprio país, Klemperer observou de modo fino a medida em que o vocabulário e a linguagem dos nazistas configuravam uma experiência com a realidade do mundo. A análise da linguagem torna-se, dessa forma, essencial à compreensão do experimento histórico e cultural.

Em termos filosóficos, a relação entre linguagem e formas de vida viria a ser consagrada pelo filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein em suas "Investigações Filosóficas", publicadas postumamente em 1953.

Como disse, não parto de qualquer analogia entre regimes políticos. O que aqui iniciamos, há menos de uma semana e a crer nos mantras de celebração de novidades, é um inédito experimento de presidencialismo de assombração. Algo que começa a ser estruturado como linguagem, dotada de formas próprias de classificação das coisas.

A meu juízo, e de modo não exaustivo, a linguagem do presidencialismo de assombração comporta quatro núcleos, dos quais o primeiro aparece como premissa maior. São eles, pela ordem: o Paradigma da Ponta da Praia (PPP); o Paradigma do Horror à Mediação (PHM); o Paradigma Patriótico (PP); e o Paradigma Antimodernismo (PAM).

O PPP —elemento antigo, implícito e estruturante da visão de mundo presidencial— foi apresentado ao país de modo brutal a poucos dias da eleição de outubro passado. Trata-se de alusão a lugar de "desova" de cadáveres de opositores políticos à ditadura e expressão corrente entre os tipos mais duros dos porões daquele regime.

O então candidato prometeu a seguidores enviar a esquerda "para a Ponta da Praia", facultando, é verdade, as menos incanceláveis alternativas da prisão e do exílio. O PPP é elemento cognitivo e operacional de uma visão eliminacionista da política, pela qual o corpo político é percebido como unitário, mantidas as rígidas distinções entre cores: verde-amarelo e vermelho; rosa e azul.

A figura do "inimigo da pátria" retorna, indicando o não pertencimento da esquerda e dos desajustados ao conjunto da nação. Nossa extrema direita, embora cognitivamente preparada para tal, parece não odiar o imigrante. Mas rejeita o estranho, que começa a ser configurado na forma de um inimigo objetivo, o operador do tal "viés ideológico".

O PHM, Paradigma de Horror à Mediação, foi reiterado, durante a diplomação dos eleitos, por meio de exortação ao poder popular. Elemento cultural estruturante da campanha, fez-se acompanhar de uma celebração dos valores e dos instintos pré-políticos.

O componente de abstração necessário à política desfaz-se em prol de um elogio da autenticidade. Os modos de expressão devem relevar de substâncias verdadeiras e impulsos autênticos, livres da ação de mecanismos de contenção.

É compreensível, nessa chave, o horror ao "politicamente correto", o que indica o quanto do combate cultural incide sobre o campo da verdade. Libertos das restrição do "correto", podemos nos sentir livres para dar vazão aos termos de nossos preconceitos e, se calhar, passarmos ao ato.

O tratamento conferido à imprensa durante a posse presidencial só pode ser entendido à luz do PHM, assim como os atos de hostilidade a veículos específicos e de elogio aos aplicativos de comunicação instintiva e imediata.

*Denis Lerrer Rosenfield: O candidato e o governante

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro não pode ficar preso a discursos de campanha, exige-se dele coragem de decidir

O discurso do presidente Jair Bolsonaro em sua posse foi coerente com suas posturas de candidato. Retomou suas teses centrais, formuladas no calor da disputa eleitoral, como se, agora, pudessem simplesmente servir como orientações de governo. Uma coisa é a campanha, com suas necessidades retóricas, voltadas para o convencimento do cidadão, outra, muito diferente, reside nas ideias concretas de governar.

O candidato conseguiu articular em torno de si tanto sentimentos difusos e setoriais da sociedade quanto posturas focadas em dizer não ao petismo e ao politicamente correto, identificado com concepções de esquerda. O combate ao PT foi a sua grande bandeira, fazendo ver à opinião pública a sua responsabilidade pelo descalabro fiscal, pelo desemprego, pela ideologização da educação, pela criminalidade desenfreada e pela corrupção generalizada.

Foi, nesse sentido, imensamente favorecido pela escolha eleitoral petista, que preferiu, ao arrepio da verdade, tornar Lula um perseguido político, quando não passa de um criminoso já julgado e condenado em várias instâncias. Em vez de reconhecer a corrupção em seus governos, optou por se esconder, não assumindo a própria culpa. Poderia ter-se aberto um novo caminho!

Tampouco foi de valia permanecer no discurso inverossímil do “golpe”, quando a Constituição foi fielmente obedecida, até mesmo com o beneplácito de ministros do Supremo que haviam sido escolhidos pelos ex-presidentes Lula e Dilma. A corroborar sua ausência de visão, deu-se ao luxo de não comparecer à posse do novo presidente, numa atitude de não reconhecimento do resultado das eleições e das regras mesmas do jogo democrático. Pode-se dizer que o PT facilitou a vida do candidato Bolsonaro. Este, certamente, agradece!

Acontece que o antipetismo, ao aglutinar diferentes formas de oposição e de descontentamento, terminou por agrupar interesses os mais diversos, alguns abertamente contraditórios entre si. De modo geral, pode-se falar de conservadores e liberais, defensores da ordem e da segurança, partidários da livre-iniciativa e de uma economia concorrencial de mercado, e assim por diante. Conservadores nos costumes e na educação, por exemplo, sinalizam para os valores da família, da religião e da pátria, podendo ou não ser favoráveis a uma economia de livre mercado. Liberais na economia podem ser radicalmente avessos aos conservadores, advogando por uma liberdade generalizada.

A base eleitoral do agora presidente Bolsonaro conseguiu reunir essas diferentes posições, o que fez seu discurso de posse procurar dar satisfação a todas. Em certo sentido, pode-se dizer que o caráter abstrato e genérico de suas formulações foi consoante com os diferentes interesses que abriga em seu seio. Ao procurar atender todos, pouco foi dito sobre o modo concreto desse atendimento, o que certamente agradará a alguns e desagradará a outros.

Lourival Sant'Anna: Brasil se lança Brasil ao nativismo

- O Estado de S.Paulo, 6/1/2019

O discurso de posse do chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, durou 32 minutos. Todo esse tempo foi dedicado a enaltecer a identidade nacional e a advertir para as ameaças às quais ela estaria exposta. O que é curioso, para alguém que argumenta que “não devemos ter medo”.

As questões centrais da condução da política externa e do comércio exterior não foram endereçadas. O Brasil trocará o multilateralismo pelo bilateralismo? O protecionismo pela abertura comercial? De que maneira pressionará a Venezuela ou a China? Repaginará o Mercosul? Dará um ultimato comercial à União Europeia? Continuamos sem saber.

Araújo prometeu “negociar em posição de força”, o que não é nem sequer lógico: ou se negocia em pé de igualdade ou se impõe a vontade à força. Suas ideias estão alicerçadas nas teses nativistas, segundo as quais o nascimento e a cultura deveriam selar uma identidade homogênea, fonte de legitimidade do poder político. O papel do Estado seria proteger essa suposta unidade cultural das influências externas.

Isso é fantasia. Basta dar uma volta no quarteirão para constatar que existem brasileiros com as mais diversas características, crenças e valores. A visão de mundo de alguns brasileiros se aproxima mais da de alguns alemães, japoneses, libaneses, nigerianos ou bolivianos que as de outros brasileiros. O mesmo se passa pelo menos nos 63 países em que trabalhei.

Moralismo. No caso de Araújo, essas convicções vêm temperadas de um fervor moralista e religioso. Em seu discurso, o chanceler vinculou o conceito de nação ao de nascimento, para se colocar contra o aborto e a homossexualidade.

“O globalismo se constitui no ódio através de suas várias ramificações ideológicas e seus instrumentos contrários à nação, à natureza humana e ao próprio nascimento humano”, apregoou. “Aqueles que dizem que não existem homens e mulheres são os mesmos que pregam que os países não têm o direito de guardar suas fronteiras, que propalam que o feto humano é um amontoado de células descartáveis. A luta pela nação é a luta pela família.”

Ou seja, quem é homossexual ou se vê compelido a realizar um aborto não tem o mesmo direito à nacionalidade brasileira, nem terá a mesma proteção do Estado que as outras pessoas que veem o mundo pelas lentes morais de nosso chanceler, embora o governo continue lhes cobrando impostos. Como chegamos a isso, e quais a consequências dessa doutrina sobre a política externa e comercial do Brasil?

Marcus Pestana: Mãos à obra: a reforma inevitável

- O Tempo (MG)

Os espetáculos pirotécnicos que encantam multidões já se apagaram nos céus; a troca de mensagens de esperança e fé entre as pessoas já produziu seu efeito propulsor de novas energias; os discursos de posse já foram dissecados e registrados para a posteridade. Agora é hora de arquivar a retórica e o ambiente festivo, arregaçar as mangas, encarar a crise e colocar a mão na massa em busca de soluções. A gravidade da situação é tão grande, que não podemos perder um minuto. O país tem pressa.

No conjunto de desafios e gargalos nacionais a serem enfrentados, um é absolutamente central: a reforma da Previdência. O maior obstáculo à retomada do desenvolvimento econômico e social no Brasil é o profundo desequilíbrio nas finanças públicas. E o aspecto-chave é encontrar uma equação adequada para o nosso deficitário sistema previdenciário.

A Previdência Social foi o elemento central na configuração do Estado do bem-estar social, que marcou o nascimento da social-democracia no mundo. A luta dos trabalhadores e a evolução da consciência social impunham a humanização do chamado “capitalismo selvagem”. Tarefas que eram supridas pelas famílias e organizações filantrópicas começaram a ser absorvidas pelo Estado. O avanço civilizatório determinava que se conferisse dignidade à velhice, à doença e à pobreza extrema.

Leis esparsas surgiram na Inglaterra e na Áustria. Mas foi a Lei do Seguro Social, introduzida por Bismark, em 1883, na Alemanha, que progressivamente previu o seguro- doença, o seguro contra acidentes de trabalho, a cobertura para a invalidez e para os idosos. Depois, vieram Dinamarca, Suécia, Argentina, Uruguai, Chile, EUA. O México foi o primeiro a constitucionalizar a questão, em 1917.

Rosiska Darcy de Oliveira: Pelo sim e pelo não

- O Globo

Um ano começa. Pessimistas e otimistas se dividem sobre para onde vai o nosso mundo.

E se o mundo que conhecemos tiver, como o ano que passou, acabado? O que a humanidade está vivendo aponta para o sucesso de um projeto ou para sua falência? Em que momento esse mundo teria começado a acabar? Quando caíram as Torres Gêmeas? Quando o sistema financeiro global desabou como elas, com igual estrondo? Quando os sistemas políticos ruíram ao peso da corrupção? Quando o deus dinheiro se tornou a divindade moderna?

Faz poucos anos os balanços otimistas ainda falavam do crescimento do número de democracias, do aumento da expectativa de vida e da escolarização feminina, das espantosas descobertas científicas e tecnológicas, do avanço dos direitos humanos no respeito à diversidade e escolhas individuais.

Eis que as democracias entram em crise de identidade. Sintoma grave, a eleição por voto democrático de personagens pouco afeitos à própria democracia. A democracia vota contra si mesma. Multiplicam-se os chefes de Estado autoritários.

A ciência e a tecnologia, tão festejadas, mostram seu lado sombrio. O escândalo da apropriação e venda de dados pessoais, envolvendo o Facebook, símbolo das alegrias da virtualidade, é exemplo de um paraíso que se esfuma.

O Acordo de Paris, tentativa global de controlar a mudança climática, tropeça na cegueira dos que a negam contra, literalmente, ventos e marés, catástrofes sucessivas.

Cacá Diegues: A honra de viver

- O Globo

De que socialismo nosso novo presidente prometeu nos libertar, em seu discurso de posse no parlatório do Planalto?

Na minha juventude, éramos todos socialistas, queríamos que os homens fossem mais iguais e ninguém passasse fome. Podia até ser uma utopia, mas era um projeto sincero e generoso para a humanidade. Quem fosse inteligente e tivesse coração não podia deixar de ter ideias socialistas, se opondo à irracionalidade desumana do capitalismo. De acordo com nossa formação e crenças pessoais, o ideário podia vir recheado de princípios cristãos ou marxistas, conforme cada momento e a fé de cada um. Foi o socialismo real em alguns países, com sua violência e seu autoritarismo, que começou a nos afastar desse sonho.

Muitos saíram então em busca de uma alternativa à selvageria capitalista nos regimes de welfare state, o bem-estar social e democrático que bastaria às nossas pretensões humanistas. O exemplo estava na Escandinávia e eventualmente em outros países europeus, como a Inglaterra. Até que o vitorioso furacão individualista de Margaret Thatcher conquistasse o país e mais da metade do mundo. Inclusive os Estados Unidos de Ronald Reagan, recém empossado como presidente. Me lembro sempre da célebre e cruel declaração da primeira-ministra britânica, no início de seu mandato: “O socialismo dura até acabar o dinheiro dos outros”. Para Thatcher, o que era chamado de dinheiro público não existia; o que existia era apenas “o dinheiro de quem paga impostos”.

Com o fim da ditadura no Brasil e o início de nossa redemocratização, procuramos, por aqui mesmo, nossa remissão das dores do capitalismo e da pobreza subdesenvolvida. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) parecia uma modernização do socialismo democrático para os trópicos. E o Partido dos Trabalhadores (PT) deixava de ser uma agremiação sindical de resistência para se tornar um partido popular. Eles se alternaram no poder, durante décadas de nossa democracia adolescente, sem nunca atender ao que eles próprios anunciavam. Nós bem que tentamos acreditar neles e em seus líderes mais expressivos.

Marcus André Melo*: A democracia liberal no Brasil

- Folha de S. Paulo

O uso retórico da morte da democracia mais atrapalha do que ajuda

Há uma semana da posse do novo governo, a crônica de Machado de Assis sobre as investiduras dos gabinetes durante o Segundo Reinado é inspiradora para pensarmos as vicissitudes da democracia liberal:

"Oh! As minhas belas apresentações de ministérios! Era um regalo ver a câmara cheia, agitada, febril, esperando o novo gabinete. Moças nas tribunas, algum diplomata, meia dúzia de senadores. De repente levantava-se um sussurro, todos os olhos voltavam-se para a porta central, aparecia o ministério com o chefe à frente, cumprimentos à direita e à esquerda. Sentados todos, erguia-se um dos membros do gabinete anterior e expunha as razões da retirada; o presidente do conselho erguia-se depois, narrava a história da subida, e defendia o programa".

Foram 32 gabinetes formados entre 1847 e 1889. O rito só se completava quando "um deputado da oposição pedia a palavra, dizia mal dos dois ministérios, achava contradições e obscuridades nas explicações, e julgava o programa insuficiente. Réplica, tréplica, agitação, um dia cheio".

Afora a extinção da apresentação dos ministérios (de só sete pastas), a República trouxe outros desgostos a Machado: a supressão das interpelações dos ministros, com dia fixado e anunciado; e o fim da discussão da resposta à Fala do Trono.

A imitação das instituições inglesas é patente nesses exemplos e foi objeto de escárnio da geração de intelectuais iliberais —à esquerda e à direita— que forneceram o maquinário intelectual para a montagem do que poderíamos chamar de Estado iliberal varguista.

Celso Rocha de Barros*: A Previdência não veste azul

- Folha de S. Paulo

Políticos do bolsonarismo sabem que eleitor não votou no plano de Guedes

A primeira semana do novo governo mostrou que o caos da campanha de Bolsonaro persiste: muitos desmentidos, nenhum detalhe sobre qualquer sacrifício que será imposto à população —isto é, nenhuma conta que feche— e uma densa cortina de fumaça de papo furado sobre marxismo cultural, ideologia de gênero, empréstimo do Bolsonaro para o Queiroz e outras coisas que não existem.

Os dois meses de transição, ao que parece, foram completamente desperdiçados.

Relembrando: o presidente anunciou que havia assinado a criação de um novo imposto. Foi desmentido por Marcos Cintra, secretário especial da Receita Federal, e por Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil.

O presidente também apresentou uma proposta para a Previdência Social que foi considerada fraca pelo mercado, e claramente não é a de Paulo Guedes, o superministro da Economia.

Contrariado, Guedes cancelou seus compromissos de sexta-feira para não ter que dar explicações.

Para quem já perdeu o fio da meada: quatro meses atrás, qualquer dúvida de economia deveria ser tirada com Guedes, o Posto Ipiranga.

Quando Guedes, durante a campanha, resolveu discutir aumento de impostos, Bolsonaro reivindicou de volta para si a palavra final. Agora não tem mais palavra final.

O que realmente preocupou os economistas foi a confusão sobre a Previdência.

Vinicius Mota: Descentralizar é programa liberal desde sempre

- Folha de S. Paulo

Corrente federalista que, como a gestão Bolsonaro, prega mais autonomia para estados e municípios remonta à Independência

Descentralizar é um mote do novo governo. O ânimo no discurso geral é aumentar a autonomia e os recursos das administrações locais em detrimento da central.

A corrente federalista, associada ao liberalismo, tem tradição no Brasil. Desabrochou na Independência e viveu um breve apogeu a partir de 1831, quando Pedro 1º abdicou.

Parte dos juízes passara a ser eleita e a exercer poder de fato nas localidades. A reforma constitucional de 1834 criou assembleias provinciais, também eleitas, às quais repassou atribuições e capacidade de tributar.

Para criticar a reação centralista, avassaladora após a manobra da maioridade de Pedro 2º em 1840, Aureliano Cândido Tavares Bastos publicou em 1870 "A Província - Estudo sobre a Descentralização no Brasil".

Leandro Colon: Papel de um presidente

- Folha de S. Paulo

Episódios da primeira semana indicam pontos capazes de criar sérios problemas

Jair Bolsonaro completa nesta segunda-feira (7) o sétimo dia como presidente da República.

É prematuro e desonesto qualquer balanço concreto em uma semana, mas os episódios colecionados desde a posse indicam pontos sensíveis que podem criar sérios problemas futuros ao novo ocupante do terceiro andar do Palácio do Planalto.

Os mais expostos deles são a bagunça na comunicação palaciana e os sinais de divergência entre a equipe econômica e ministros do núcleo político. Nada inédito tratando-se de poder em Brasília. Antonio Palocci, na Fazenda, e José Dirceu, na Casa Civil, por exemplo, discordavam e buscavam protagonismo no começo do primeiro governo Lula.

O episódio do aumento do IOF é mais do que um mal entendido entre alas bolsonaristas. O presidente afirmou, em rápida entrevista coletiva, que assinou o decreto. O ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) admitiu que a hipótese de reajustar o imposto estava na mesa em discussão até a manhã de sexta-feira (4).

Uma reunião de emergência foi convocada à tarde e, pouco depois, ficou a versão oficial de que Bolsonaro apenas se "equivocou" ao declarar ter assinado um documento.

Jairo Nicolau*: Partidos precisam mudar escolha de candidatos

- Valor Econômico

Novas formas de participação são necessárias

Nesse começo de ano, a preocupação dos analistas com os partidos políticos se resume a especulações sobre como eles se comportarão na próxima legislatura do Congresso Nacional. Como será a base partidária do governo Bolsonaro? Como as bancadas do MDB e PSDB se posicionarão? Qual será o tamanho da oposição?

Nesse texto chamo a atenção para outra dimensão da atividade dos partidos: a participação dos cidadãos na vida interna. Foco em um aspecto em particular: o processo utilizado para escolher quem será o candidato do partido.

Falar em escolha dos candidatos numa hora dessa pode parecer fora do lugar, já que as eleições acabaram de acontecer. Mas para saírem da crise de confiança em que se encontram, os partidos brasileiros necessitam se abrir para a participação dos cidadãos e criar novas formas para selecionar os nomes que concorrerão nas eleições.

Em 2017, um grupo de intelectuais e ativistas brasileiros lançou um movimento em defesa do uso de primárias para a escolha dos candidatos à Presidência do ano seguinte. A premissa era que delegar aos filiados (ou até mesmo ao conjunto dos cidadãos) a escolha do candidato a presidente contribuiria para democratizar os partidos e ainda conferiria mais legitimidade ao nome selecionado.

Escolher candidatos por intermédio de primárias é uma prática pouco usual no Brasil. Mesmo o PT, o partido que mais inovou na forma de gerir a vida interna, tem usado esse instrumento com parcimônia ao longo de sua história.

Tradicionalmente, os candidatos que concorrem à Presidência, aos governos de Estado e às prefeituras são escolhidos de duas maneiras. Uma delas é por decisão de um pequeno grupo de dirigentes do partido. Esse processo acontece de maneira mais ou menos informal, mas nem os dirigentes intermediários, nem o militantes de base do partido participam da escolha.

Ricardo Noblat: A Bolsonaro, só o que ele merece

- Blog do Noblat | Veja

Quando Queiroz falará?

Uma coisa é cobrar que Queiroz se explique, e ele deve muitas explicações como cobra o Ministério Público do Rio de Janeiro. Outra, compreensível, é que se cobre também explicações ao deputado Flávio Bolsonaro, recém-eleito senador, para quem Queiroz trabalhava na Assembleia Legislativa.

Por ora, e até que surjam novas razões para isso, não faz sentido cobrar explicações ao presidente Jair Bolsonaro para o cheque de Queiroz que foi parar na conta da primeira-dama Michelle. Bolsonaro disse que o cheque tinha a ver com dinheiro que Queiroz lhe devia. Ninguém o contestou.

Com menos de uma semana no cargo, Bolsonaro já ofereceu motivos suficientes para ser alvo de críticas – e dado ao seu estilo, é de se supor que oferecerá muitos mais. Criticá-lo pelo que não fez, ou pelo que ainda não se provou que fez, só enfraquece seus opositores.

Cida Damasco: Não é só comunicação

- O Estado de S. Paulo

Divergências na equipe sempre há; novidade aqui é o ‘chefe’ ampliar a confusão

Uma semana de governo e já deu para ver que o superministro da Economia, Paulo Guedes, terá muito trabalho pela frente. Não apenas o trabalho inerente ao seu cargo, de estruturar um programa consistente, para dar conta de um sem número de desafios – especialmente a compatibilização da retomada do crescimento com redução das desigualdades, em meio a uma situação de extrema fragilidade das finanças públicas. Nem mesmo a necessidade de “vender” esse programa ao Congresso e vencer as resistências a medidas amargas.

Os transtornos começam com a chefia, que parece desconhecer ou discordar das decisões da equipe econômica e faz declarações controvertidas (sobre propostas para a Previdência, criação/aumento de impostos, acordo entre Embraer e Boeing), que são desmentidas ou “ajeitadas” em seguida. Tudo indica que falta ao presidente uma consciência do peso de suas palavras, dos efeitos de suas idas e vindas sobre os mercados, em que uns ganham e outros perdem dinheiro. Muito dinheiro. Falta também a percepção de que ficaram para trás os tempos de campanha, quando os programas eram genéricos, para não afastar eleitores.

O mais preocupante é que os desvios de Bolsonaro sobre a economia ocorreram só um dia após Guedes apresentar as linhas gerais do seu choque liberal e desencadear um rali na Bolsa e nos mercados de câmbio. Bolsonaro falou em idade mínima de 62 anos para a aposentadoria de homens e 57 para mulheres, alta de IOF, redução de Imposto de Renda e descartou a introdução do “imposto único” nos moldes da CPMF, a curto prazo, na contramão dos recados dados na véspera pelo ministro.

Angela Bittencourt: Aposta em Guedes blinda mercado contra ruídos

- Valor Econômico

Magnitude de derivativos justifica Campos Neto no BC

Reforma da Previdência, privatização acelerada e simplificação tributária com redução e eliminação de impostos são os três pilares da política econômica do governo Jair Bolsonaro. Dois desses três pilares - regime de aposentadorias e tributação - foram alvo de declarações desencontradas na primeira semana do novo comando no Palácio do Planalto, a ponto de o presidente ter sido desmentido por um ministro e um secretário especial na sexta-feira. O bate-cabeça foi perturbador e só não provocou desordem nos preços dos ativos financeiros porque bancos, gestores e investidores apostam 100% no sucesso do ministro da Economia, Paulo Guedes. Mas tamanha confiança não é sinônimo de conforto para grandes investidores que estão atentos à falta de sintonia no primeiro escalão.

Afirmações do presidente sobre temas que envolvem inúmeros interesses provocaram uma profusão de declarações, sugeriram conflito de opiniões dentro do governo e em torno de reformas essenciais para que a economia brasileira avance e abriram um flanco para que adversários políticos classificassem o presidente da República de "desinformado".

O "x" da questão foi a sanção do presidente à prorrogação de incentivos fiscais para investimentos nas regiões Norte e Nordeste, transferida do governo Temer para Bolsonaro que, numa só tacada, também acenou com a possibilidade de redução da idade mínima para aposentadoria, elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e corte da alíquota do Imposto de Renda (IR) de 27,5% para 25%. A fala de Bolsonaro repercutiu. Um aumento do IOF não havia sido aventado pelo governo até então.

Conversa de botequim: Editorial | Folha de S. Paulo

Bolsonaro dá declarações desencontradas sobre Previdência e impostos

O estilo informal e espontâneo certamente contribuiu para o sucesso eleitoral de Jair Bolsonaro (PSL). Em menos de uma semana na Presidência, porém, manifestações simplórias e desencontradas na área econômica provocaram alarmante impressão de improviso e descompasso com sua equipe.

Foram espantosas, no primeiro exemplo, a superficialidade e a imprecisão com que abordou a reforma da Previdência, tema ao mesmo tempo explosivo politicamente e essencial para o êxito do governo.

Em entrevista ao SBT, na quinta-feira (3), afirmou de modo confuso que as idades mínimas para a aposentadoria seriam de 62 anos para os homens e 57 para as mulheres, a serem atingidas até o final de seu mandato.

Tais parâmetros não constam de nenhuma proposta ou estudo técnico conhecido. Até onde se sabe, ou se sabia, o ministro Paulo Guedes, da Economia, pretendia aproveitar o projeto do governo Michel Temer (MDB), que na sua versão atual estabelece 65 e 62 anos.

Bolsonaro tampouco foi claro a respeito das regras de transição para os segurados que já estão no mercado e sobre a que regime previdenciário se referia --se ao dos trabalhadores da iniciativa privada ou ao dos servidores públicos.

A margem para interpretação de suas palavras é tão ampla que nem mesmo há como afirmar se a reforma pretendida será mais dura ou mais branda que a de Temer. Talvez nem haja maior diferença.

Obscurantismo: Editorial | O Estado de S. Paulo

Bem-aventurada será a Nação se o tresloucado discurso de posse do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ceder à realidade – pois pareceu tratar de outra dimensão – e não se concretizar nisto que vem sendo chamado de “guinada” na política externa brasileira.

De antemão, é importante deixar claro que é próprio da democracia que a política externa de um país reflita as escolhas manifestadas nas urnas. Políticas de Estado são expressões da vontade dos cidadãos, uma vez que o Estado não é um fim em si mesmo. Mas não é disso que se trata. Está-se diante de algo mais profundo do que a mudança de algumas diretrizes que pautam nossas relações externas. Estão sob ataque valores que têm sido o esteio do posicionamento do Brasil no mundo há sucessivas gerações.

Do que se ouviu durante exasperantes 32 minutos de uma fala obscura, empetecada por suposta erudição e eivada de revanchismo e fundamentalismo religioso, nada há de inspirador. O sentimento suscitado pelo chanceler Ernesto Araújo em seu discurso de posse não é outro senão de apreensão.

Paradoxalmente, o chanceler que propõe uma “reaproximação” do Itamaraty com o povo começou seu discurso citando em grego um versículo do Evangelho de São João: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Araújo também fez recorrentes citações em hebraico e tupi-guarani. Seria apenas pedantismo do diplomata não estivesse ele buscando fazer-se de erudito para demonstrar nada além de submissão. Pois a “verdade” que “libertará” o País, segundo ele entende, não é o interesse nacional, mas a “verdade” de seu chefe. “O presidente Jair Bolsonaro está libertando o Brasil por meio da verdade. Nós também vamos libertar a política externa brasileira, vamos libertar o Itamaraty”, disse Araújo, para quem, como se vê, o presidente, antes de ser Bolsonaro, é Messias.

Decretos de Bolsonaro vão fortalecer sistema bancário: Editorial | Valor Econômico

Dois bem-vindos decretos na área bancária foram incluídos na agenda de prioridades dos primeiros cem dias do governo Bolsonaro. Um deles vai permitir que o Banco Central examine e aprove as indicações de dirigentes para bancos públicos federais. Outro decreto vai transferir à autoridade monetária poderes para autorizar o ingresso de capital estrangeiro no sistema financeiro nacional.

As mudanças - informadas pelo presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, em entrevista na semana passada ao Valor - vão contribuir para injetar mais competição e para ampliar a solidez do mercado bancário. De quebra, devem ter implicações positivas para o equilíbrio fiscal, ao assegurar uma maior proteção às instituições oficiais contra influências políticas.

Nos anos 1990, houve uma onda de investimentos estrangeiros no sistema bancário, mas a prática era exigir o pagamento de uma espécie de pedágio para os entrantes. Em geral, os bancos de fora do país eram obrigados a comprar instituições em dificuldades. Foi o que aconteceu, por exemplo, na aquisição do Bamerindus pelo HSBC. Em alguns casos, o governo obrigava os bancos estrangeiros a adquirirem ativos podres de instituições liquidadas.

O presidente da República tem que dar sinal verde a cada operação porque o artigo 52 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal veda o ingresso de capital estrangeiro no sistema financeiro nacional, salvo quando é declarado interesse nacional na operação. Hoje, na prática, não há barreiras para o ingresso de capital estrangeiro no sistema financeiro. O governo Michel Temer chancelou automaticamente todos os pedidos encaminhados pelo BC.

Um estado falido, o legado do PT em Minas Gerais: Editorial | O Globo

Fernando Pimentel decretou emergência ao assumir, mas foi em sentido contrário na administração

Administrações públicas desastrosas têm sido frequentes na paisagem política brasileira, especialmente nas últimas duas décadas. No entanto, raros são os casos de governantes que conseguem, num curto espaço de quatro anos, produzir uma hecatombe econômica e financeira na dimensão realizada por Fernando Pimentel (PT) em Minas Gerais. Na semana passada, Pimentel entregou ao sucessor Romeu Zema (Novo) um estado literalmente falido.

Minas é a terceira maior economia do país. É, também, uma das cinco da Federação com capacidade de arrecadação suficiente para financiar mais de 80% do orçamento. Há quatro anos o estado vivia uma situação de frágil equilíbrio nas contas. Naufragou sob Pimentel.

Ele inaugurou o governo decretando calamidade financeira, numa manobra para debitar aos adversários do PSDB o custo da crise, na época já agravada pela política recessiva do governo Dilma, sua aliada desde o fracasso na luta armada nos anos 70.

Pimentel administrou alheio à emergência que ele mesmo reconhecera por decreto. Quando a principal fonte de financiamento do estado, o ICMS, já se mostrava insuficiente para sustentar a folha de quase 400 mil servidores, ele decidiu aumentar em 20% os custos salariais da máquina administrativa. Mesmo com o endividamento público extrapolando os limites legais, rendeu-se às pressões corporativas do Legislativo e do Judiciário.

‘Supremo tem de retomar a colegialidade’, diz cientista político

Para o professor de Direito Oscar Vilhena, ministros da Corte devem evitar excesso de decisões individuais

Caio Sartori | O Estado de S.Paulo

Professor de Direito da FGV-SP, o cientista político Oscar Vilhena afirma que o Supremo Tribunal Federal (STF) vive um momento de crise no contexto de um governo que tem se demonstrado hostil a parcelas da Constituição. “É um mau momento para se ter essa crise”, afirmou ele em entrevista ao Estado.

Autor do recém-lançado A Batalha dos Poderes (Cia. das Letras), ele disse ver a necessidade de o STF retomar a “colegialidade”. “A colegialidade foi se esgarçando e tem momentos de crise”, afirmou Vilhena, em referência ao recente embate entre os ministros Marco Aurélio Mello e Dias Toffoli. Em dezembro, Marco Aurélio suspendeu a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. No mesmo dia, Toffoli, presidente do STF, cassou a decisão.

PRISÃO EM 2ª INSTÂNCIA.
O Supremo já vem com uma divisão interna há um período muito longo. A colegialidade foi se esgarçando e tem momentos de crise. Este é um momento como outros. Evidentemente que isso se dá num contexto de um novo governo que tem se demonstrado hostil a parcelas da Constituição. É um momento ruim para se ter essa crise. Os ministros têm desafiado com muita frequência o plenário. É uma situação de confronto que já vem aberta. Não me surpreendeu (a decisão de Toffoli que contrariou Marco Aurélio). Se a presidência já marcou uma data para a solução, acho pertinente, independentemente do mérito da questão, que os ministros discordem. Agora, como é um tema sensível e há uma discordância forte, temos de aguardar o plenário decidir. Essa questão do duplo grau já deveria ter sido resolvida pelo plenário, o que teria evitado esse conflito.

DECISÕES MONOCRÁTICAS.
É um problema crônico do tribunal. O STF tem, a meu ver, uma sobreposição de competências que é inadequada. O Supremo Tribunal Federal brasileiro tem dois problemas fundamentais. É uma constituição muito extensa e, por isso, gera uma litigiosidade muito grande. É um problema de desenho, não do Supremo. Ele foi desenhado dessa maneira. É uma corte constitucional, uma corte de recursos dos tribunais e um tribunal que julga de maneira especializada, com o foro privilegiado. O acúmulo de todas essas atribuições é um erro. Para dar conta dessa quantidade de competências, o tribunal foi, ao longo dos anos, delegando competências do plenário aos ministros. Hoje, mais de 95% das decisões do STF são monocráticas.

Constituição passa por prova de fogo, avalia autor de livro sobre poder no país

Para o professor Oscar Vilhena Vieira, da FGV, governo Bolsonaro exigirá atuação firme do STF

Naief Haddad | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Com 30 anos recém-completados, a Constituição brasileira está submetida ao mais intenso teste de estresse de toda a sua trajetória. A fragilização do compromisso firmado em 1988 resulta, sobretudo, de episódios traumáticos na vida do país que se acumulam desde 2013.

Essa é uma das teses centrais do novo “A Batalha dos Poderes”, livro de Oscar Vilhena Vieira, diretor e professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

Colunista da Folha, o autor se propõe na introdução a fazer uma “leitura da experiência constitucional brasileira em seu contexto a partir deste turbulento trigésimo ano de vigência”. Registros comentados da atualidade e análises do passado recente do país se entrelaçam, portanto, ao longo de todo o livro.

O ano de 2013 volta a ganhar carga emblemática, é um momento-chave para a compreensão da perda de prumo do sistema político. Naquele ano, aconteceram as enormes manifestações e, no ano seguinte, uma eleição fortemente polarizada entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB).

Daí em diante, como escreve Vieira, as crises se sucedem: a economia em recessão, os esquemas de corrupção apurados pela Operação Lava Jato, o controvertido impeachment de Dilma, a sobrevivência de Michel Temer depois do também controvertido julgamento do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

A tensão se mantém nos meses seguintes: a prisão do ex-presidente Lula, a paralisação dos caminhoneiros e, nas palavras do autor, “o fenômeno eleitoral de Jair Bolsonaro, líder de extrema direita”.

Para Vieira, esses episódios “demonstram que passamos a viver uma situação de profundo mal-estar constitucional”.

De acordo com ele, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) tem apresentado uma “retórica muito hostil contra valores constitucionais, contra direitos de grupos específicos”, o que pode abrir espaço para “degradações maiores”.

João Cabral de Melo Neto: Morte e Vida Severina

(Trecho)

— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.