terça-feira, 30 de julho de 2019

Opinião do dia: Jürgen Habermas*

Os direitos humanos formam uma utopia realista na medida em que não mais projetam a imagem decalcada da utopia social de uma felicidade coletiva; antes, eles ancoram o próprio objetivo ideal de uma sociedade justa nas instituições de um Estado constitucional.

Naturalmente, essa ideia transcendente de justiça introduz uma tensão problemática no interior de uma sociedade política e social. Independentemente da força meramente simbólica dos direitos fundamentais em muitas das democracias de fachada da América do Sul e de outros lugares, na política dos direitos humanos das Nações Unidas revela-se a contradição entre a ampliação da retórica dos direitos humanos , de um lado, e seu mau uso como meio de legitimação para as políticas de poder usuais, de outro.

*Jürgen Habermas (Düsseldorf, 1929) é um filósofo e sociólogo alemão, ‘Sobre a constituição da Europa’, pp. 31-2, Editora Unesp, 2012.

Luiz Carlos Azedo: O terceiro turno

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Cada declaração polêmica de Bolsonaro provoca uma onda de protestos na sociedade civil e no exterior, além de frustrar eleitores que esperavam um presidente mais focado nos problemas do país”

O presidente Jair Bolsonaro, ao insistir numa agenda motivada por razões ideológicas e religiosas, mas descolada dos problemas prioritários da população, está protagonizando um debate político no qual sua imagem de presidente da República pode sair desgastada. Bolsonaro foi eleito sem debater suas ideias, ficou fora da campanha depois da facada que levou em Juiz de Fora (MG). A partir daquele trágico episódio, o “mito” se tornou imbatível, mesmo num leito de hospital. Afora os seguidores de carteirinha, porém, a maioria dos seus eleitores não conhecia as ideias polêmicas do presidente da República sobre assuntos em há um amplo consenso na sociedade, como a questão do desmatamento, por exemplo.

Com o Congresso Nacional e o Judiciário em recesso, Bolsonaro ficou absoluto na cena política, sem que nenhuma outra personalidade disputasse espaço na mídia. Nesse período, no jargão jornalístico, florescem as “flores do recesso”, temas que tomam conta do noticiário político e morrem quando o Parlamento e os tribunais voltam a funcionar. Ocupava a cena a divulgação de conversas entre o ministro da Justiça, Sérgio Moro, quando era juiz em Curitiba, e os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato, pelo site The Intercept Brasil, do jornalista americano Green Grenwald.

Essa seria a mais exuberante “flor do recesso”, mas o presidente Bolsonaro irrompeu em cena, diariamente, com declarações e atitudes polêmicas a cada entrevista ou tuitada. Ontem, Bolsonaro afirmou em uma rede social que o estudante de direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi morto pelo “grupo terrorista” da Ação Popular do Rio de Janeiro, e não pelos militares, uma afirmação no mínimo leviana. Segundo a Comissão da Verdade, Santa Cruz foi morto por agentes dos órgãos de segurança do regime militar.

Mais cedo, ao criticar o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, filho do estudante desaparecido, Bolsonaro havia chocado a opinião pública com a seguinte declaração: “Um dia, se o presidente da OAB [Felipe Santa Cruz] quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”. Sua declaração gerou repulsa nos meios jurídicos e políticos. O governador de São Paulo, João Doria, por exemplo, filho de um parlamentar cassado e obrigado a se exilar, considerou a declaração inaceitável.

Bernardo Mello Franco: O presidente sem decoro

- O Globo

Ao ofender a memória de mais uma vítima da ditadura militar, Bolsonaro voltou a cruzar o limite da decência. A previsão de que ele respeitaria o cargo de presidente estavam furadas

Jair Bolsonaro nunca respeitou a memória das vítimas da ditadura. O capitão se projetou na política como porta-voz dos porões. Notabilizou-se por defender a tortura, insultar os mortos, mentir sobre fatos históricos.

Quando a Câmara homenageou Rubens Paiva, o então deputado cuspiu no busto diante da família. Quando a Justiça Federal ordenou a busca por restos mortais no Araguaia, ele disse que “quem procura osso é cachorro”.

Na votação do impeachment, Bolsonaro exaltou um torturador em rede nacional. Na campanha presidencial, ironizou o assassinato de Vladimir Herzog. “Suicídio acontece”, debochou.

O jornalista foi morto numa cela do DOI-Codi, e os militares alteraram a cena do crime para simular um enforcamento.

No fim de 2018, houve quem apostasse numa guinada do presidente rumo ao equilíbrio e à moderação. Ao assumir o poder, ele abandonaria o radicalismo e passaria a respeitara liturgia do cargo. Os fatos têm demonstra do que essa previsão era furada.

Quase todos os dias, o presidente tem disseminado ódio e preconceito. Ontem, ao ofendera memória de Fernando Santa Cruz, voltou a cruzar o limite da decência. O então estudante tinha 26 anos quando foi capturado pela repressão.

José Casado: Segredos e sussurros

- O Globo

Sobra inquietação em Brasília. Confirmam-se 976 linhas telefônicas grampeadas em três estados. É grande o número de vítimas, entre elas o presidente, juízes do Supremo e do STJ, líderes do Congresso, ministros, desembargadores, procuradores e policiais.

Mantém-se segredo sobre o conteúdo das mensagens roubadas. Fraudados de maneira tosca na precária segurança das redes nacionais de comunicações, todos agora estão com a sua correspondência privada sob manejo da Polícia Federal.

Pior: cópias desse acervo íntimo da cúpula da República estão com “fiéis depositários”, advertiram advogados de um dos acusados da rapina.

Curiosamente, até agora só uma preocupação foi exposta: a destruição de conteúdo sobre a Lava-Jato. A polícia exorcizou essa aflição partidária, remetendo a decisão à Justiça.

A investigação é sigilosa, mas já vazou. Nomes de alguns furtados foram sussurrados ao Ministério da Justiça, que nega ter violado segredos. Ninguém falou em investigar.

Silenciou-se, também, sobre as “fragilidades” —definição da perícia — das redes nacionais de comunicações. Elas confirmam o Brasil como área livre à espionagem, sem proteção da infraestrutura e das pessoas.

Merval Pereira: Coincidências de datas

- O Globo

Para variar, a semana foi de polêmicas para Bolsonaro, que, entre outras coisas, comentou que o jornalista Glenn Greenwald podia “pegar uma cana aqui mesmo”.

Referia-se à publicação, pelo site Intercept Brasil, das conversas hackeadas entre o então juiz Sergio Moro e o coordenador dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol.

Não se trata aqui de concordar com a atitude do site, que, ao divulgar os diálogos, o faz a conta-gotas, numa edição que busca interpretar as conversas e fazer ilações, sem colocá-los no contexto em que foram realizados. Nem com o viés claramente tendencioso em busca da anulação de processos para ajudar a libertar Lula.

Trata-se de defender a liberdade de expressão, pura e simplesmente. Se Glenn Greenwald não participou da operação de hackeamento, nem a encomendou, não há como “pegar uma cana”. Está protegido, como todos os jornalistas brasileiros, pela Constituição.

Mesmo que tenha pagado pela cessão do material, terá cometido no máximo um ato antiético. No entanto, a ligação política que surgiu com a revelação, confirmada por ela, de que Manuela D’Ávila, candidata a vice pelo PCdoB em 2018 na chapa do petista Fernando Haddad, foi a intermediária entre o hackeador e o Intercept Brasil reforça a hipótese de que a publicação desse material tem objetivos políticos.

Ricardo Noblat: O semeador de ódio

- Blog do Noblat / Veja

Uma crueldade para jamais ser esquecida
Cobra-se de Jair Bolsonaro, o ex-capitão afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética, o que ele não tem para dar. Por exemplo: compostura e dignidade para o exercício do cargo de presidente da República, moderação para saber lidar com conflitos e a capacidade de compreender sentimentos e emoções dos outros.

Carente dessas e de outras qualidades que podem fazer de uma pessoa um ser humano melhor, Bolsonaro protagonizou, ontem, mais um episódio de vilania, estupidez e brutalidade que chocou até mesmo seus aliados políticos, calando pelo menos parte da manada de devotos que costuma defendê-lo nas redes sociais.

Ao queixar-se do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Fernando Santa Cruz, que impediu a Polícia Federal de ter acesso a dados confidenciais do advogado de defesa de Adélio Bispo, o esfaqueador de Juiz de Fora, Bolsonaro feriu um dos princípios do mundo civilizado de jamais se ofender a memória dos mortos.

Primeiro porque os mortos não podem se defender. Segundo porque sua descendência vive e não deve ser ofendia. Terceiro porque isso é uma coisa que não se faz e ponto. As religiões compartilham valores comuns como o perdão, a fé, a caridade e a paz. Batizado nas águas do Rio Jordão, Bolsonaro não passa de um religioso de araque.

Que seja levado às barras dos tribunais. A ninguém é dado revelar publicamente que sabe como um crime foi cometido e não se oferecer para depor. Ou não ser chamado a depor. Bolsonaro disse que sabe como o pai de Fernando Santa Cruz foi morto depois de preso por militares no Rio quando tinha 28 anos de idade.

A lei da anistia perdoou os autores de crimes de sangue, e também os que torturaram ou foram responsáveis pelo desaparecimento de corpos. Mas ela não aboliu o esquecimento nem o direito de se procurar saber o que aconteceu, e como aconteceu. É o que a família Santa Cruz tenta sem sucesso desde 1974.

Diante do estupor provocado pelo que disse, Bolsonaro sentiu-se forçado a dar explicações. Então fez mais uma de suas aparições ao vivo no Facebook, desta vez na cadeira de um cabelereiro que aparava suas madeixas, para garantir que o pai de Fernando Santa Cruz foi morto por seus companheiros de organização política.

No passado, ao defender a ditadura militar, seus assassinos e torturadores, Bolsonaro já havia dito que o pai de Santa Cruz deveria ter morrido embriagado em uma rua qualquer do Rio. Um documento secreto da Aeronáutica diz que ele foi morto por militares. Seu corpo, segundo uma testemunha, acabou incinerado.

À época, Marcelo, um irmão do morto, teve cassado o direito de estudar no Brasil. Rosalina, a irmã mais velha, foi presa, torturada à base de choques elétricos e sofreu um aborto provocado pela violência. Pontificava em São Paulo o coronel Brilhante Ulstra, um dos mais cruéis torturadores da ditadura que duraria 21 anos.

Sim, trata-se do mesmo coronel que Bolsonaro tanto faz questão de exaltar, autor de um livro cuja leitura ele recomenda a amigos e companheiros de ideias.

Roberto Romano*: Presidência subversiva

- O Estado de S.Paulo

O atual presidente da República brasileira ignora o pretérito que define o Estado

O termo “subversão” foi muito usado no século 20. Nas grandes potências, subversivos eram os coletivos, grupos ou indivíduos que pusessem o Estado em perigo. Eles poderiam estar à direita ideológica ou à esquerda. Um inimigo na URSS era campeão democrático no Ocidente. No Brasil, desde Vargas a palavra indica os setores liberais que não aceitam regimes de exceção (foi o caso do jornal O Estado de S. Paulo, após as ditaduras mostrarem a face efetiva) e as correntes de esquerda, armadas ou não. Singularidades semânticas ajudaram a impor, em 1964, um Estado oposto ao direito. Para não o confundir com os golpes sofridos na América do Sul, os dirigentes nomeiam o seu movimento como “revolução”. O desmonte do Estado de Direito recebe nome certo – revolução –, mas unido ao complemento que o atenua: a revolução é “redentora” porque o Estado e a sociedade retornariam à lei e à ordem, sem desafios ao poder constituído.

“Subversão” já aparece em decreto de Henrique VIII contra os católicos que desejariam “restaurar o reinado usurpador e o poder do bispo de Roma”. A desobediência ao monarca significaria “subverter e derrubar os sacramentos da Santa Igreja e o poder e autoridade dos príncipes e magistrados” (P. Hughes e J. Larkin, Tudor Royal Proclamations). Na Alemanha surgem choques sangrentos, mesmo após os acordos sobre ocuius regio, eius religio. Na França, cidadelas são concedidas aos protestantes. Mas as tensões aumentam até a Noite de São Bartolomeu. O rei, pouco seguro no poder, arma o ataque. O evento é elogiado por Gabriel Naudé como um bom golpe de Estado: o medo da violência real leva o s beligerantes à obediência. Governos prudentes não solapam a própria autoridade, pois ela depende de um cálculo complexo. Nenhuma ditadura unipessoal, nem sequer a de César, permanece incólume mesmo tendo apoio cúmplice do Parlamento ou Justiça.

O atual presidente da República brasileira ignora o pretérito que define o Estado. O primeiro valor de toda forma estatal reside na hierarquia de funções e autoridade no emprego de pelo menos três monopólios: o da força, da norma jurídica, dos impostos. A partir daí seguem as prerrogativas do poder na vida pública, da educação à saúde, desta à soberania sobre a sociedade civil. O presidente minou a autoridade dos encarregados pela força, os generais que aceitaram integrar o seu governo. Elias Canetti fornece uma chave para a compreensão das Forças Armadas: a sentinela exemplifica a constituição psíquica do soldado. Os motivos habituais de ação, como os desejos, o temor e a inquietude, são nele reprimidos. Todo ato seu vem de uma ordem. O momento vital no militar é a postura atenta diante do superior. Para ele, a ordem tem valor supremo. O uniforme evidencia a perfeita igualdade de todos na obediência às ordens.

Eliane Cantanhêde: Réquiem para os índios

- O Estado de S. Paulo

Bolsonaro critica o interesse da Europa na Amazônia, mas abre mineração em reservas aos EUA

O mesmo presidente Jair Bolsonaro que definiu o Brasil como “uma virgem que todo tarado quer” é o que, agora, confirma publicamente sua disposição de fazer parcerias nos Estados Unidos para explorar minério em terras indígenas da Amazônia, particularmente a ianomâmi e a Raposa Serra do Sol. O governo vai entregar a virgem para os tarados? Ou os tarados são só os países europeus?

O discurso de Bolsonaro é um para a Europa, outro muito diferente para os EUA. Ao falar sobre meio ambiente, desmatamento da Amazônia, reservas ecológicas, terras indígenas e quilombolas, ele inevitavelmente mistura um tom agressivo com pitadas de sarcasmo: o diretor do Inpe é mancomunado com ONGs estrangeiras e os europeus só defendem a preservação da Amazônia para depois explorá-la. “Na cabeça dos europeus, a Amazônia não é do Brasil.”

É curioso que, nos tempos dos militares no poder, o temor do olho gordo sobre a maior floresta tropical e a maior biodiversidade do mundo não era por causa dos europeus, ou, pelo menos, não era principalmente por causa deles, mas, sim, dos irmãos do Norte, dos americanos. Na “nova era” de Bolsonaro, o tarado mudou.

Ranier Bragon: A sorte está lançada

- Folha de S. Paulo

A resposta às aberrações presidenciais mostrará qual país sairá dessa experiência

No ano 49 antes de Cristo, Júlio César violou as leis romanas e cruzou o rio Rubicão com o seu exército, dando início à guerra e à expressão que se consagrou como sinônimo de decisão que não tem volta.

Mais de 2.000 anos depois, o Brasil atravessou o seu Rubicão particular ao eleger presidente uma pessoa com o preparo, as propostas, o passado, o nível intelectual, a moral e o humanismo de Jair Bolsonaro.

O regime democrático que permitiu tal decisão dará uma extraordinária demonstração de solidez e perpetuidade se suas instituições republicanas não só resistirem, mas derem respostas firmes e destemidas ao que estamos presenciando. Ou caminhará para o pântano do atraso e do obscurantismo. Não há volta.

Bolsonaro testa os limites. A cada nova entrevista, novo ato, tateia até onde pode avançar a cruzada medievalista —e não importa se ela é involuntária ou calculada para animar fanáticos e criar cortinas de fumaça.

Joel Pinheiro da Fonseca: Moro deve continuar ministro?

- Folha de S. Paulo

Ex-juiz já teve luz própria, mas se tornou um mero apêndice de Bolsonaro

Quando Bolsonaro anunciou que Sergio Moro seria seu ministro da Justiça, fui um dos que celebraram. E por três motivos: o primeiro era que Moro institucionalizaria o know-how da Lava Jato no combate à corrupção e ao crime organizado.

O segundo era ver em Moro um contraponto e uma barreira a ideias malucas e desumanas do presidente: porte de armas generalizado, salvo-conduto para violência policial etc. Por fim, era alguém que não temeria apontar e combater a corrupção mesmo que ela viesse de dentro do governo ou da família presidencial.

Sete meses depois do início do governo, essas esperanças estão cada vez mais longínquas. Desde o início Moro já vinha se apequenando ao aceitar calado todas as vezes que o presidente o desautorizou. Os casos de corrupção na família do presidente têm sido esquecidos e abafados sem protestos do ministro da Justiça. Com a revelação das mensagensentre Moro e procuradores pelo The Intercept Brasil, Folha e outros veículos, a coisa só piorou.

Colocado contra a parede, reagiu de maneira desastrada. Ora minimizava o conteúdo, ora colocava dúvidas sobre a autenticidade. Agora tem tentado desviar a atenção para o crime do hacker.

Pablo Ortellado: Nacionalismo de fachada

- Folha de S. Paulo

Críticas de Bolsonaro às políticas para o setor audiovisual mostram que seu nacionalismo é de fachada

Estimulado por um estudo apócrifo que denunciava falta de fiscalização do uso de verba pública e o financiamento de filmes de temática indecente, o presidente Jair Bolsonaro iniciou uma cruzada contra as políticas para o setor audiovisual.

Em uma transmissão pelo Facebook na última quinta-feira (25) foi taxativo: "Vamos buscar a extinção da Ancine. Não tem nada que o poder público tenha que se meter em fazer filme. Que tenha uma empresa privada, sem problema nenhum. Mas o Estado vai deixar de patrocinar isso daí".

O audiovisual não é um setor econômico qualquer. Filmes são produtos sui generis porque são portadores de valores e visões de mundo e, desde que seu consumo se expandiu, no início do século 20, passaram a concorrer com o repertório simbólico das tradições populares e com o que era propagado pelo sistema educacional.

Por esse motivo, governos de diferentes orientações adotaram medidas regulatórias, como o financiamento à produção e as cotas de tela (percentuais de exibição mínimos para filmes nacionais) —a França adotou essas políticas nos anos 1910, e o Brasil, nos anos 1930.

Andrea Jubé: "Black Mirror" brasileiro

- Valor Econômico

Investigação dos 'hackers' vai parar na CPMI das 'fake news'

Trocaram os roteiristas. Após três anos de política nacional inspirada em "House of Cards" - lembrando que até a "The Economist" equiparou Eduardo Cunha a Frank Underwood - os atores políticos agora parecem transitar em um episódio de "Black Mirror", protagonizado por hackers de Araraquara (a terra do suco de laranja), incluindo um falsário e um ex-DJ, que movimentaram carteiras de criptomoedas e teriam invadido mais de mil telefones de autoridades das três esferas de poder.

A antológica série de ficção científica britânica explora situações comezinhas do cotidiano levadas ao extremo pela ação da tecnologia. Em um dos episódios, um hacker ameaça divulgar um vídeo íntimo de um adolescente. Acuado, o jovem tem de assaltar um banco e lutar pela vida em uma floresta contra outra vítima do criminoso, enquanto são filmados por um drone. Um roteiro quase ingênuo perto do enredo brasileiro.

Em meio à revelação de diálogos privados entre o hoje ministro da Justiça, Sergio Moro, e o procurador da República Deltan Dallagnol - cujo teor sugere a eventual violação do princípio da imparcialidade no julgamento de processos da Lava-Jato - a investigação da Polícia Federal culminou na prisão de uma quadrilha de estelionatários do interior de São Paulo.

Um dos cenários é a cidade de Araraquarara, sede da Cutrale, que detém um terço do mercado mundial de suco de laranja. A fruta remete a outra investigação da Polícia Federal, que envolve o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio e o PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro, em supostos desvios de recursos para financiamento de candidaturas falsas.

Daniela Chiaretti: Dano ambiental no Brasil já está em curso

- Valor Econômico

No país, nasce uma semente de resistência à agenda do governo

O Nobel de Economia Joseph E. Stiglitz disse em junho, em artigo no britânico "The Guardian", que a emergência climática é a "nossa Terceira Guerra Mundial." O professor da Universidade de Columbia foi claríssimo: "Nossas vidas, e a civilização como a conhecemos, estão em jogo". Nos últimos dois anos, os Estados Unidos perderam quase 2% do PIB em desastres relacionados ao clima - secas, inundações e incêndios florestais - e o custo para a saúde será de dezenas de bilhões de dólares, sem contar as mortes. O ex-economista-chefe do Banco Mundial se interessa pelo debate sobre como organizar recursos para o que muitos chamam de "Green New Deal", o grande esforço para enfrentar a mudança do clima que empresta o termo do programa que reergueu a economia americana depois da crise de 1929.

No Brasil, o governo Jair Bolsonaro está alheio a tudo isso. Corrigindo: desde antes da posse o presidente procura bloquear qualquer iniciativa nesse rumo, a menos que os interesses comerciais mandem dar verniz verde ao discurso. Talvez por isso não tenha anunciado a saída do Acordo de Paris, como ameaçou na campanha, ou a extinção do Ministério do Meio Ambiente (MMA), fundido com o da Agricultura, como no plano inicial. Mas, na prática, o dano está em curso.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem se dedicado a liberar a pesca de sardinha em Fernando de Noronha, visitar madeireiros em Rondônia e pensar se é viável criar mais gado e talvez plantar café no Acre. Nenhum pio sobre a liberação de agrotóxicos em ritmo alucinante, a pavimentação de estradas na Amazônia ou a integridade dos dados oficiais sobre o desmatamento feitos há décadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. O Brasil sob Bolsonaro parece ter dois ministros da Agricultura e nenhum do Meio Ambiente.

Documentos desmentem versão de Bolsonaro sobre morto pela ditadura

Presidente afirmou que pai do atual dirigente da OAB sofreu ‘justiçamento da esquerda’

Jussara Soares, André de Souza e Amanda Almeida / O Globo

BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro contrariou ontem os registros de documentos oficiais ao dizer que morreu em um “justiçamento da esquerda” o militante da Ação Popular (AP) Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Dois documentos do Estado brasileiro afirmam que ele foi morto pela ditadura em 1974. O presidente da OAB afirmou que Bolsonaro demonstra “traços de caráter graves em um governante: crueldade e falta de empatia’’. O governador de São Paulo, João Doria, e a ex-senadora Marina Silva condenaram a atitude de Bolsonaro.

Enquanto cortava o cabelo em transmissão ao vivo pela internet, o presidente Jair Bolsonaro afirmou ontem que não foram os militares que mataram pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Apesar de dois documentos oficiais atestarem o contrário, Bolsonaro disse que Fernando Santa Cruz, integrante do grupo Ação Popular (AP) e desaparecido durante a ditadura militar, teria sido assassinado em um “justiçamento da esquerda” (eliminação de pessoas consideradas traidoras).

Mais cedo, ao atacar o presidente da OAB, Bolsonaro havia afirmado que, se Santa Cruz quisesse, ele poderia dizer como seu pai desapareceu. A provocação fez com que Santa Cruz decidisse interpelar Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF), após divulgar uma nota na qual chama Bolsonaro de “cruel” e “sem empatia”.

“O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demonstrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia. É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão. Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro — e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos”, disse Santa Cruz, em nota.

DEFESA DOS MILITARES
Bolsonaro disse que “é muito fácil culpar os militares por tudo o que acontece”:
— Não foram os militares que mataram ele não, tá?

Segundo Bolsonaro, integrantes da AP no Rio teriam sido responsáveis pelo desaparecimento de Fernando, que pertencia ao grupo em Recife.

— E o pessoal da AP do Rio de Janeiro ficou... primeiro, ficaram estupefatos, né? Como é que pode esse cara vir do Recife se encontrar conosco aqui? O contato não seria com ele, seria coma cúpula da Ação Popular do Recife. E eles resolveram sumir como pai do Santa Cruz. Essa é a informação que eu tive na época. É sobre esse episódio. Porque, qual é a tendência? “Se ele sabe, nós não podemos ser descobertos”... Existia essa guerra naquele momento —afirmou.

Doria chama de 'inaceitável' declaração de Bolsonaro sobre pai de presidente da OAB

Para governador de São Paulo, fala sobre desaparecimento na ditadura 'foi uma declaração infeliz'

Ivan Martínez-VargasDaniel Carvalho / Folha de S. Paulo

SÃO PAULO E BRASÍLIA - O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), criticou na tarde desta segunda-feira (29) a declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre o desaparecimento do pai do presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz.

"É inaceitável que um presidente da República se manifeste da forma que se manifestou em relação ao pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Foi uma declaração infeliz", afirmou Doria, em evento de anúncio de investimentos de uma companhia de celulose no estado, no Palácio dos Bandeirantes.

"Não posso silenciar diante desse fato. Eu sou filho de um deputado federal cassado pelo golpe de 1964 e vivi o exílio com meu pai, que perdeu quase tudo na vida em 10 anos de exílio pela ditadura militar", disse o governador.

Ao reclamar sobre a atuação da OAB na investigação do caso de Adélio Bispo, autor do atentado à faca do qual foi alvo, Bolsonaro disse que poderia explicar ao presidente da entidade como o pai dele desapareceu durante a ditadura militar (1964-1985).

"Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele."

"Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro", disse Bolsonaro.

Santa Cruz respondeu que a fala do presidente da República demonstra "crueldade e falta de empatia".

Em nota, ele disse que, "goste ou não o presidente", o que une sua geração com a de seu pai é "o compromisso inarredável com a democracia", e "por ela estamos prontos aos maiores sacrifícios".

"O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demonstrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia", escreveu o presidente da OAB.

Nas redes sociais, o ex-prefeito do Rio Eduardo Paes (DEM) mandou abraço e solidariedade a Santa Cruz e disse que "tudo tem um limite e ele foi ultrapassado".

Comissão de mortos e desaparecidos vai pedir explicações a Bolsonaro

Presidente disse ter informações sobre circunstâncias do desaparecimento de pai do presidente da OAB

Rubens Valente / Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - A Cemdp (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos) vai pedir explicações ao presidente Jair Bolsonaro sobre ele ter dito que tem informações a respeito do desaparecimento do servidor público Fernando Santa Cruz, ocorrido no Rio em 1974, aos 26 anos de idade, e pai do atual presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz.

Segundo depoimentos do ex-analista do DOI-CODI, uma unidade da repressão militar, Marival Chaves, Fernando Santa Cruz foi assassinado, junto com outros ex-integrantes da organização de esquerda AP (Ação Popular), numa operação executada por conhecidos militares da repressão, como o então coronel do Exército Paulo Malhães (1937-2014), que assumiu ter conhecimento de diversos atos de tortura e assassinato de opositores políticos.

Nesta segunda-feira (29), Bolsonaro disse que tem informações sobre o que aconteceu com Santa Cruz, mas não explicou o quê.

"É muito grave essa declaração. Ele [Bolsonaro] está transformando um dever oficial, que é dar informações aos familiares, que ele já deveria ter cumprido, em uso político contra um crítico do seu governo", disse a presidente da Cemdp, a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga.

"É lamentável a declaração sob qualquer aspecto. Ele dizer que sabe e usar isso, é uma forma de reiterar a tortura dos familiares. E o mais grave, ele usa um golpe tão baixo contra uma pessoa que ele ataca politicamente", disse Eugênia.

A Cemdp vai reiterar os termos de um ofício encaminhado à Presidência da República no começo do governo Bolsonaro no qual as famílias assinalaram a necessidade de adoção urgente de ações, pelo chefe do Executivo, a fim de localizar mortos e desaparecidos e prestar informações aos familiares.

A carta foi resultado de um encontro nacional de familiares de mortos e desaparecidos. A Cemdp foi criada em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e hoje é vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Os familiares de Santa Cruz são historicamente dos mais engajados na longa batalha para obter informações sobre desaparecidos e mortos na ditadura militar (1964-1985). A mãe de Fernando, Elzita Santos Santa Cruz Oliveira, morreu em junho aos 104 anos de idade e ao longo dos últimos 45 anos não deixou de procurar informações sobre o destino dado ao corpo de seu filho, segundo Eugênia.

Em 10 dias, declarações de Bolsonaro têm preconceito, dados falsos e sarcasmo; relembre

Presidente atacou jornalistas, nordestinos e vítimas da ditadura militar

- Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Os últimos dez dias de Jair Bolsonaro (PSL) foram marcados por uma série de declarações recheadas de conteúdo falso e preconceituoso. Entre os alvos do presidente estão os jornalistas Miriam Leitão e Glenn Greenwald, os governadores nordestinos e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Nesta segunda (29), ele também ironizou o desaparecimento de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira durante a ditadura militar. Fernando era pai de Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil.

MIRIAM LEITÃO
"Ela estava indo para a guerrilha do Araguaia quando foi presa em Vitória. E depois [Míriam Leitão] conta um drama todo, mentiroso, que teria sido torturada, sofreu abuso etc. Mentira. Mentira."

Em 19 de julho, durante café da manhã com jornalistas
A jornalista Miriam Leitão foi presa, espancada, torturada e ameaçada de estupro pela ditadura militar em 1973, em Vitória. Na época, tinha 19 anos e estava grávida. Ela ficou ficou três meses detida.

Miriam nunca participou da luta armada nem esteve na guerrilha do Araguaia (a maioria dos guerrilheiros nunca foi encontrada). Na época em que foi presa, era jornalista da rádio Espírito Santo e militante do PC do B.

Miriam foi inocentada de todas as acusações que foram feitas contra ela pelo regime militar.

NORDESTINOS
“Daqueles governadores de paraíba, o pior é o do Maranhão [Flávio Dino, do PC do B]. Tem que ter nada com esse cara.”

Em 19 de julho, durante café da manhã com jornalistas
O termo “paraíba” é usado de forma pejorativa no Rio de Janeiro, estado onde Bolsonaro se radicou, para se referir a nordestinos. A expressão, quando usada para ofender uma pessoa ou um grupo, é considerada preconceituosa e racista e pode originar um processo judicial.

Os governadores nordestinos, que são de partidos da oposição, reagiram e cobraram explicações do presidente. Um dia depois, Bolsonaro afirmou que se referia apenas a Dino e a João Azevedo (PSB), governador da Paraíba.

FOME
“Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não. Você não vê gente mesmo pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo”

Em 19 de julho, durante café da manhã com jornalistas
Embora a situação tenha melhorado nos últimos anos, a fome ainda é realidade para milhões de brasileiros.

Falas de Bolsonaro fogem ao decoro do cargo e engajam fiéis, dizem especialistas

Analistas não veem, porém, maiores consequências políticas ou jurídicas neste momento

Carolina Linhares / Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Recentes declarações com conteúdo falso e preconceituoso feitas pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) fogem ao decoro do cargo, reforçam seu caráter antidemocrático e servem para manter engajado seu público de apoiadores fiéis, mas não devem gerar maiores consequências políticas ou jurídicas, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

“Com a certeza de que a reforma da Previdência vai ser aprovada, Bolsonaro fica mais à vontade em assumir o protagonismo em que ele se sai melhor, que é mais como comunicador do que como presidente”, diz Jairo Pimentel, cientista político da Fundação Getulio Vargas.

Nos últimos dez dias, Bolsonaro disse que a jornalista Miriam Leitão mentiu ao dizer que foi torturada, quando ela foi de fato torturada pela ditadura; chamou nordestinos de "paraíbas"; questionou dados sobre desmatamento; disse que o jornalista Glenn Greenwald poderia ser preso e não foi tudo.

Nesta segunda-feira (29), voltou à carga contra o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, dizendo saber como o pai dele teria desaparecidodurante a ditadura militar.

Politicamente, de acordo com especialistas, as declarações tendem a piorar a imagem do Brasil no exterior e, internamente, acirrar ainda mais um ambiente polarizado e radicalizado, mas não são suficientes para desencadear crise institucional grave.

“O Brasil já tem um nível alto de polarização. Então, quem apoia o presidente não vai se importar com essas falas e quem já se opõe não vai se opor mais por causa disso. Também não vai mudar o apoio que ele tem no Congresso”, afirma Bruno Castanho Silva, doutor em ciência política e coordenador do grupo de pesquisa Team Populism (Equipe Populismo).

“Bolsonaro alimenta o clima de polarização que qualquer presidente normal teria tentado reduzir”, diz Maria Hermínia Tavares, professora aposentada de ciência política da USP, pesquisadora do Cebrap e colunista da Folha.

“Ele é uma figura antidemocrática, e nós temos um paradoxo que é um sistema democrático presidido por um líder de extrema direita autoritário. Essa tensão permanece o tempo inteiro”, completa Tavares.

Do ponto de vista jurídico, o professor de direito da USP Gustavo Badaró diz que as declarações tangenciam o crime contra a honra, mas não cruzam essa fronteira. Para ele, Bolsonaro tampouco cometeu crime de responsabilidade.

“Ainda não me parece ter havido crime, o que não significa que tais declarações não sejam deploráveis, extremamente reprováveis, do ponto de vista político e moral e humano”, afirma Badaró.

Carolina de Paula, cientista política da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), aponta ser improvável que o Congresso em sua formação atual abra um processo de impeachment contra Bolsonaro. A pesquisadora lembra que “a tensão entre o presidente e os deputados, na hora do vamos ver, é controlada com as velhas práticas, como pagamento de emendas”.

Bolsonaro é criticado após fala sobre desaparecido

Regime militar. Sem respaldo de informações oficiais, presidente afirma que pai de Felipe Santa Cruz foi morto por ex-companheiros de esquerda; dirigente da Ordem vai ao Supremo

Julia Lindner, Roberta Jansen, Luiz Vassallo, Fausto Macedo, Gabriel Wainer e Pedro Caramuru / O Estado de S. Paulo

Presidente da OAB, Felipe Santa Cruz vai ao STF pedir que Bolsonaro diga o que sabe sobre o desaparecimento de seu pai, Fernando de Santa Cruz Oliveira, na ditadura. O presidente disse que o militante da Ação Popular (AP) havia sido morto por “correligionários”. Lei e decisão judicial, no entanto, reconhecem responsabilidade da União no caso. Entidades criticam fala.

O presidente Jair Bolsonaro apresentou ontem uma versão sobre a morte de um desaparecido político durante o regime militar que não tem respaldo em informações oficiais. Bolsonaro afirmou inicialmente que tinha ciência de como Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, integrante do grupo Ação Popular (AP), “desapareceu no período militar”. Depois, disse que o militante – pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz – foi morto por correligionários na década de 1970. A declaração contraria uma lei vigente e uma decisão judicial que reconhecem a responsabilidade da União no sequestro e desaparecimento do então estudante de direito em 1974.

As afirmações desencadearam fortes críticas de entidades da sociedade civil e personalidades ligadas aos direitos humanos e ao processo de redemocratização do País (mais informações na página ao lado). Felipe Santa Cruz informou que vai ao Supremo Tribunal Federal pedir que Bolsonaro diga o que sabe sobre o desaparecimento do seu pai.

O próprio governo federal vincula a morte do ex-militante da AP ao “Estado brasileiro”. O atestado de óbito de Oliveira foi expedido na semana passada pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, ligada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Diz o documento que ele morreu provavelmente em 23 de fevereiro de 1974, no Rio, “de causa não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.

Atestados como o de Oliveira serão entregues em agosto às famílias de vários desaparecidos políticos durante a ditadura.

Bolsonaro questionou a atuação da OAB e atacou Santa Cruz ao falar pela manhã das investigações sobre Adélio Bispo, que lhe desferiu uma facada na campanha eleitoral do ano passado. Adélio foi considerado inimputável pela Justiça por transtorno mental. O presidente não recorreu. “Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados (de Adélio )? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB?”, afirmou Bolsonaro, para quem Oliveira participava do “grupo terrorista mais sanguinário que tinha”. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade.”

À tarde, em transmissão ao vivo nas redes sociais no Planalto, enquanto um homem cortava seu cabelo, o presidente negou que o então militante da AP tenha sido morto pelas Forças Armadas. “Ninguém duvida que havia ‘justiçamentos’ de pessoas da própria esquerda. Quando desconfiavam de alguém, simplesmente executavam. Essa é a minha versão, do contato que tive com quem participou ativamente do nosso lado naquele momento para evitar que o Brasil se transformasse numa Cuba.”

‘Falta de empatia’. O presidente da OAB respondeu, em nota. “O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demonstrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia. É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão”, diz o comunicado.

“Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro – e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos (...) Meu pai era da juventude católica de Pernambuco, funcionário público, casado, aluno de Direito. Minha avó acaba de falecer, aos 105 anos, sem saber como o filho foi assassinado. Se o presidente sabe, por ‘vivência’, tanto sobre o presente caso quanto com relação aos de todos os demais ‘desaparecidos’, nossas famílias querem saber.”

'Sociedade tem que parar de ser tolerante com os arroubos de Bolsonaro’

Por Malu Delgado | Valor Econômico

SÃO PAULO - Foi no meio da tarde de ontem, após a segunda declaração de Jair Bolsonaro sobre circunstâncias da morte de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, que o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, resolveu interpelar o presidente no Supremo Tribunal Federal. Até então, apesar da emoção e da dor que o assunto suscita à família, Santa Cruz estava disposto a tratar o assunto como "mais uma declaração irresponsável do presidente". Mas Bolsonaro ultrapassou todos os limites, disse o presidente da OAB ao Valor: "Ele introduz um fato novo, que é muito relevante: sendo verdade, o presidente da República reconhece que teve relação direta com os porões da ditadura."

Santa Cruz recebeu vários telefonemas de solidariedade, um deles do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). As manifestações de apoio, disse, vieram "de todo o Brasil, de todos os espectros políticos, de todas as religiões, de todas as regiões, do governador [João] Doria às bancadas da esquerda, passando por deputados, pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia", a quem fez questão de agradecer. "Estão todos estupefatos. Todos perplexos com o limite que foi ultrapassado pelo presidente."

A interpelação ao STF, explicou, será elaborada "com base na Constituição, no papel dele como presidente da República, e a obrigação que tem de dizer a verdade". Caberia ainda, admite o presidente da OAB, citado nominalmente por Bolsonaro, uma ação civil contra o presidente por danos morais, bem como pedido de reparação. "Mas por enquanto não estou pensando nisso não", disse o advogado. O presidente da OAB prefere, por ora, não fazer nenhuma leitura sobre quebra de decoro do presidente.

Segundo Santa Cruz, Bolsonaro disse ter "informações que nunca vieram a público" sobre as circunstâncias da morte de seu pai, que desapareceu no Carnaval de 1974 e já reconhecido pelo Estado brasileiro como um preso e desaparecido político do período do regime militar.

Cargo impõe limites, afirma professor

Por Malu Delgado | Valo Econômico

SÃO PAULO - Acostumado a agir como deputado federal por quase três décadas, com a proteção da imunidade parlamentar, o presidente Jair Bolsonaro "teria que ter a clareza" de que, no exercício da Presidência da República, "há um conjunto de limitações ao modo como ele pode se expressar porque isso pode conspurcar a integridade do cargo", avalia Oscar Vilhena, professor de direito da Fundação Getulio Vargas. Para Vilhena, Bolsonaro será obrigado a prestar esclarecimentos sobre o que quis dizer e, caso se recuse, poderá responder por crime de responsabilidade. Se admitir que mentiu, o presidente corre o risco de ter que enfrentar um debate político sobre quebra de decoro.

"Presidente da República não tem imunidade parlamentar. Ele se comporta como deputado que está protegido por uma cláusula constitucional, que permite que não seja responsabilidade criminalmente por sua fala. O presidente não. Do ponto de visto civil, também pode também ser responsabilizado", explica o professor da FGV-Direito.

Vilhena salienta que presidentes da República "fazem juramento perante à Constituição e representam uma nação". Ele observa que por conta da Constituição e da Lei de Acesso à Informação (LAI), a Lei 12.527, de 2011, Bolsonaro deve sentir as consequências de suas declarações.

A LAI, em seu artigo 21, diz que "não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais". Caso essas informações "versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas", a lei determina que "não poderão ser objeto de restrição de acesso".

Pessoas perigosas: Editorial / Folha de S. Paulo

Portaria de Moro e ameaça de Bolsonaro indicam inclinações à arbitrariedade

Os atentados de 11 de setembro de 2001 abriram os olhos ocidentais para uma realidade incômoda —o mesmo fluxo livre de bens e pessoas preconizado pelas sociedades liberais havia exposto países ao terrorismo e a crimes transnacionais.

Um efeito bastante nefasto do endurecimento legal subsequente se deu no longo prazo, quando em nome da segurança nacional estipularam-se políticas migratórias cruéis mundo afora.

Na franja menos desenvolvida do Ocidente, o Brasil chega atrasado à moda. Na sexta-feira passada (26), o ministro Sergio Moro (Justiça) editou portaria regulamentando a Lei de Migração, de 2017.

O texto permite que “pessoas perigosas” sejam deportadas em 48 horas após sua representação diplomática ou o Itamaraty serem notificados, caso não apresentem defesa. Recursos suspensivos podem ocorrer em 24 horas.

É ocioso notar que a regra cerceia o direito de ampla representação do acusado, por exíguos os prazos. Mas é naquilo que não se diz que a portaria impressiona mal.

Apesar de listar crimes que vão de terrorismo a pedofilia, a norma não exige que o alvo tenha sido condenado. Fala de investigações em curso ou suspeitas. Dá ao Estado poder excessivamente discricionário para lidar com estrangeiros.

As regras atuais parecem mais sensatas, fixando 60 dias para que a extradição seja examinada.

O novo texto sugere uso de “informações de inteligência”, algo que desde o “casus belli” da Guerra do Iraque deve ser visto com reservas.

O contexto levanta dúvidas. Moro está sob escrutínio devido ao vazamento de suas conversas com procuradores da Lava Jato, a partir de arquivos recebidos pelo site The Intercept, editado por um jornalista americano, Glenn Greenwald.

Crédito fica mais caro, apesar da inadimplência sob controle: Editorial / Valor Econômico

O saldo de crédito dos bancos praticamente não sai do lugar. No fim de junho, o estoque total estava em R$ 3,3 trilhões, com aumento de 0,4% em relação a maio e de 1,2% no semestre. Se for levado em conta que a taxa média das operações subiu 2 pontos percentuais, de 23,2% ao ano em dezembro para 25,2% no mês passado, apenas a apropriação dos juros contribuiu para o aumento da carteira. Nesse ritmo, vai ser difícil atingir a projeção de crescimento do Banco Central (BC).

Depois de ter encolhido 3,5% em 2016 e 0,5% em 2017, na esteira da retração da economia, o crédito voltou a se recuperar em 2018, quando registrou aumento nominal de 5,5%. A expectativa do Banco Central no início deste ano era de que o estoque de empréstimos avançasse um pouco mais e aumentasse 7,2%. Há um mês, porém, o Banco Central reduziu a estimativa de crescimento para 6,5%. Embora a variação acumulada em 12 meses esteja em 5,1%, a previsão do BC parece otimista demais a essa altura do ano.

A desaceleração observada à medida que o ano avançava nas diversas áreas da economia, afetada pelos tropeços no andamento das reformas econômicas, com repercussões negativas também no mercado de trabalho, esfriou a demanda por crédito. Apesar da tramitação da mudança das regras da aposentadoria ter andado, nada indica ainda uma reação capaz de mudar radicalmente o cenário, até porque a desconfiança persiste, com a preocupação com outras reformas.

É preciso mais que a tesoura: Editorial / O Estado de S. Paulo

Como as famílias endividadas, o governo tem procurado cortar gastos e algum resultado positivo aparece, mas insuficiente para deixar a casa em ordem. Ainda será preciso muito esforço e a reforma da Previdência será indispensável ao conserto das contas públicas. Em Brasília, o corte vem funcionando, os gastos vêm sendo contidos e o Tesouro Nacional conseguiu fechar o primeiro semestre no azul, com superávit de R$ 70,52 bilhões no balanço primário, isto é, sem contar os juros vencidos. Como sempre, nem deu para festejar. Todo aquele dinheiro sumiu no buraco de R$ 95 bilhões da Previdência, como tem ocorrido normalmente. Em resumo: apesar do saldo positivo no dia a dia das operações do Tesouro, o governo central fechou a primeira metade do ano com um déficit de R$ 26,67 bilhões. O cálculo inclui um pequeno saldo negativo das operações do Banco Central (BC).

Em conjunto, governos de Estados e municípios, somados a empresas estatais, acumularam no período um superávit de R$ 19,08 bilhões. O balanço geral do setor público foi um déficit primário de R$ 5,74 bilhões, o melhor para os primeiros seis meses do ano desde 2015, no início da grande recessão.

A investigação financeira no caso dos hackers: Editorial / O Globo

O campo parece promissor, devido ao perfil do grupo e do prontuário policial de pelo menos um deles

A descoberta pela Polícia Federal no interior de São Paulo do hacker Walter Delgatti Neto, que afirmou ter invadido aplicativos de mensagens de inúmeras autoridades, incluindo o ministro ex-juiz Sergio Moro, além do procurador Deltan Dallagnol, pessoas-chave na Lava-Jato, requer ampla investigação sobre a fonte de renda dele. Bem como de Suelen Oliveira, do seu marido, Gustavo Santos, e Danilo Marques, ligados a Walter.

Ase sustentara história, o hackeamento nada teria a ver com sofisticados especialistas em invasão eletrônica de privacidades, possivelmente estrangeiros. O fato de o programa invadido ser o Telegram, desenvolvido por um russo, atiçou ainda mais a imaginação.

Mas o que se soube agora é que Walter Delgatti, suposto chefe do grupo, teria usado técnicas simples para invadir celulares e surrupiar incontáveis conversas.

Em vez de espiões, trata-se de pessoas sem renda fixa e, no caso de Delgatti, dono de um sortido prontuário policial: falsificação de documentos — um deles de delegado de polícia —, furto (ou clonagem) de cartões de crédito. Um estelionatário eletrônico.

Carlos Drummond de Andrade: Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.