quinta-feira, 25 de junho de 2020

Opinião do dia - ACM Neto*

Para meu partido, a democracia é valor inegociável. Vamos estar ao lado de todos que estejam ao lado dela e vamos estar contra todos os que estejam contra ela. Se estivermos com PT, PSOL, PCdoB, PDT para defender a democracia, contem conosco”.


*ACM Neto, presidente do DEM)

Merval Pereira - O investigado

- O Globo

Como presidente, Bolsonaro não tem o direito de desrespeitar as leis, nem deveria ter sido poupado pelo governador Ibaneis de multa

A falta de noção do que seja público ou privado marca a gestão do presidente Bolsonaro e de muitos de seus assessores diretos, como aquele coronel que deu uma coletiva usando um broche na lapela com uma caveira cravada por um espada, símbolo do Comando das Forças Especiais do Exército. Ou de seu chefe, o ministro de facto da Saúde General Eduardo Pazuello que, ao identificar-se como militar da ativa, pontificou: “Cumpro ordens. Missão dada é missão cumprida”.

Foi assim que o uso da cloroquina foi estimulado no serviço público de saúde mesmo depois de não indicado por organizações médicas internacionais, ou o número de mortos pela pandemia foi manipulado.

A mais recente demonstração de que o presidente da República tem uma visão distorcida de sua autoridade está no anúncio de que a Advocacia-Geral da União (AGU) vai recorrer da decisão da Justiça Federal de exigir que Bolsonaro use máscara em espaços públicos no Distrito Federal, obedecendo a uma lei local. A alegação é “preservar a independência e a harmonia entre os Poderes".

Coloca-se assim o presidente acima dos demais cidadãos que residem no Distrito Federal, como se tivesse prerrogativas além das que lhe concede a situação temporária de ser presidente da República. Às vezes, não tem nem mesmo os mesmos direitos, como no caso em que a Justiça o obrigou a revelar seus exames médicos, a bem da informação completa ao público. Como presidente da República, Bolsonaro não tem o direito de desrespeitar as leis, nem deveria ter sido poupado pelo governador Ibaneis Rocha da multa a que todos os que circulam sem máscara na cidade estão sujeitos.

Bernardo Mello Franco - Mercador de ilusões

- O Globo

Nos anos 80, Paulo Guedes ganhou o apelido de Beato Salu. O economista era conhecido pelo hábito de fazer previsões apocalípticas. Lembrava o personagem da novela “Roque Santeiro” que vivia anunciando o fim do mundo.

A serviço do bolsonarismo, o pessimista crônico se converteu num mercador de ilusões. Faz profecias que não se confirmam e divulga planos que não saem do papel. Na semana passada, ele garantiu que “lá para setembro, outubro, novembro, nós já estamos num novo país”. Faltou dizer de que ano.

Antes da pandemia, Guedes já era especialista em anunciar terrenos na Lua. Na campanha, ele prometeu arrecadar um trilhão de reais com a venda de imóveis da União. Depois prometeu outro trilhão com a privatização de estatais. Há poucos dias, requentou a promessa de vender a Eletrobras até dezembro. A ideia é descartada por nove entre dez parlamentares.

Raul Jungmann* - O pandemônio gerencial em tempos de pandemia

- Capital Político

Já se tornou lugar comum dizer que vivemos uma tríplice crise: sanitária, econômica e política. Isto tem obscurecido outra dimensão da crise: a gerencial. Boa parte do fracasso brasileiro no enfrentamento do coronavírus se deve à falta de capacidade de coordenação nacional do Governo Federal e de ações centralizadas para minimizar os efeitos da pandemia.

Ao invés do estabelecimento de protocolos nacionais, orientações e diretrizes claras e ações administrativas concertadas com estados e municípios, assistimos uma polarização inócua e infrutífera do Presidente da República com governadores e prefeitos. E as pessoas carentes de assistência à sua saúde estão perto dos prefeitos e governadores e muito longe do Governo Federal.

A atuação errática e confusa do núcleo central do governo federal, que levou inclusive ao afastamento de dois ministros da saúde, contribuiu, e muito, para que o Brasil ocupe uma triste posição de destaque no cenário global da pandemia. Afinal já são mais de 50 mil mortes pela COVID-19 e mais de um milhão de casos confirmados. Isto, sem falar na evidente subnotificação de casos e mortes.

No Brasil se concentram mais de 13% das mortes e 11% casos confirmados na presente pandemia, sendo que somos apenas 2,7% da população mundial. Ou seja, o Brasil é um ponto totalmente fora da curva na dinâmica da COVID-19. Isto não ocorre à toa. E a inépcia da ação governamental federal é o aspecto central a explicar estes fatos.

Luiz Carlos Azedo - Saudades do Mandetta

- Nas entrelinhas – Correio Braziliense

“A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Trump, que também defendeu o uso de cloroquina e se opôs ao isolamento social”

O Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou, ontem, um relatório do ministro Vital do Rêgo que resume o que todo mundo estava vendo: falta de diretrizes e coordenação entre entes federados e órgãos oficiais no combate à covid-19, por culpa do governo federal. Esse era o ponto forte da gestão de Luiz Henrique Mandetta, defenestrado do cargo porque o presidente da República ficou enciumado da popularidade adquirida pelo então ministro da Saúde e discordava da estratégia de isolamento social que havia adotado. Bolsonaro queria distribuir cloroquina a todos os infectados e implementar a atual estratégia de “imunização de rebanho”.

Quando Mandetta saiu da Saúde, em 16 de abril, o Brasil contabilizava 1.924 mortes; hoje, já são quase 54 mil, uma tragédia anunciada. Na ocasião, as pesquisas mostravam que 76% dos entrevistados aprovavam o desempenho do ministro da Saúde, que antes era avaliado positivamente por 55%. A pandemia havia catapultado sua popularidade, graças ao excepcional desempenho na liderança do Sistema Unificado de Saúde (SUS). Ao contrário, a atuação de Bolsonaro, que havia entrado em guerra com os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e se descolado de Mandetta, havia oscilado para baixo, de 35% para 33%. Os ciúmes do clã Bolsonaro — verbalizado nas redes sociais e entrevistas do presidente da República — puseram tudo a perder. Para substituir Mandetta, Bolsonaro escolheu o médico oncologista Nelson Teich, que ficou apenas um mês na pasta e caiu fora, depois da fatídica reunião ministerial de 22 de abril, cujas imagens revelam seu espanto com o que aconteceu na ocasião. A essa altura da pandemia, já eram mais de 14 mil mortos.

Luiz Fernando Veríssimo – Mundos

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Os americanos estão revendo a sua história para mudá-la

‘Mansfield Park” foi o terceiro livro da romancista inglesa Jane Austen. Publicado em 1814 , foi considerado por alguns sua obra mais madura e por outros a mais chata. Para o crítico Edward Said, foi a mais típica. Said a escolheu como exemplo para a tese, incluída no seu livro “Culture and imperialism”, que detonava a ideia da neutralidade moral das metrópoles diante dos horrores cometidos nas suas colônias. Para Said, não havia distância entre o claro mundo de Jane Austen e o mundo sombrio dos seus domínios, dos escravos tratados como bichos, dos nativos escravizados e das guerras sujas entre impérios.

Pensei em Jane Austen ao ler que no Museu de História Natural de Nova York iriam tirar uma estátua de Theodore Roosevelt, que está lá há anos. Não confundir o Teddy Roosevelt com o Franklin Roosevelt: os dois eram quase que opostos. Theodore, 26º presidente dos Estados Unidos, era um homem de ação, um caçador beirando o folclórico, e chegou a personificar a política agressiva do seu país com relação a nós aqui em baixo. Franklin foi o homem do New Deal, o programa de recuperação econômica que tirou o país da Grande Depressão com forte intervenção do Estado em planos sociais, e que salvou o capitalismo americano dele mesmo.

Míriam Leitão - Pacote de ruído assusta o capital

- O Globo

O Brasil tem sido visto como um pacote de problemas pelos investidores. Há baixa perspectiva de crescimento, alta acelerada da dívida, ruídos institucionais e má condução da pandemia. É o que explica Alberto Ramos, economista-chefe para América Latina do banco americano Goldman Sachs. Ele também avalia como tímidas as reformas aprovadas nos últimos quatro anos, como a da Previdência, porque ela não incluiu estados e municípios e manteve privilégios para algumas categorias.

Ramos é português de nascimento e está na Goldman Sachs desde 2003. Antes disso, foi economista sênior do FMI. É PhD em Chicago, onde foi professor. Tinha tudo para achar que um governo que chegou ao poder defendendo um programa liberal estaria no caminho certo. Ele é defensor de um programa forte de reformas e acha que elas serão mais necessárias depois da pandemia, porque a projeção do FMI, divulgada ontem, é de que a dívida brasileira chegará a 100% do PIB.

— O Brasil está sofrendo o que todo mundo está sofrendo na pandemia, mas, além disso, tem ruídos políticos e institucionais que persistem e podem levar à perda de governabilidade. São coisas que não ajudam, com risco fiscal elevado, e a economia sem crescimento e com desemprego alto — alerta.
O economista faz uma lista do que considera como ruídos provocados pelo governo, que, em sua visão, trabalha com uma “polarização muito grande”, o que não ajuda na recuperação da crise.

— Tem ruído entre governo e Congresso, entre governo e STF, entre governo e imprensa, entre o governo e o próprio governo, da equipe econômica do Paulo Guedes com assessores do presidente e outros ministros. Houve as saídas dos ministros da Educação, da Justiça, de dois ministros da Saúde em plena pandemia. Há fricção entre o governo federal e governadores — afirmou.

Ricardo Noblat - O morde e assopra entre o Supremo Tribunal Federal e Bolsonaro

- Blog do Noblat | Veja

Alexandre afaga, Celso ainda não se sabe o que fará
A pedido da Procuradoria Geral da República, o ministro Alexandre de Moraes, relator no Supremo Tribunal Federal do inquérito que apura o financiamento de manifestações de rua de natureza antidemocráticas, decretou a prisão temporária da ativista de extrema direita Sara Giromini, vulgo Sara Winter, e de mais cinco integrantes do grupo conhecido como 300 do Brasil.

Outra vez a pedido da Procuradoria Geral da República, o ministro revogou a prisão. Sara e os cinco ficarão em suas casas e usarão tornozeleiras eletrônicas. Só poderão sair se a justiça do Distrito Federal permitir que trabalhem ou estudem durante o dia. E deverão manter distância de um quilômetro dos prédios do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, atacados antes por eles.

A decisão do ministro foi entendida no entorno do presidente Jair Bolsonaro como um gesto para distender as relações entre o Supremo e o governo. Elas chegaram a um ponto de quase rompimento depois da reunião ministerial de abril último onde Bolsonaro ouviu calado Abraham Weintraub dizer que os ministros do Supremo eram vagabundos e deveriam estar presos.

Weintraub está sendo processado com base na Lei de Segurança Nacional. Perdeu o Ministério da Educação, mas ganhou um cargo na direção do Banco Mundial por indicação do governo. Bolsonaro não pediu desculpas ao Supremo pelo que ele disse. Desde então, comentários públicos de ministros do Supremo serviram para tornar ainda mais tensas as relações entre os dois poderes.

Em 31 de maio passado, Celso de Mello, o mais antigo ministro do Supremo, comparou a situação política atual do Brasil à da Alemanha nazista. Em mensagem a um grupo de amigos no WhatsApp, ele disse que a intervenção militar pretendida por apoiadores de Bolsonaro significaria a instauração no país de uma “desprezível e abjeta ditadura militar”.

Maria Hermínia Tavares* - A mentira pode pouco

- Folha de S. Paulo

Notícias estão longe de ter a influência sobre os eleitores a elas atribuída

Há quem tenha acreditado que, por volta de 2018, um dos filhos de Lula foi flagrado circulando por Dubai numa Ferrari banhada a ouro. Há também os que estavam convencidos de que, no tempo da Lava Jato, o juiz Sergio Moro era financiado pela CIA.

Algumas dessas notícias patentemente falsas circularam velozmente pelas redes sociais entre o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro.

Ainda hoje, não são poucos os que creem que a enxurrada de rumores absurdos, que atulharam as caixas de mensagens dos usuários da internet durante a campanha eleitoral, expliquem a vitória do “mito” da extrema direita. Da mesma forma como, no exterior, teriam sido responsáveis pelo êxito de Donald Trump, em 2016, ou dos que queriam a Inglaterra fora da União Europeia, no plebiscito também naquele ano.

Fernando Schüler* - Entre o medo e a liberdade

- Folha de S. Paulo

O STF, assim como o governo, erra ao tomar opinião como delito

Talvez não devesse, mas me surpreendo que o tema da liberdade de expressão tenha se tornado central em nosso debate. Joel da Fonseca definiu bem a questão: devemos punir ideias agressivas e violentas? Sua resposta é negativa e veio com uma provocação: “me preocupo mais com a ‘justiça’ das redes do que com as falas violentas que ela busca punir”.

Minha resposta também é negativa. Ela vem na trilha da primeira emenda americana. Me parece também a linha de Hélio Schwartsman dizendo que a democracia aceita “quaisquer críticas, em quaisquer termos, mas não admite ações concretas com o objetivo de subjugá-la”.

O debate me fez voltar ao inquérito das fake news, conduzido pelo Supremo. Muita gente que respeito me diz não ver ali nenhum problema e que o ponto é simplesmente dar um basta a este “bando de fascistas”. Há quem pense diferente. No mínimo a falta de clareza sobre o que exatamente se está pretendendo punir.

Resolvi conferir com um pouco mais de detalhe. Voltei ao documento em que o ministro relator do inquérito apresenta sua lista de “mensagens ilícitas” exemplificando como atua a “associação criminosa” que se investiga.

Miguel de Almeida* - O ódio terraplanista

- Folha de S. Paulo

Moldado pelos petistas, derrubou Dilma e elegeu o capitão reformado

Ali pelo final de seu livro "Capitalismo na América", Alan Greenspan, economista e ex-presidente do Federal Reserve dos Estados Unidos, se detém na clivagem em voga na política americana. No ódio escandido por Donald Trump a cada três entre quatro verbos de suas frases.

Greenspan, um republicano de quatro costados, capaz de criticar Reagan e elogiar Clinton, com todo o respeito liberal, conclui que a animosidade na política se dá por uma questão econômica. Simples: pela primeira vez em décadas, a atual geração de americanos será mais pobre do que a geração de seus pais e avós. É quando proliferam as antas.

No caso dos Estados Unidos, berço da revolução digital (ou 4ª Revolução Industrial), a destruição criativa espreme as antigas profissões, substituídas pela robótica e anteriormente pela mão de obra barata de países asiáticos, e aumenta a desigualdade social.

Simples, de novo: basta ver que a Amazon disparou no mercado de ações, e redes como J. Crew e mesmo Zara, de comércio varejista tradicional, enfrentam semelhante mau humor experimentado 120 anos atrás pelos fabricantes de selas e chicotes (e também pelos proprietários de cavalos), quando o automóvel ganhou as ruas.

Mariliz Pereira Jorge - Rouba, mas é pouco

- Folha de S. Paulo

O apoio ao clã presidencial pode evoluir para 'rouba, não faz nada, mas e daí?'

Impressiona, ainda que não surpreenda, o contorcionismo dos apoiadores do governo para empacotar a corrupção como um mal menor diante da prisão de Fabrício Queiroz e da possibilidade de o primeiro-filho, o senador Flávio Bolsonaro, ter o mesmo destino.

Corrupção, confirmamos mais uma vez, nunca foi a razão para eleger um sujeito ignóbil como Jair. Fosse isso, bolsonaristas não defenderiam agora rachadinha como prática aceitável, “porque todo mundo faz”, “porque nem se compara ao que o PT ou Sérgio Cabral roubaram”. Mesmo para o padrão tupiniquim de lambe-bota de político, essa praga que nos assola, a mítica frase “rouba, mas faz” sofre aqui um duplo twist carpado.

Sabemos que a moral de parte da população é flexível. Bate palmas para tipos como Paulo Maluf, porque construiu pontes e avenidas, embora tenha enchido o bolso com milhões. Defende que partido que tira pobre da miséria não merece crítica nenhuma, apenas redenção, apesar dos comprovados pesares.

César Felício - O caminho de Canossa

- Valor Econômico

Nunca Bolsonaro pareceu tão perto da normalidade

“A cobra vai fumar”. Essa era a mensagem nas redes sociais de várias contas bolsonaristas na noite do dia 16. Durante a manhã e a tarde daquela terça-feira, deputados, empresários e militantes virtuais haviam sido alvo de operações de busca e apreensão, no âmbito dos inquéritos que correm no STF.

O neobolsonarista Roberto Jefferson quis se mostrar bem informado: “Nossas sondagens indicam que o presidente Bolsonaro está há muitas horas reunido com o Gabinete de Segurança Institucional. Assunto GLO. Artigo 142. Deus nos abençoe a espantar os urubus”, escreveu no Twitter.

À medida que avançaram as horas, pulularam imagens de onças bebendo água, fogo de artilharia sendo preparado e imagens de um reloginho marcando tic tac. Todos pintados para a guerra, de prontidão, esperando o toque do clarim para dispararem em louca cavalgada. A defesa do presidente - sentiam - era a defesa de si mesmos, porque o presidente não deixaria seus diligentes soldados ao relento. São uma equipe.

A quarta-feira 17 começou, portanto, com a sensação de que algo muito grave ia ser anunciado pelo presidente. Logo na porta do Alvorada, Bolsonaro pôs essas esperanças por terra. Falou que estava chegando a hora de botar as coisas no devido lugar, mas deixou claro: “Eu não vou ser o primeiro a chutar o pau da barraca”.

Ribamar Oliveira - Equipe econômica quer veto para desoneração

- Valor Econômico

Fim do benefício sobre a folha de pagamento abre espaço no teto de gastos em 2021

O projeto de conversão da medida provisória 936, aprovado pelo Congresso Nacional, aguarda sanção do presidente Jair Bolsonaro, o que deverá acontecer nos próximos dias. A equipe econômica propôs o veto do presidente ao artigo 33 do projeto, que adiou o fim da desoneração da folha de pagamentos de vários setores da economia de 31 de dezembro deste ano para 31 de dezembro de 2021. O argumento principal para o veto é que a prorrogação do benefício contraria a emenda constitucional 106, recentemente aprovada.

A concessão de benefício tributário que resulte em renúncia de receita tem que ser acompanhada de medida de compensação, com aumento de outro tributo, de acordo com o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A área técnica argumenta que a EC 106/2020 estabeleceu que, para criação de benefício tributário, o artigo 14 da LRF não precisa ser obedecido desde que o efeito da medida fique restrito à duração da situação de calamidade, o que, no atual caso, é 31 de dezembro deste ano. Como o objetivo da prorrogação é estender o benefício para 2021, a medida seria inconstitucional para a equipe econômica.

Há, no entanto, um complicador nesse entendimento. No mesmo mês de maio, em que promulgou a EC 106, o Congresso aprovou também a lei complementar 173, alterando algumas regras da LRF. O artigo 3º da nova lei diz que durante o estado de calamidade pública fica afastado o artigo 14 da LRF. E, ao contrário da EC 106, não dá prazo para a produção dos efeitos da renúncia de receita.

Pedro Cavalcanti Ferreira / Renato Fragelli Cardoso* - O futuro não chega no Brasil

- Valor Econômico

Há Estado demais distribuindo privilégios e Estado de menos na educação e na saúde

Ao longo das últimas quatro décadas, o Brasil ficou praticamente estagnado. Entre 1980 e 2020, a renda per capita cresceu apenas 0,6% ao ano. Como a distribuição de renda pouco se alterou no período, nem sequer se pode afirmar que a estagnação tenha sido o preço pago para que a sociedade brasileira atingisse um objetivo louvável. Ceder às atuais pressões pela perenização das despesas emergenciais geradas pela covid-19, abandonando-se o teto de gastos, como preconizado pelos auto-intitulados “progressistas”, constitui receita segura para se gerar mais uma década perdida.

A estagnação brasileira se explica por um Estado disfuncional que gasta muito, mas ao gastar não tem foco no pobre. Para conseguir gastar muito, o Estado criou uma estrutura tributária excessivamente complexa e onerosa que gera grandes distorções e atrofia a produtividade. No Brasil, há Estado demais distribuindo privilégios e benesses sem qualquer critério de eficiência, e Estado de menos na educação e na saúde. O resultado é estagnação, má distribuição de renda e exclusão social.

Nas últimas quatro décadas, houve períodos de reformas que modernizaram a estrutura produtiva brasileira, mas a cada um deles se seguia, quase que imediatamente, uma mudança de rumos em que as forças do atraso recuperavam o terreno perdido. Após as reformas implantadas por FHC e também por Lula, em seu primeiro governo, houve um desvio de rota no segundo mandato de Lula, culminando na catastrófica Nova Matriz Econômica de Dilma.

José Serra* - Epidemia de desgoverno

- O Estado de S.Paulo

A irresponsabilidade com relação ao ensino superior beira o sadismo

Pesquisas de opinião, quando avaliam o apoio popular do presidente, costumam perguntar aos entrevistados sobre o desempenho do seu governo. A primeira dificuldade, no caso, é identificar de que governo se trata. É aquele que precisa proteger um ministro contra uma deposição na Justiça, enviando-o para o exterior de modo tão pouco ortodoxo?

É o governo que mantém nas áreas que mais afetam o bem-estar e o modo de vida das famílias – a educação e a saúde – ministros interinos perpétuos sem nenhuma afinidade e experiência nessas áreas? E que utiliza as áreas de Justiça, Segurança Pública e Advocacia da União como uma banca advocatícia a serviço da família presidencial?

É o mesmo governo esse que anuncia para daqui a três meses o início da tramitação das reformas estruturais da economia e da administração, consideradas prioritárias – e admite, com isso, que já considera o segundo ano de mandato perdido? E cujo chefe do Executivo é o primeiro a patrocinar, contra a orientação de seu próprio ministério, brechas no equilíbrio fiscal, já abalado pela pandemia?

É o governo que promove uma queda de braço dos partidários da desregulação da propriedade rural e da inação diante da destruição das florestas, contra aqueles que promovem a imagem externa e o acesso a mercados do nosso agronegócio?

William Waack - Guerra perdida

- O Estado de S.Paulo

Sem conseguir controlar as várias crises, o governo não controla mais a imagem externa

O “custo” da perda de imagem do Brasil no exterior é difícil de ser colocado em números, mas uma carta enviada ao governo brasileiro e assinada por dezenas de instituições financeiras que operam no mundo inteiro oferece uma base de cálculo. Juntas, elas gerenciam cerca de US$ 3.7 trilhões (mais ou menos o dobro do PIB brasileiro).

Ameaçam retirar parte disso do País, caso continue subindo o ritmo de desmatamento da Amazônia. Alegam que há uma “incerteza generalizada sobre as condições para investir ou proporcionar serviços financeiros no Brasil”, devido ao fato de que não só emissões de dívida do governo brasileiro mas também o valor de companhias expostas à questões ambientais acabam sendo atingidos pelas queimadas.

Pelo jeito, o governo brasileiro, que anda sem ministros para coisas tão básicas como educação e saúde, se esqueceu de que a questão ambiental é considerada básica lá fora. E que exatamente essa ameaça de desinvestimento estava EXPLÍCITA na última cúpula de Davos – a do mundo pré-pandemia. Formulada pelo setor financeiro global, o tal que manipula o oxigênio da economia.

Celso Ming - Mais globalização, e não menos

- O Estado de S.Paulo

Integração mundial será necessária para solucionar problemas que atingem todos os países, como controle de imigração e prevenir novas pandemias

Na última terça-feira, Luiz Carlos Moraes, o presidente da Anfavea, instituição que defende os interesses das montadoras de veículos, advertiu que o dólar acima dos R$ 5 obrigará o setor a aumentar os preços dos seus produtos, apesar da atual queda da demanda, de cerca de 50%.

A justificativa é a alta dos custos das autopeças e dos insumos importados pela disparada do dólar. Embora Moraes esteja apenas tratando de preparar o consumidor para novos reajustes, o argumento reforça a percepção de que as montadoras estão mais dependentes de suprimento externo, o que leva alguns a pedir mais produção local e menos importações.

Em parte, essa dependência é o efeito de maior integração regional no âmbito do Mercosul, porque as empresas tiveram de compensar aumento de exportações de produtos finais com aumento de importações de autopeças.

Mas o maior fator de dependência externa foi a necessidade de inserir as montadoras na cadeia global de suprimentos. Empresas que produzem quase tudo de que necessitam não conseguem escala de produção e, nessas condições, produzem a custos mais altos, o que derruba sua competitividade. Em contrapartida, empresas mais conectadas podem ficar sujeitas a atrasos ou quebras de suprimentos em caso de crise, como a de agora.

José Pastore* - A recuperação do emprego

- O Estado de S.Paulo

Reabsorção dos 36,6 milhões de desempregados no mercado de trabalho brasileiro seguirá caminhos e ritmos diferentes

Com a chegada da pandemia de covid-19, a destruição de empresas e empregos foi rápida, mas seus impactos serão de longa duração. Nova pesquisa do IBGE (Pnad-Covid) indica que 36,6 milhões de brasileiros estão sem trabalho ou trabalhando aquém do que podem ou do que gostariam de trabalhar. A reabsorção desses trabalhadores no mercado de trabalho seguirá caminhos e ritmos variados.

Desempregados recentes nutrem a esperança de voltar ao emprego que tinham. Muitos conseguirão. Para as empresas, isso é bom, pois a recontratação de ex-empregados economiza tempo e dinheiro.

Nos EUA, a maioria dos 2,5 milhões de trabalhadores foi recontratada pelas mesmas empresas quando, em maio, voltaram a operar novamente.

Mas nem todos os desempregados terão essa sorte. As firmas que quebraram, evidentemente, destruíram os empregos de forma permanente. Seus ex-empregados terão de procurar trabalho em outras empresas, o que será incerto e demorado.

As firmas que estão reabrindo seus negócios enfrentam severas restrições de funcionamento. Por um bom tempo, necessitarão de menos empregados. Não haverá razão para novas contratações.

Zeina Latif* - O caminho até 2022

- O Estado de S.Paulo

O cuidado com o País agora será também uma preparação para 2022

O Sars-Cov-2 escancara a tragédia do mau funcionamento do Estado brasileiro, a complexidade do País e a ineficiência do atual governo.

O Brasil está mal na foto mesmo comparado a países vizinhos. O número de mortes como proporção da população só não é maior porque a testagem é baixa, diferentemente de Chile e Peru.

O Estado pesado e sem capacidade de planejamento não consegue reagir bem à crise, nem no mais essencial: falta atendimento de saúde adequado e a testagem em massa. Chama a atenção a ausência de ensino à distância na maioria das universidades públicas.

Ainda assim, muitos defendem uma maior presença estatal, como se ela fosse eficiente.

É necessária a reforma do Estado visando à melhor qualidade do gasto público, bem como da regulação estatal. Vai além do necessário ajuste fiscal.

Como os gastos com a Previdência comprometerão os orçamentos por muitos anos, por conta do envelhecimento populacional, o espaço de manobra seguirá limitado. Justamente agora que mais recursos serão necessários para políticas sociais, pesquisa, medidas sanitárias e de inserção tecnológica. Será necessário buscar caminhos para o uso mais eficiente de recursos e parcerias com o setor privado.

Alfredo Maciel da Silveira* - Três escudos: analisando o liberalismo econômico no Brasil

- Blog Democracia e Socialismo, Junho, 2020

Pelo mundo afora está a se discutir o papel do Estado que haverá de surgir na economia pós-pandemia. Mas no Brasil, onde há uma avassaladora hegemonia do liberalismo no pensamento econômico, irradiado para a política, e principalmente difundido na grande mídia, mudar a orientação reformista liberal inaugurada desde a gestão Temer-Meirelles apresenta-se como um verdadeiro “cavalo-de-pau” para a imensidão da opinião pública liberal. Querendo ou não, exatamente por serem a corrente ideológica e política hegemônica, terá que partir deles em grande medida, de seu autoconvencimento, a mudança de rumos nas reformas do Estado brasileiro.

Com base no que observo atualmente, no tipo de argumentação que liberais apresentam contra o imperativo de um Estado protagonista na economia, constato levantarem pelo menos um dentre os seguintes três escudos defensivos:

1) O Estado brasileiro é patrimonialista;
2) Financiamento do Tesouro pelo BC é a volta do populismo;
3) O Estado é ineficiente e favorece a corrupção.

Minha resposta.
Começo pelo item (2) que vai mais de encontro à economia.

Tomo como referência o destacado economista André Lara Resende por ser um insuspeito liberal declarado. Erros de interpretação obviamente são de minha total responsabilidade. Ele parte de uma fundamentada visão histórica sobre a evolução da moeda até os dias de hoje. Ele faz ver que na moeda fiduciária contemporânea, num Estado nacional que emite sua própria moeda, Banco Central e Tesouro constituem uma unidade econômico-financeira, apesar de sua distinção formal. O endividamento público em moeda nacional pode ser astronômico, como em alguns países, sem a perda de confiança na moeda; além disso, o balanço consolidado do BC com o Tesouro apresenta um passivo, cujo "credor", o povo, seus nacionais, sabem que a contrapartida em ativos corresponde a um patrimônio social, aí já descontados os custos sociais dos desastres (“sunk costs”), como por exemplo Fukushima para os japoneses. Daí também que não se admita o desleixo e a ineficiência com o gasto público. Essa "dívida pública" pode ser e é passada entre gerações.

Quanto aos itens (1) e (3), a resposta é conjunta.

Quanto à ineficiência e à corrupção é preciso ver que o país mudou. As instituições de controle criadas pela CF 88 já foram postas à prova; Dilma foi derrubada pela política mas com as provas formais colhidas pela CGU; e todas as obras públicas tramitam pelos Tribunais de Contas; claro que a bagunça administrativa pode travar esses processos; daí que gente competente é imprescindível, a exemplo do atual Min. Tarcísio de Freitas, servidor de um governo reacionário, para dizer o mínimo, mas de quem conservo a boa impressão já declarada em textos de até um ano atrás. Ele é uma prova de que gestão eficiente depende só de gestores e equipes competentes.

E o que dizer da Lava-Jato? Não há prova maior de que estão cada vez mais difíceis os "(...) Tem que estancar a sangria" e os "(...) Tem que manter isso, viu?"

E o que dizer da Lei de Responsabilidade Fiscal, que a meu ver precisaria ser aperfeiçoada, por exemplo para dar a flexibilidade de uma regulação a períodos maiores do que exercícios anuais; aprimoramento continuo da legislação é conseqüência lógica da própria vida, do próprio sucesso.

‘Associação criminosa’ no bolsonarismo – Editorial | O Globo

A possibilidade levantada por ministro do STF tem base em quebras de sigilo bancário

Um conjunto de organismos de Estado — o Ministério Público Federal, o MP estadual do Rio, o Judiciário e ainda as Polícias Federal, Civil fluminense e a de Brasília — tem dado exemplos do funcionamento dos pesos e contrapesos existentes numa democracia, para o enquadramento de falanges radicais bolsonaristas.

A descoberta de que o desaparecido Fabrício Queiroz, íntimo do clã Bolsonaro, por exemplo, estava sendo mantido fora de circulação em imóvel localizado em Atibaia (SP), de Frederick Wassef, advogado do presidente Bolsonaro, foi uma operação do MP do Rio, com a Polícia Civil fluminense, apoiada por sua congênere paulista.

Já a execução de busca e apreensão em um sítio feita por policiais de Brasília encontrou provas da atuação de agrupamentos bolsonaristas extremistas, entre elas fogos de artifício. Foi com fogos que o “300 do Brasil” fez a simulação de bombardeio do Supremo Tribunal, no fim de semana retrasado. O ataque ao STF levou à prisão de Sara Giromini e de mais cinco militantes do mesmo grupo, pedida pelo MP Federal, e decretada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, que preside o inquérito sobre a organização de manifestações antidemocráticas aberto por iniciativa da Procuradoria-Geral da República.

Custo ambiental – Editorial | Folha de S. Paulo

Entidades estrangeiras fazem pressão contra política desastrosa de Bolsonaro

Com a emergência climática batendo à porta, a preocupação com a preservação do ambiente já há algum tempo deixou de estar restrita a ativistas, ONGs e fóruns temáticos para se tornar assunto corrente entre os principais atores econômicos do planeta.

O Brasil, território da maior floresta tropical do mundo, ocupa, para o bem e para o mal, lugar central nessas discussões. Se até há pouco o sucesso do país no combate ao desmatamento granjeou-lhe recursos e prestígio internacional, hoje a situação se afigura diversa.

A política antiambiental do governo Jair Bolsonaro não apenas vem revertendo os ganhos obtidos na conservação da Amazônia como tem devastado a imagem do Brasil no exterior —com possíveis prejuízos para os negócios nacionais.

Esse ponto ganhou nova dimensão nas últimas semanas, quando, preocupados com o desmonte das políticas de preservação, empresas, políticos e entidades estrangeiras, sobretudo da Europa, intensificaram as pressões sobre o país.

O PIB do negacionismo – Editorial | O Estado de S. Paulo

País paga uma conta maior na economia por erros do presidente diante da pandemia

Com recuo de 9,1%, a economia brasileira deve fechar o ano, mais uma vez, com desempenho muito pior que o da maioria dos grandes emergentes, segundo as novas projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI). No Brasil, como em todo o mundo, o impacto da pandemia tem sido bem maior que o estimado em abril, quando saíram as estimativas anteriores. A contração projetada para o País, naquele momento, era de 5,3%, muito maior que a observada em crises anteriores. O aumento de casos de covid-19 foi fator importante para a piora da previsão, no caso brasileiro, disse a economista-chefe do Fundo, Gita Gopinath. Mas o Brasil, observou, tem os mesmos desafios de outros emergentes para lidar com o coronavírus.

Mas o contágio tem sido menor em outros países emergentes, incluídos alguns da América do Sul, e esse detalhe foi ignorado, talvez diplomaticamente, no comentário. Os casos teriam aumentado tanto, no Brasil, se o presidente levasse a sério a pandemia e contribuísse para a coordenação de políticas entre União, Estados e municípios?

Governantes negacionistas ou relapsos têm sido desastrosos, como comprovou, nos EUA, o comportamento do presidente Donald Trump, líder do brasileiro Jair Bolsonaro. Países do mundo rico onde a reação à pandemia se retardou devem fechar o ano com desempenhos piores que o do Brasil. Mas em boa parte da Europa as economias já estavam enfraquecidas. O atraso da resposta à doença foi um complicador a mais.

FMI prevê a recessão maior e contágio volta a crescer nos EUA – Editorial | Valor Econômico

Com o segundo maior déficit no mundo em 2020, a dívida pública bruta subirá para 102,3% do PIB, bem distante dos 63,1% da média dos países emergentes

A devastação social e econômica provocada pelo novo coronavírus foi muito maior do que a prevista - e a possibilidade de uma segunda onda ameaça fazer mais estragos. O Fundo Monetário Internacional mostrou-se ainda mais pessimista do que em abril e indicou ontem que a recessão global será mais profunda, com queda do PIB de 4,9% (antes, -3%). Os investidores que consideraram a previsão do Fed, de retração de 6,5% do PIB, terão de rever suas projeções. O PIB americano encolherá 8% este ano, um choque de grandes proporções que, no entanto, será igual à média das economias avançadas. O contágio voltou a aumentar em duas dezenas de Estados americanos, a primeira onda ainda deixa muitos mortos na América Latina; a Alemanha cerca distrito infectado e a China usa rigor para evitar o espraiamento do vírus em Pequim. São maus augúrios que as previsões do FMI aprofundaram. Os mercados acionários desabaram ontem.

A economia de guerra contra a covid-19 revelou-se mais do que uma metáfora. O déficit fiscal nos países desenvolvidos será de 16% do PIB neste ano, um esforço até mesmo superior ao de conflitos mundiais. Nos EUA, o rombo orçamentário atingirá 23% do maior PIB do mundo (US$ 21,5 trilhões). Os países emergentes terão déficit de 10,5% do PIB na média, com o Brasil mais uma vez em dissonância, com resultado negativo de 16% do PIB, o maior do planeta após o americano.

O cenário traçado pelo FMI está cercado de incertezas, especialmente pela ressurgência do novo coronavírus nas economias que finalmente foram reabertas. Para o Fundo, é provável que isso aconteça no início de 2021, no inverno no Hemisfério Norte, mas as estatísticas indicam que possa já estar ocorrendo, pelo menos nos EUA.

Poesia | Manuel Bandeira - Evocação do Recife

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.