quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Vera Magalhães - Depois do feriadão, só aborrecimento

O Globo

Jair Bolsonaro curtiu a vida adoidado no feriado. Esteve em Aparecida, no Vale do Paraíba, já no último dia da intensa programação, mas seu espírito estava mais para Dia das Crianças que para louvar a Padroeira.

Hospedado no Forte dos Andradas, no Guarujá, litoral de São Paulo, andou de motoca pelas outras cidades litorâneas, lamentou não ter podido curtir a partida entre Santos e Grêmio pelo Campeonato Brasileiro — só porque, vejam só que absurdo, não quis se vacinar contra a Covid-19 — e ainda reclamou quando cobrado a respeito das 600 mil mortes pelo novo coronavírus no país que por acaso governa. “Não vim aqui para me aborrecer”, disse Jair num de seus animados rolés do feriadão.

Um vídeo que viralizou também no feriado das crianças, feito por um grupo de ativistas e replicado à exaustão, mostra um Jair com faixa presidencial e num gabinete-brinquedoteca. Arminhas de brinquedo, heróis que atacam o Congresso e, claro, uma motoquinha compõem a cena enquanto ele se irrita com a primeira-dama, Michelle, que insiste em chamá-lo enquanto ele “trabalha”. O vídeo termina com uma mensagem dura: “Lugar de criança não é na Presidência; o Brasil não é brinquedo”.

A pouca disposição do presidente ao trabalho pesado, à coordenação da equipe e a uma agenda estrita de deliberações vai ganhando espaço justamente no terreno em que o bolsonarismo pratica a narrativa política: as redes sociais e os aplicativos de mensagens.

Bernardo Mello Franco - O teatro do astronauta

O Globo

Em 2006, o governo Lula gastou US$ 10 milhões para que um tenente-coronel da Aeronáutica pegasse carona na nave russa Soyuz. O passeio foi mais lucrativo para o astronauta do que para o país. De volta à Terra, ele abandonou a carreira militar e passou a faturar com a venda de chaveiros, canecas e bonequinhos.

A fama instantânea abriria novos negócios. Marcos Pontes virou palestrante, “master coach” e garoto-propaganda de um tal “travesseiro da Nasa”. Apesar da sigla, o produto não tinha nada a ver com a agência espacial americana. Em letras miúdas, informava ser um “Nobre e Autêntico Suporte Anatômico”.

Aposentado aos 43 anos, o astronauta se candidatou a deputado pelo Partido Socialista Brasileiro. Não foi eleito. Depois girou à direita e tentou emplacar como vice de Jair Bolsonaro. Fracassou de novo. Como prêmio de consolação, virou ministro da Ciência e Tecnologia.

Rosângela Bittar - Com otimismo

O Estado de S. Paulo

Dificuldades e desgraças costumam ocorrer às vésperas de grandes mudanças

O fim dos trabalhos da CPI da Covid demonstra a vitalidade do poder Legislativo e coincide, acidentalmente, com a despedida desta colunista dos leitores do Estadão, o que faço agora. Os dois registros são apenas coincidência. Comecemos pelo importante resultado das investigações dos senadores. Estão apontando, com clareza, a culpa original pela proporção do desastre brasileiro no enfrentamento da pandemia: uma combinação de ignorância e perversidade do presidente Jair Bolsonaro.

Tal comportamento teria custado mais do que as 600 mil vidas perdidas até agora não fosse a reação firme de duas instituições. Primeiro, e desde sempre, o Supremo Tribunal Federal, que com suas decisões impôs limites ao desvario do presidente da República. Segundo, a entrada em cena da CPI do Senado, que utilizou os seus instrumentos especiais para localizar, medir e denunciar o responsável.

A ignorância, mais que tudo – e nesse tudo há, além da perversidade, o voluntarismo e o reacionarismo –, foi o fator determinante nas ações e omissões do presidente. Em Bolsonaro a CPI identificou a autoria de dezenas de crimes a serem denunciados e processados. A culpa política, no entanto, persistirá, impune, até que falem as urnas.

O presidente jamais recorreu à inteligência universitária ou à elite científica, como fizeram todos os países devastados pela pandemia. Bolsonaro contribuiu para aumentar a letalidade da doença. A pretexto de privilegiar a economia, boicotou medidas de proteção, ironizando quem se preservou e quem morreu. Sem planos para se contrapor aos que tentou anular, apenas buscou aplausos dos que aceitam suas doses diárias de grosserias. A crueldade, nele, assumiu diferentes formas. A ignorância, no entanto, se sobrepôs a tudo. Transcendeu.

Fernando Exman - O trunfo de Bolsonaro para a campanha

Valor Econômico

Governo finaliza regulamentação da polícia penal

Adversários do presidente Jair Bolsonaro consideram a segurança pública um trunfo para a sua campanha à reeleição, em 2022. Até agora, acreditam, a principal bandeira. E a depender do desempenho do governo até lá, talvez a única.

A lista de dificuldades enfrentadas pelo impopular mandatário é ampla, mas vale perpassá-la.

A economia passa pelo pior momento desde que Bolsonaro assumiu: a miséria é crescente, a inflação não para de acelerar, uma melhora das condições do mercado de trabalho parece algo distante e há pressões em várias frentes pela flexibilização das regras que tentam manter sob controle os gastos públicos. As perspectivas para o ano que vem não são das melhores, e as incertezas políticas decorrentes do jogo eleitoral ainda podem piorar o cenário.

Não há resultados positivos na área da educação. Em relação à saúde, é praticamente impossível o governo melhorar a sua imagem: os brasileiros não esquecerão os parentes e amigos que morreram devido à covid-19. Na área da segurança pública, contudo, a situação é distinta.

O tema é objeto de atenção no PT. As administrações da sigla erraram ao considerar a segurança pública um problema exclusivo dos Estados. O assunto é, também, tratado como crucial por aqueles que tentam personificar uma candidatura de terceira via competitiva.

Hélio Schwartsman - Direita rouba da esquerda o termo libertário

Folha de S. Paulo

A esquerda vem se afastando da ideia de liberdade porque esta é incompatível com a de igualdade

Assim como o bolsonarismo sequestrou as cores da bandeira do Brasil, a direita está sequestrando a ideia de liberdade, notadamente o adjetivo “libertário”. O confisco começou nos EUA, depois que Ron Paul e seus seguidores ganharam projeção e ocuparam uma posição de certa visibilidade no Partido Republicano nos primeiros anos deste século. Mais recentemente, tivemos o sucesso eleitoral dos libertários argentinos, liderados por Javier Milei. Mas, se Paul ainda se distingue um pouco das alas mais extremistas da direita americana, é difícil dizer o mesmo de Milei e seu grupo, que são contra o aborto, as “axilas peludas” das feministas, atraem a simpatia de neonazistas e ainda se congraçam com os Bolsonaros.

Bruno Boghossian - Excesso de bagagens

Folha de S. Paulo

Petista ajusta localização na arena eleitoral de temas como regulação da mídia e Lava Jato

No início de seu segundo mandato, Lula correu para esvaziar uma controvérsia criada no governo. O Ministério da Saúde havia enfurecido grupos conservadores ao anunciar uma consulta pública sobre a descriminalização do aborto. O presidente avisou que não proporia mudanças na legislação e disse que o debate era responsabilidade do Congresso.

A flexibilização da lei sobre a interrupção da gravidez era uma bandeira aprovada em discussões internas do PT, mas Lula fez uma manobra para evitar que o tema contaminasse a pauta política. Nas últimas semanas, o petista deu início a um movimento semelhante para reduzir o peso de outras bagagens que podem incomodá-lo na campanha de 2022.

Mariliz Pereira Jorge - O Bolsonaro mais perigoso

Folha de S. Paulo

Eduardo é quem tem costurado relações com líderes e estrategistas de extrema direita

Enquanto as redes sociais passaram esta terça (12) discutindo as declarações do deputado Eduardo Bolsonaro sobre a bissexualidade do Superman, outro assunto mais importante ficou de lado. Os encontros do 03 e do presidente com alvos no inquérito das milícias digitais nos EUA estariam na mira da Polícia Federal, segundo nota do Painel.

É mais um capítulo das relações nada republicanas que o filho do presidente cultiva. Eduardo não parece um sujeito muito inteligente, uma característica da família. No entanto, o deputado é ambicioso (muito), autoritário (muitíssimo), esperto (o suficiente) e entendeu onde precisa colar para levar adiante seus anseios por um estado totalitário.

Elio Gaspari - Um Posto Ipiranga em Saturno

Folha de S. Paulo / O Globo

Paulo Guedes sabia onde estava se metendo

Fugindo dos piratas privados e das criaturas do pântano que o aprisionaram, o ministro Paulo Guedes está em Washington. Se lhe sobrar tempo, bem que poderia dar um pulo na National Gallery e gastar uns minutos diante do "Autorretrato" de Rembrandt, pintado em 1659, quando ele faliu.

O olhar abatido e a tristeza do gênio são uma aula de modéstia. Durante anos, esse quadro (e seu olhar) ficaram diante da mesa do banqueiro americano Andrew Mellon, secretário do Tesouro de três presidentes e síndico da ruína da crise de 1929. Conta a lenda que Mellon ganhou muito dinheiro exercitando a própria frieza enquanto olhava para um artista genial que, confiando demais em si mesmo, arruinou-se. O doutor era meio neurastênico.

Ele teve uns dissabores com a Receita Federal, mas poliu sua biografia doando ao povo americano sua coleção de arte e cacifando a construção do prédio da National Gallery. Alguns quadros que Mellon doou valem mais que todo o ervanário que Guedes mandou para seu refúgio caribenho.

Ao tempo de Mellon não existiam paraísos fiscais e seus filhos ficaram conhecidos pelas fortunas que deram, não pelos tesouros que esconderam. Todos republicanos até a medula.

Andrew Mellon foi um conservador intransigente. A ideia de que ele pudesse se meter em aventuras políticas com um demagogo direitista (nos Estados Unidos eles abundam) é tão absurda quanto imaginá-lo tingindo o bigode branco.

Luiz Carlos Azedo - Sem chance de dar certo

Correio Braziliense

O salário vale menos e os mais pobres estão disputando ossos e sopas oferecidas por instituições de caridade. Como a economia desanda, a reeleição sobe no telhado.

Há três contingências do governo Bolsonaro que colocam em xeque sua continuidade. A primeira tem a ver com a política externa; a segunda, com a política propriamente dita; a terceira, com a economia. São situações criadas pelo próprio presidente da República, não por seus adversários. Decorrem de estratégias erradas. Vejamos: (1) a aposta na política ultraconservadora do presidente Donald Trump, com a eleição do democrata Joe Biden para a Presidência dos Estados Unidos, deixou o presidente Jair Bolsonaro sem um grande aliado no Ocidente e na contramão da política mundial, que é globalista; (2) a retórica golpista e a agenda ultraconservadora provocaram seu crescente isolamento político; (3) e a entrega do Orçamento da União ao Centrão inviabilizou a agenda econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes. O resto são consequências.

O isolamento internacional do Brasil, ao contrário do que gostaria Bolsonaro, somente serviu para tornar o Brasil ainda mais dependente da China, nosso principal parceiro comercial. Não seria um grande problema, se a economia chinesa não sofresse os sobressaltos de uma economia capitalista, embora seu regime político seja uma ditadura comunista. No momento, o mercado financeiro internacional vive a expectativa de uma implosão da bolha imobiliária chinesa, de consequências imprevisíveis. A Sinic Holdings Group é mais recente empresa imobiliária chinesa em vias de dar um grande calote, aumentando a tensão criada pela gigante Evergrande, que atravessa momentos difíceis e tem uma dívida de US$ 300 bilhões (R$ 1,6 trilhão).

Zeina Latif - Inflação em 10%, e sem trégua

O Globo

A inflação superou a barreira dos 10% ao ano em setembro, algo não visto desde o governo Dilma. O pior já passou? Não exatamente. Nas variações anuais é possível que sim, porque a base de comparação daqui para frente será maior (foi justamente em outubro de 2020 que a inflação começou a acelerar). Do ponto de vista do consumidor, porém, que sente a alta dos preços a cada mês, o quadro preocupa.

Analistas costumam destrinchar a inflação para identificar os principais condicionantes da alta e, assim, traçar cenários. Os vilões seriam vários: a falta de insumos encarecendo produtos industrializados; choques climáticos tornando a alimentação mais cara; a crise de energia majorando a conta de luz; a alta de derivados de petróleo no mercado internacional elevando os preços nas bombas; o menor isolamento social pressionando os serviços; e a alta do dólar pressionando tudo.

Em breve, a lista poderá ser acrescida com outros itens, como a alta de aluguéis, cujos contratos deverão voltar a ser corrigidos pelo IGP-M passada a pandemia.

Fábio Alves - As surpresas do PIB

O Estado de S. Paulo

Assim como aconteceu com a inflação, que vem superando as projeções de analistas e do Banco Central, há o temor de que os indicadores de atividade econômica engatem tendência semelhante, mas em direção oposta: de surpresas negativas.

O sinal de alerta veio na semana passada, com a divulgação da produção industrial e de vendas do varejo para agosto. No caso da produção industrial, houve queda de 0,7% ante julho, resultado pior do que apontava o consenso das estimativas de analistas, de recuo de 0,4%. Já as vendas do varejo caíram 3,1% em agosto ante julho, numa queda bem maior até do que a mais pessimista das projeções do mercado.

Agora, todas as atenções estão voltadas para a divulgação dos dados de agosto da Pesquisa Mensal de Serviços (PMS), pelo IBGE, amanhã, e do Índice de Atividade Econômica do BC (IBC-BR) na sexta-feira.

Gustavo Loyola* - Presente de grego

Valor Econômico

Para maior efetividade da lei é necessário que já funcionassem as centrais de risco de crédito, o que não ocorre

A entrada em vigor da chamada lei do superendividamento - Lei 14.181/21, que, entre outras disposições, altera o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso - tem sido amplamente saudada como um passo importante para a prevenir o superendividamento das pessoas naturais e solucionar, por meios preferivelmente conciliatórios e extra-judiciais, situações em que o devedor não disponha de capacidade de pagamento para honrar suas dívidas. Essa percepção é correta, mas é preciso ter o devido cuidado na aplicação da nova lei para evitar que ela se transforme num verdadeiro presente de grego para os consumidores, fechando, para muitos deles, o acesso ao crédito formal bancário e não-bancário.

Legislações sobre a recuperação da capacidade creditícia das pessoas naturais existem na maioria dos países com mercado de crédito maduros. Sabe-se que a exclusão de consumidores do mercado de crédito fecha-lhes oportunidades de melhorar suas condições de vida e agrava as desigualdades sociais. Nas economias contemporâneas, cada vez mais impactadas pela transformação digital e em que há tendência de aumento do contingente de excluídos, a falta de acesso ao crédito pode ter impactos permanentes sobre as famílias, perpetuando-lhes o estado de pobreza.

Paulo Delgado* - Pomar sem água

O Estado de S. Paulo

O Brasil precisa de normalidade, a vida comum das ações e emoções verdadeiras

O mundo está cheio de cretinos e este número aumenta quanto mais se afasta de Montana. Se a piada do Velho Oeste norteamericano se aproximar do Brasil, este número também aumenta. Feliz, realizada, rica, suspensa acima da terra e livre de todas as leis, a política brasileira dominou os ambientes onde cada um só cuida de si. É como obra de arte que, para ser admirada, não pode ser compreendida.

O deslumbramento com o open tudo das engenhocas digitais, o liberalismo fora da costa à moda dos corsários, o bilionário de aplicativo, a tecnologia sem ciência a serviço da agressividade, a reforma que deixa restos do Estado patrimonial dispensado de obedecer às leis, a autarquia estatal milionária dos partidos políticos. Tudo sob gestão política e judicial oficiais e sua incapacidade de dizer não a não ter direitos. Tal beatitude estabeleceu esta forma de amizade com o cretinismo sem fronteira e noção de perigo.

José Nêumanne* - Pró e contra a mudança

O Estado de S. Paulo

Suspeitos, acusados, réus, apenados e disponíveis do Congresso querem é mais corrupção

Para Paulo Teixeira (PT-SP), é preciso “aperfeiçoar o mecanismo”. José Adônis, do Conselho do MP, vê “golpe no combate à corrupção”.

A ordem institucional vigente mantém alguns princípios sagrados, que são, de fato, tratados de acordo com a regra generalizada celebrada pela sabedoria popular, segundo a qual “de boas intenções os cemitérios estão cheios”. O primeiro é que “todo o poder emana do povo”, parágrafo único do artigo 1.º da Constituição dita “cidadã” (apud Ulysses Guimarães), a que sempre recorre o senador Marcos Rogério para defender absurdos autoritários do desgoverno a que serve na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado. De fato, o Poder Legislativo, instituído para representar o cidadão comum, tem atuado de forma solerte para, em nome dessa representação, fortalecer as elites partidárias, que concentram cada vez mais nos próprios bolsos recursos e pesos, deixando de lado os contrapesos, que fingem imitar da obra revolucionária dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, no século 18. Nesse mister sinistro, recebe aval de Executivo e Judiciário.

Uma das armas empregadas no cotidiano do conluio implícito entre os três Poderes que atuam de forma harmônica, mas contra o povo, é a transformação da Câmara dos Deputados, cerne da democracia representativa, em estuário do neocoronelismo partidário que torna representantes desse povo um polvo representativo de famílias, paróquias e bandos empenhados no enriquecimento ilícito e no poder absoluto de seus sócios. Avanços inseridos no aperfeiçoamento do sistema de escolha de seus membros, caso da cláusula de barreira, exigida em lei de 2017, são desprezados em nome de um “fortalecimento dos partidos”, que, na prática, funciona como financiamento por partilha. As conquistas do combate à gatunagem no erário, celebradas em acordos internacionais de compliance, estão sendo progressivamente despejadas no lixão da república dos compadritos com cínico discurso de desprezo ao moralismo dito udenista do verdadeiro republicanismo, ou seja, submissão à coisa pública.

Roberto DaMatta* - Quanto vale uma palestra?

O Estado de S. Paulo / O Globo

Descobri a sabedoria nas histórias recitadas por pretas baianas a Tia Amália, irmã do meu pai

Desde os meus 18 anos eu vivo de “dar aulas”. Lembranças embaçadas mostram um eu criança inventando casos no salão de um navio do Lloyd Brasileiro, quando meus pais saíram de Manaus retornando a Niterói. Não me lembro dos contos, mas não esqueço do olhar enlevado dos que ouviam o menino falador cuja felicidade era ter o seu narcisismo recompensado com barras de chocolate.

Descobri a sabedoria nas histórias recitadas por pretas baianas a Tia Amália, irmã do meu pai. A que “ficou pra titia” e, solteirona, foi uma figura marginal na nossa casa. Seres periféricos enxergam com mais claridade e, como Titia, dissipam suas angústias contando histórias até hoje gravadas no fundo do meu velho coração. 

Seria esse o valor de uma palestra? Sim, porque tudo o que é transferido tem valor. Mas além de narrar coisas fantásticas, Titia fazia como Lévi-Strauss: dizia o que estava por trás, mas era visto como estando na frente das histórias. Uma delas era a do estudante pobre cuja paixão por uma moça rica fez com que realizasse o seu amor, vendendo a alma ao Diabo. Variante do Fausto, a história me perseguiu nos pesadelos com o Diabo me ofertando fama e fortuna.

Foi a oposição entre ricos e pobres que me revelou a hierarquia brasileira. Esse vinco de uma desigualdade estrutural. Um traço tão importante que há todo um inabalável sistema político-legal desenhado para mantê-lo. Volto a pergunta: quanto vale uma palestra? Ou, por que não, esta crônica?

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

O eleitoral substitui o social

O Estado de S. Paulo

Diante de um governo que deseja cuidar de si com o Auxílio Brasil, cabe ao Congresso cuidar de quem de fato precisa

Entre as obrigações do Estado previstas na Constituição está a atuação para “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. O poder público realiza essa tarefa, entre outras ações, por meio dos programas sociais. A finalidade desses programas não é conquistar a simpatia dos eleitores, melhorar os índices de aprovação de um governante e, menos ainda, manter parcela da população dependente do Estado.

O governo Bolsonaro está, no entanto, indiferente a tudo isso. Vem tratando os programas sociais como ferramentas eleitorais, em uma inconstitucional apropriação do Estado para fins particulares. Para piorar, parte da esquerda, em especial, o lulopetismo, tem sido conivente com a manobra bolsonarista. Como o PT também atuou assim quando esteve no poder, o partido de Lula parece tolerar a conduta de Bolsonaro, como se fosse normal. Quem está no poder desfrutaria dessa espécie de bônus, usando parte dos recursos públicos em proveito próprio.

Um dos sintomas da submissão das políticas sociais a fins eleitorais no governo Bolsonaro é o abandono de critérios técnicos na formulação dos programas de transferência de renda. Não há estudo, planejamento ou aprendizado com as experiências passadas. Tudo se resume a duas ideias fixas: aumentar o valor mensal e aumentar o número de pessoas atendidas.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - A palavra seda

A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.

E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.

É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.

E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,

nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.

Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,

há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,

de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.