sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Entrevista | Adam Przeworski: ‘O crescimento da extrema direita vem de pessoas que não votavam antes’

Para o autor de “Crises da democracia” e “Por que eleições importam”, a pressão ambiental e fiscal fará crescer os desafios da democracia e pode surgir uma liderança republicana mais hábil que Trump na corrosão de seus alicerces

Por Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico / Eu & Fim d Semana

Anos atrás, quando ainda morava em Chicago, Adam Przeworski teve os pneus de seu carro presos no gelo em função de uma nevasca. Ligou para a prefeitura em busca de ajuda e nada conseguiu. A esposa acionou o chefe do diretório local do Partido Democrata. Ele chegou em seguida e logo registrou a ausência deles nas últimas eleições municipais. Przeworski e a mulher lhe garantiram serem registrados como integrantes do partido e lhe prometeram que votariam nas eleições seguintes. Uma hora depois apareceu uma equipe da prefeitura para retirar o gelo. “A administração pública estava comprando nossos votos por meio da oferta seletiva de serviços públicos”, concluiu.

O dono do carro contou a história em “Por que eleições importam” (Eduerj, 2021). Não é uma leitura para curar o complexo de vira-latas tupiniquim, mas para colocar o ponto e a vírgula nas expectativas eleitorais. “Eleições não são belas”, diz, ao descrever chicanas eleitorais mundo afora. E, portanto, não se deve esperar delas o que não podem dar. O livro foi originalmente lançado antes de “Crises da democracia”, publicado em 2020 no Brasil pelo selo Zahar, da Companhia das Letras. Complementam-se ao dissecar as raízes do desencanto.

O autor, nascido em Varsóvia em 1940 e filho de um casal de médicos, não chegou a conhecer o pai, morto pelos soviéticos. Aos 21 anos deixou Varsóvia pela primeira vez para se doutorar na Universidade de Northwestern, em Illinois. Seu destino cruzaria pela primeira vez com o Brasil quando, numa de suas estadias acadêmicas no exterior, recebeu de um amigo brasileiro, Pedro Celso Cavalcanti, militante do Partido Comunista exilado em Varsóvia, o conselho para não retornar ao país. Como seu visto americano havia expirado, foi parar no Chile. Przeworski acabaria voltando aos Estados Unidos, mas não perderia os vínculos com o Brasil ao longo de sua vida acadêmica em universidades americanas e europeias, entre as quais a de Chicago, onde passou 22 anos. Em 2019 reencontrou ex-alunos e colegas em palestra em São Paulo nas comemorações dos 50 anos do Cebrap.

Invasão do Capitólio: Przeworski teme que o país fique paralisado se os democratas perderem a maioria no Congresso nas eleições do próximo ano — Foto: Jose Luis Magana/AP

Przeworski sempre manteve distância regulamentar dos arautos da crise terminal da democracia, mas anda pessimista, ou realista, como prefere. Não idealiza os ritos da democracia. Vê, porém, sombras pesadas sobre a democracia, a começar pela americana. Não apenas pelas chances de o Partido Republicano vir a ser dominado por uma liderança mais hábil que Trump, mas pelo risco de o país ficar paralisado a partir de 2022 numa eventual derrota da maioria democrata na Câmara.

Aos 81 anos, Przeworski é um pesquisador incansável. Detentor do Prêmio Johan Skytte, concedido pela Universidade de Uppsala (Suécia) e considerado o Nobel da ciência política, continua a dar aulas na Universidade de Nova York, onde mora com a mulher e onde sua filha dá aulas de genética na Universidade de Columbia. Nesta entrevista, concedida por Zoom a partir de seu apartamento em Nova York, na última terça-feira, diz que a extrema direita não se elege roubando votos da esquerda, mas engajando o absenteísmo; critica o banimento de políticos, como Trump, das redes sociais; e alerta para a centralidade da questão ambiental: “Os conflitos vão aumentar”. 

A seguir, a entrevista:

Valor: O senhor diz no seu livro que a principal virtude da democracia é a capacidade de processar conflitos com liberdade e sem violência. O que aconteceu em Washington no dia 6 de janeiro foi um contestação violenta às urnas. Como aquela invasão do Capitólio pôs em xeque as eleições americanas como salvaguarda da democracia?

Entrevista | João Doria: “Este governo se autodestroi e quer destruir o próximo”

Governador paulista propõe reforma administrativa ampla e rápida como primeiro ato se chegar à Presidência

Por Maria Cristina Fernandes e César Felício / Valor Econômico

Pré-candidato à Presidência pelo PSDB, o governador de São Paulo João Doria renova o antagonismo ao presidente Jair Bolsonaro no centro de seu discurso. Para o paulista, Bolsonaro começa a inviabilizar a gestão que o sucederá com medidas como a PEC dos Precatórios, aprovada em 1ºturno pela Câmara na madrugada de ontem. “Querem destruir o próximo governo, não apenas este”, comentou, em conversa pelo aplicativo Zoom com o Valor, que encerra assim as entrevistas com os postulantes tucanos na prévia da sigla que acontece este mês. Também falaram ao jornal o governador gaúcho Eduardo Leite e o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio Neto.

Doria destacou o voto dos seis deputados do PSDB paulista contra a PEC, que altera o teto de gastos e posterga o pagamento de dívidas judiciais já transitadas em julgado. Para Doria, a principal intenção do governo com a PEC é “criar um processo eleitoral que favoreça o presidente”.

Suas ambições imediatas, se eleito presidente, são uma reforma administrativa ampla e rápida e o fim das emendas de relator que transferem ao Congresso o controle do Orçamento. Aposta que o peso político de um presidente recém-eleito fará a balança pender a seu favor.

"A população brasileira, em sua grande maioria, opta pelo sistema presidencialista e esta é a minha posição também"

O governador diverge do partido ao se dizer contra o semipresidencialismo, proposta de um correligionário, o deputado Samuel Moreira (SP). E ainda defende a volta do financiamento privado de campanhas sem abolir o atual financiamento público. 

A seguir, trechos da conversa:

Bernardo Mello Franco - Grão-mestre em autopromoção

O Globo

Jair Bolsonaro concedeu a si mesmo a Ordem Nacional do Mérito Científico. O presidente se admitiu na classe de grã-cruz, a mais elevada da comenda. Aproveitou para condecorar quatro ministros e um almirante.

O capitão não precisava de esforço para ganhar a medalha. O texto que a criou, em 1993, estabelece que seu grão-mestre é o presidente da República. Desde então, seis políticos ocuparam o cargo. Só Bolsonaro assinou um decreto para se autocongratular.

A honraria deve premiar personalidades que “se distinguiram por suas relevantes contribuições prestadas à ciência, à tecnologia e à inovação”. O capitão se distinguiu por sua contribuição para enxovalhar o setor. Asfixiou o orçamento do ministério, sucateou instituições de pesquisa e cortou milhares de bolsas de estudo.

Bolsonaro é um negacionista convicto. Nega as mudanças climáticas, a importância das vacinas e a necessidade de preservar as florestas. Sua cruzada contra a ciência agravou a tragédia da pandemia. Mesmo assim, ele vai inscrever seu nome entre personagens como Carlos Nobre e Mayana Zatz.

Luiz Carlos Azedo - Governo ganhou, mas pode não levar os precatórios

Correio Braziliense

A PEC dos Precatórios subiu no telhado. Corre risco de ser barrada na segunda votação da Câmara, ou mesmo pelo Senado, mais sensível às pautas majoritárias da sociedade

O gesto do ex-ministro Ciro Gomes, ao comunicar ao PDT que sua pré-candidatura a presidente da República está suspensa, em razão do adesismo da sua bancada federal na votação da PEC dos Precatórios, teve um efeito saneador em toda a oposição, que votou muito dividida na madrugada de ontem, quando a proposta foi aprovada pela Câmara, em primeiro turno, por uma margem estreita de quatro votos. A votação desnudou as contradições existentes nas bancadas dos principais partidos de oposição, principalmente as relações perigosas com o esquema secreto de distribuição de emendas ao Orçamento comandado pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).

Como sempre acontece nas votações polêmicas, a PEC dos Precatórios foi aprovada na calada da noite, 312 votos a 144. O texto-base da PEC dos Precatórios, a principal aposta do governo para viabilizar o Auxílio Brasil de R$ 400, esconde um butim de R$ 20 bilhões acima do teto de gastos, a serem distribuídos por Lira durante o ano eleitoral, diretamente para prefeituras e instituições ligadas aos parlamentares que participam do seu esquema, sem controle efetivo dos órgãos fiscalizadores sobre a execução desses recursos em bases, digamos, republicanas.

Vinicius Torres Freire - A morte das promessas

Folha de S. Paulo

Teto caído soterra Guedes, Moro foi acusado de negocista e Bolsolão revive velha política

O liberalismo de Paulo Guedes sempre foi caricatura. Na noite de quarta-feira, essa fantasia grotesca estrebuchava sob as ruínas do teto de gastos, a grande obra da coalizão liberal que depôs Dilma Rousseff. Na mesma noite, Jair Bolsonaro dizia à Polícia Federal que Sérgio Moro é um tipo negocista, que troca um pedido presidencial por uma nomeação para o Supremo.

No Congresso, a derrubada do teto era conduzida pelo centrão, com auxílio de ministros, com votos sendo cabalados por meio da promessa de emendas parlamentares. A "velha política" sapateava e pedalava sobre a "responsabilidade fiscal" agonizante.

O centrão marombado pelo bolsonarismo contribuiu para o enterro da Lava Jato e ajuda Bolsonaro a rasgar os trapos da sua fantasia liberal, lavajatismo e liberalismo que serviram de desculpa para elites várias subirem na barca do inferno (em última instância, os motivos eram mesmo o antipetismo, a recusa de pagar mais impostos e a acomodação habitual com a incivilidade).

Bruno Boghossian - Uma mão lava a outra

Folha de S. Paulo

Votação de PEC dos Precatórios mostra força de máquina de dinheiro público que pode beneficiar o presidente

O acordo generoso firmado com o centrão em 2020 blindou Jair Bolsonaro dos pedidos de impeachment que se acumulavam no Congresso. Na última madrugada, as duas partes assinaram um aditivo a esse contrato: em troca de uma boa recompensa, o bloco também mantém vivos os planos eleitorais do presidente.

A vitória na primeira votação da PEC dos Precatórios é o passo inicial para que o governo pegue um atalho no Orçamento e pague um Bolsa Família turbinado no ano que vem. Sem essa manobra, a derretida popularidade de Bolsonaro teria chances reduzidas de recuperação na disputa por mais um mandato.

O governo conseguiu aprovar o drible graças a uma operação liderada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira. Em sociedade com o Palácio do Planalto, ele prometeu liberar dinheiro para que os estados banquem salários de professores e sinalizou que haverá mais espaço nos cofres para as emendas indicadas pelos deputados.

Hélio Schwartsman - Todo poder ao centrão

Folha de S. Paulo

Ele foi eleito prometendo fazer o centrão passar a pão e água

Mais de 600 mil mortos pela Covid, fome, inflação e desemprego em alta, abismo fiscal à vista, destruição ambiental. No exterior, o presidente do Brasil virou motivo de chacota. Não é possível que deputados experientes do centrão e de partidos mais gelatinosos como o PSDB e o PDT estejam satisfeitos com este governo. Ainda assim, votaram a favor da PEC dos Precatórios, cujo principal beneficiário é Bolsonaro.

PEC dos Precatórios tem muitos vícios e pouquíssimas virtudes. É verdade que permitirá pagar bolsas a famílias muito carentes, mas ela detona de forma burra o teto de gastos, que permitiu ao país manter os juros baixos por um bom tempo, legaliza o calote em decisões da Justiça e permitirá uma farra de gastos eleitorais não prioritários. Esse último elemento é parte da explicação para o comportamento dos políticos, já que a PEC engordará as verbas para o "orçamento secreto" e para o fundo eleitoral.

Reinaldo Azevedo – O Brasil é palco de um 'freak show'

Folha de S. Paulo

E se o presidente de fato combinou com Jim Carrey uma versão verde-amarela de 'Dumb & Dumber', traduzido por aqui como 'Debi & Loide'?

Deltan Dallagnol, que me processa —por enquanto, está perdendo, vamos ver—, anunciou que vai deixar o Ministério Público Federal. Quer uma vaga na Câmara.

O bom rapaz do iê-iê-iê da destruição do Estado de Direito e do devido processo legal diz nas redes sociais: "Minha vontade é fazer mais, fazer melhor e fazer diferente". Parece realmente um serviço diferenciado... Como num rock antigo, seria ele a "solução do seu problema?".

Que coisa! Eu, um jurista com aspas, como o buliçoso rapaz me definiu em diálogos revelados pela Vaza Jato, afirmei de cara, ainda em 2014, que sua atuação parecia mais comprometida com a política do que com a lei.

Alô, Lenio Streck, jurista sem aspas! É evidente que estávamos certos, não? Mas o que busca Deltan? Parece estar de olho na imunidade parlamentar. Não poderá mais ser alcançado pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Uma vez na Câmara, abre-se uma larga avenida para seu tipo de militância.

Vera Magalhães - Rosa Weber pode frear poder de Lira

O Globo

Com os partidos postulantes a uma cada vez mais distante terceira via despejando votos a favor de Jair Bolsonaro, o Tribunal de Contas da União “integrado” ao governo, como disse o presidente, e o orçamento secreto de Arthur Lira comendo solto, quem poderá frear o vale-tudo visto para a aprovação da excrescência batizada de PEC dos Precatórios?

Como sempre, os olhos estão voltados para o Supremo Tribunal Federal. Primeiro na análise da constitucionalidade da emenda que, numa só tacada, deu um calote no pagamento de precatórios e arrombou o teto de gastos. Ela é flagrantemente inconstitucional nessas duas pontas. A primeira já foi objeto de julgamento do próprio STF.

Mas não é essa a única providência que pode — e deve — partir do STF. Está tardando muito para que a ministra Rosa Weber, relatora das ações que discutem a legalidade das emendas do relator ao Orçamento, vulgo orçamento secreto, leve esse caso essencial para o país ao plenário da Corte.

A invenção de uma modalidade de emenda que é um fast-track de recursos orçamentários para as bases dos deputados e senadores, sem muita ingerência dos órgãos de controle e fiscalização, está não só colocando em xeque as contas públicas, como deturpando fortemente a governabilidade e, no limite, a democracia.

Claudia Safatle - Dia 7, o Bolsa Família morre de ‘morte matada’

Valor Econômico

Não há tempo hábil para implementar o novo programa de distribuição de renda sem interromper o atendimento aos assistidos

O Programa Bolsa Família, revogado pela medida provisória 1061, acaba no dia 7, depois de amanhã. No seu lugar técnicos oficiais ainda avaliam o que poderá ser feito. Uma hipótese é a de prorrogar o Auxílio Emergencial de R$ 300 para o mesmo público que ele beneficia hoje. Outra seria editar uma nova medida provisória protelando por mais algum tempo a existência do programa. Há ainda alternativas outras, como decretar estado de calamidade e abrir crédito extraordinário. O fato é que, sem a existência do Bolsa Família nem a do seu sucedâneo, o Auxílio Brasil, não há como transferir os recursos para os beneficiários.

Na madrugada desta quinta-feira o plenário da Câmara aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Precatórios em um placar apertado de 312 votos a 144. Eram necessários 308 votos. A PEC abre espaço fiscal de R$ 91,6 bilhões, dinheiro mais do que suficiente para financiar o Auxílio Brasil, de R$ 400 para um universo de 17 milhões de famílias.

Celso Ming – Estragos produzidos por esta PEC


O Estado de S. Paulo

Uma vez admitida a nova violência, estarão abertas as portas para calotes de outros passivos

Além de violência fiscal, a aprovação na Câmara dos Deputados, em primeira instância, da PEC dos precatórios é uma distorção que pode servir de precedente para novas distorções.

É uma violência fiscal na medida em que é um passo em direção a uma brutal insegurança. Se essa decisão passar pelos outros três turnos – mais um na Câmara e outros dois no Senado –, ficará destruído o alicerce fiscal. A partir daí, sempre caberão novas despesas que farão ou não parte do Orçamento, como as que pretextaram esta PEC.

A aprovação foi um arranjo de casuísmos. O primeiro foi ter pretendido licença para matar ("waiver" para atropelar o teto de gastos, na expressão do ministro Paulo Guedes). A vítima é o equilíbrio das contas públicas, que já vinha precário. O segundo foi a mudança no fator de correção do teto, truque que teve por objetivo admitir R$ 47 bilhões dos R$ 91,6 bilhões que a PEC deve abrir no Orçamento de 2022. A partir de agora, o Orçamento anual será aprovado sem que se saiba a altura do teto.

Eliane Cantanhêde - PEC da Reeleição

O Estado de S. Paulo

PEC dos Precatórios rachou a esquerda e mostrou a dubiedade e fragmentação do centro para 2022

A Proposta de Emenda Constitucional que cria um calote nos precatórios e implode o teto de gastos para comprar votos para a reeleição do presidente Jair Bolsonaro serve como uma prévia para as eleições de 2022 e mostra como o Congresso só pensa nas suas emendas e os partidos estão infiltrados pelo bolsonarismo. PEC dos Precatórios ou PEC da Reeleição?

A votação rachou a esquerda e mostrou a dubiedade e a fragmentação do centro, comprovando que o PT não arrasta os votos de velhos aliados, caso do PDT e do PSB, e que nem os partidos centro que têm candidatos contra Bolsonaro fecham as portas para ele.

Para o presidente, o Planalto e os tais “ministros políticos”, pouco importa o impacto na Bolsa, no câmbio, na segurança jurídica, na própria credibilidade do País. O que interessa é que a PEC cria recursos para Bolsonaro financiar a troca do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil, com R$ 400.

Carlos Melo* - No escuro do plenário, todos são gatos pardos

O Estado de S. Paulo

Nos rincões e gabinetes do País, a eleição já vai longe. Se não para a maioria dos candidatos a presidente – que ainda pelejam internamente, negociam adesões e palanques –, certamente para quem pleiteia a reeleição. Caso de Jair Bolsonaro e de uma miríade de deputados federais de diversas legendas. No escuro do plenário, governo e parte da oposição tornam-se, todos, gatos pardos. Isso ficou patente na votação, em primeiro turno, da PEC que altera a regra para o pagamento de precatórios e afeta o teto de gastos do governo federal. A proposta, em si, é um alívio para o populismo político com o dinheiro público que faz do necessário Auxílio Emergencial um boi e do teto de gastos a cerca furada. E por onde passa um boi, passará a boiada de recursos vários, expressos em emendas parlamentares e orçamentos secretos.

Gente qualificada e com credibilidade como Felipe Salto, articulista do Estadão e diretor executivo da IFI, afirma que haveria, sim, espaço para atender aos pobres sem ignorar o imperativo moral dos precatórios. Instituir o Auxílio é bem fácil, mexer em emendas e no clientelismo dos líderes da Câmara é que é o xis do problema.

Impossível fugir do clichê: farinha pouca, a tigela do pirão do parlamentar é a que vem primeiro. Diante do autointeresse de cada deputado, a disciplina partidária é luxo descartável. O fato revela contradições e choques no interior da chamada terceira via e mostra que, no salve-se quem puder de hoje, quase todos perderão amanhã. Para quem tiver amanhã.

*Cientista político e professor do Insper

Planalto libera R$ 1,2 bi; siglas da 3ª via votam a favor

Planalto acelera liberação de recursos da emenda de relator na semana em que o texto chegou ao plenário da Câmara; proposta é aprovada em 1º turno com margem estreita

Breno Pires, André Shalders / O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - Às vésperas da votação da PEC dos precatórios na Câmara, o governo empenhou R$ 1,2 bilhão em emendas de relator-geral. Com voto de deputados de oposição, o texto foi aprovado em 1.º turno na madrugada de ontem. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aposta na aprovação em 2.º turno, na terça-feira.

Em busca de apoio para a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos precatórios, o presidente Jair Bolsonaro decidiu abrir o cofre e acelerou a liberação de dinheiro a deputados na véspera da votação, na madrugada de ontem. Desde a semana passada, quando o texto chegou ao plenário da Câmara, o governo empenhou R$ 1,2 bilhão das chamadas emendas de relator-geral – o mecanismo do orçamento secreto. Segundo relatos feitos ao Estadão, o valor oferecido por interlocutores do Palácio do Planalto pelo voto de cada parlamentar foi de até R$ 15 milhões. Quem coordenou as negociações para a aprovação da proposta foi o próprio presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL).

A PEC foi aprovada em primeiro turno na madrugada de ontem com uma margem estreita – 312 a 144, apenas quatro votos acima dos 308 necessários. Partidos que se colocam como oposição e que pretendem lançar candidatos na eleição presidencial de 2022, como o PSDB, o PDT, o MDB e o Podemos, ajudaram a garantir a aprovação. Parlamentares dessas siglas, que já haviam sido contemplados com recursos do orçamento secreto, deram 52 votos a favor da medida e contribuíram para a vitória do governo (mais informações na pág. A12).

“Colegas nossos de bancada comentaram que era esse valor, de R$ 15 milhões (para quem votasse a favor da PEC)”, afirmou ao Estadão o deputado Celso Maldaner (MDBSC), que votou contra e disse não ter recebido nada. Questionado sobre como soube da oferta, o deputado disse ter ouvido o “comentário de um colega de partido, vice-líder de governo, que falou que os vice-líderes estiveram reunidos e falaram nesses números”.

Hildo Rocha (MDB-MA) também relatou conversas sobre a troca de votos por emendas. “Quando os deputados do PDT começaram a votar com o governo nos requerimentos do ‘kit obstrução’, muita gente no plenário avaliou que o governo tinha conseguido conquistar o PDT à base de R$ 200 milhões em emendas de relator”, disse Rocha.

Maria Cristina Fernandes - Dos presidenciáveis, só PT e Novo votaram 100% contra

Mesmo com o casuísmo do presidente da Câmara, a oposição teria condição de derrotar a PEC com folga se tivesse votado unida

Valor Econômico

O mapa da votação do 1ºturno da PEC dos Precatórios mostrou que dos partidos com candidato à Presidência o PT e o Novo foram os únicos a votar unidos e estrategicamente para derrotar o governo. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) voltou atrás em decisão já oficializada de retorno às sessões presenciais para permitir o voto virtual de parlamentares em missão oficial. Com a manobra, porém, estima-se que tenha conseguido apenas 13 votos.

Mede-se o apreço de um político pela democracia por sua capacidade de não mudar as regras do jogo contra uma derrota. O presidente Jair Bolsonaro tentou isso com a batalha contra a urna eletrônica mas o paredão do Judiciário se levantou. Agora Lira não apenas tentou como fez coisa parecida e não apareceu quem lhe pusesse freio.

Mesmo com o casuísmo de Lira, a oposição teria condição de derrotar a PEC com folga se tivesse votado unida. A proposta passou por apenas quatro votos. O número de votos que recebeu do PSDB dos governadores João Dória e Eduardo Leite (22) superou em mais de cinco vezes essa diferença. Se o PDT de Ciro Gomes não tivesse dado 15 votos a favor da PEC a chincana do presidente da Câmara (PP-AL) não teria feito cócegas no resultado.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Congresso tem o dever de derrotar PEC do Calote

O Globo

Só a necessidade de apresentar uma vitória política depois de reveses sucessivos explica o afã do presidente da Câmara, Arthur Lira, para aprovar a todo custo a Proposta de Emenda Constitucional de número 23 (PEC-23), apelidada PEC dos Precatórios — ou PEC do Calote.

Essencial à estratégia eleitoral do governo em 2022, o texto aprovado em primeiro turno na Câmara ameaça não apenas a estabilidade econômica ao autorizar a ruptura do teto de gastos. Se aprovado, também se tornará objeto de contestação jurídica tanto pelo conteúdo — pois legaliza o calote em dívidas judiciais cujo pagamento já foi decidido em última instância — quanto pela forma adotada por Lira para garantir a aprovação.

As consequências econômicas da ruptura do teto já vêm sendo sentidas na cotação do dólar, na alta da inflação e na escalada dos juros. O pretexto do governo para promover a lambança é pagar a 17 milhões o novo Auxílio Brasil de R$ 400, substituto do Bolsa Família desenhado não para combater a pobreza ou a desigualdade, mas tão somente para aumentar as chances de reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

É um pretexto sem cabimento. Seria perfeitamente possível criar um programa social mais barato e mais eficaz que coubesse sob o teto. O que Lira e o governo querem, na verdade, é manter — se possível ampliar — o espaço orçamentário destinado a seus interesses paroquiais, em particular às emendas do relator, expediente por meio do qual verbas são distribuídas à revelia dos organismos de controle e fiscalização. É dinheiro fundamental para a reeleição dos parlamentares em seus redutos.

Poesia | Bertold Brecht - Cantar de mãe alemã

Meu filho, esse par de botas

E essa camisa marrom eu te dei

Mas teria antes me matado

Se soubesse o que hoje sei.

Meu filho, ao te ver erguer

A mão pra Hitler em saudação

Não sabia que o teu destino

Seria a própria danação.

Meu filho, ao te ouvir falar

De uma grande raça de heróis

Não sabia, não via nem pressentia

Que eras mais um algoz.

Meu filho, ao te ver marchar

Atrás de Hitler em coorte

Não sabia que quem com ele partia

Nada acharia senão a morte.

Meu filho, tu dizias: a Alemanha

Em breve será motivo de assombro.

Eu não sabia que ela se tornaria

Um monte de cinzas e escombros.

Vi a camisa marrom te vestir

Não me opor foi minha falha

Pois não sabia o que hoje sei:

Que ela era a tua mortalha.