domingo, 26 de dezembro de 2021

Merval Pereira: Desobediência civil

O Globo

A decisão de vários governadores e prefeitos pelo país de não acatar a decisão do governo federal de exigir prescrição médica para vacinar contra a COVID-19 crianças de 5 a 11 anos pode ser considerada uma variante da desobediência civil, desenvolvida pelo ativista norte-americano do século XIX Henry David Thoreau, que se insurgiu contra com os impostos cobrados para financiar a Guerra dos Estados Unidos contra o México, e comandou uma reação pública.  

Não se trata de uma ação individual com objetivos políticos, mas reação à lei percebida como injusta por um grupo de cidadãos. As pesquisas de opinião mostram que cerca de 80% da população brasileira é favorável à vacinação, o que permite fazer a ilação de que a maioria também pretende vacinar seus filhos e netos, mesmo o governo se recusando a acatar as determinações da Anvisa que, a exemplo de vários países da Europa e os Estados Unidos, autorizou a vacinação infantil.

Bernardo Mello Franco: Dois desejos para 2022

O Globo

Uma presença emocionou os convidados do jantar que produziu a foto de Lula e Geraldo Alckmin no domingo passado. Aos 92 anos, o advogado Almino Affonso subiu no palco, fez discurso e recebeu uma medalha. Representava a geração de políticos que viram a democracia desmoronar no golpe de 1964.

Ministro do Trabalho em parte do governo João Goulart, Affonso foi incluído pelos militares na primeira lista de cassados. Refugiou-se na embaixada da Iugoslávia, passou 12 anos no exílio e voltou ao país a tempo de participar da campanha pela Anistia. Aproximou-se de Lula nas greves dos metalúrgicos, mas nunca quis se filiar ao PT. Depois se elegeu vice-governador de São Paulo pelo PMDB e deputado pelo PSDB.

“Na minha juventude, não participo mais da política no sentido eleitoral”, brinca o ex-ministro, hoje sem filiação partidária. “Mas acho que precisamos unir quem for possível para proteger e restaurar a democracia”, defende.

Amigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Affonso considera que a aproximação entre Lula e Alckmin “espanta e não espanta” ao mesmo tempo. “Nas últimas eleições, PT e PSDB expressaram visões opostas. Mas os dois partidos já estiveram bem próximos no passado”, lembra.

Elio Gaspari: Bolsonaro desafiou os servidores

O Globo / Folha de S. Paulo

Só um inimigo de Bolsonaro seria capaz de propor que, às vésperas do fim do ano, ele entrasse em campo para obter um reajuste salarial dos policiais federais, e só deles. Colheu a devolução de mais de 500 cargos de confiança da Receita Federal e uma ameaça de greve. O presidente que prometeu acabar com o ativismo, fabricou-o mobilizando contra o governo funcionários concursados, nada a ver com a cumbuca de nomeações dos políticos amigos.

O que o Planalto pode dizer a um servidor cuja categoria tem um pleito funcional e chegou em casa tendo que explicar à família que ficou de fora da generosidade presidencial?

O estilo Bolsonaro de gestão já encrencou com o Inep, o Iphan, o Inmetro e a Anvisa. Cada encrenca deixou cicatrizes, até que explodiu a crise da Receita.

O doutor Paulo Guedes, parceiro da manobra, talvez possa contar ao capitão o que é o “efeito do túnel”, descrito pelo economista Albert Hirschman (1915-2012). Ele celebrizou-se explicando de maneira simples problemas que seus colegas expõem de forma complicada.

O “efeito do túnel” relaciona-se com a distribuição de renda. Se duas fileiras de carros estão engarrafadas num túnel e ambas se movem lentamente, os motoristas aceitam o contratempo. Se uma fileira começa a andar mais rápido, quem está parado acha que o jogo está trapaceado. Bolsonaro gosta de arriscar, mas mesmo sabendo-se que Hirschman talvez não seja flor do orquidário de Guedes, pouco custaria ao doutor pela universidade de Chicago explicá-lo ao capitão.

Bruno Boghossian: Os termômetros do centrão

Folha de S. Paulo

Políticos podem acordar com Bolsonaro, liberar verba em seus redutos e dormir com novo presidente

Às portas de mais um ano eleitoral, o líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara afirmou que Lula foi "um bom presidente". Operador político da aliança centrão-Planalto, o deputado Ricardo Barros (PP-PR) disse à Folha que o petista tinha "uma perspicácia muito grande". "Tivemos uma boa parceria, nosso partido com ele", declarou.

Os agentes do centrão costumam ser um termômetro do poder. A fluidez desbragada desses políticos permite que eles durmam com Bolsonaro, acordem distribuindo tratores para prefeitos de oposição, passem a tarde em campanha pela reeleição do presidente e corram para a cama com um novo inquilino no Palácio da Alvorada.

Hélio Schwartsman: Um animal irracional

Folha de S. Paulo

Para cada avanço do pensamento racional, surgem reações bem pouco racionais, que às vezes triunfam

Há vários modos de ser irracional. Alguns fazem mais sentido do que outros. É conhecida a máxima atribuída ao apologista cristão Tertuliano (c. 160-c. 220), segundo a qual a crença religiosa precisa ser absurda —"Credo quia absurdum", "creio porque é absurdo". Kierkegaard, no século 19, retoma essa tradição, ao postular que a fé é um ato de vontade, que prescinde de provas e considerações racionais.

Nem todos são capazes de aceitar tal nível de abstração. É o caso de Ken Ham, que, na tentativa de conciliar evidências fósseis com uma leitura literal da Bíblia, fundou, no Kentucky, o Museu da Criação. O resultado é risível. Para que a Terra possa ter apenas 6.000 anos, como quer a Bíblia, Ham precisa pôr dinossauros para conviver com humanos. Se tivesse estudado mais filosofia, saberia que não é necessário forjar provas para salvar a religião.

Janio de Freitas: Golpe no seu rumo

Folha de S. Paulo

Comprar a aliança dos armados faz retorno aos preparativos contra esmagador resultado eleitoral

aumento salarial restrito à Polícia Federal e demais servidores civis armados, como os policiais rodoviários, relaciona-se à eleição de 2022, claro. Mas não com fim eleitoral. É o que sobressai nesse privilégio prometido por Bolsonaro, e já antecipado aos militares, quando todo o restante do serviço público federal está há cinco anos sem reposição alguma das perdas salariais.

Comprar a aliança dos armados faz um retorno aos agrados preparatórios do golpe frustrado. Logo, retorno também aos preparativos contra o esmagador resultado eleitoral antevisto nas atuais pesquisas.

É a estratégia formulada por Steve Bannon. Provocar, irritar, manter inquietação. Acusar o sistema eleitoral, atrair os bandos arruaceiros e erguer a situação para o golpe. O programa que Trump praticou, fracassado na etapa final porque a invasão do Congresso não teve o desdobramento esperado.

Dorrit Harazim: Uma pausa

O Globo

Aproveita-se aqui a janela dupla Festas/Ano-Novo, quando tudo se atropela e ao mesmo tempo vai parando, para dar folga ao noticiário que tanto nos atormentou em 2021. Hoje nenhum fato ou figura política frequentará esta coluna, que nem sequer roteiro tem, coitada. Ela é uma mera pausa — cheia de interrogações sobre o que somos, o que é sempre saudável.

Se a biologia deu ao ser humano um cérebro, quem transforma o cérebro em mente é a vida — e a vida, aprendemos cedo, é danada de difícil de mapear. Do cérebro e de seus 86 milhões de neurônios, cada um conectado a outros milhares que se entrecruzam numa centena de trilhões de sinapses, já se sabem montes. A ciência, a medicina, a biotecnologia e a saúde universal agradecem a essa exploração instigante. Em contrapartida, há mais de 5 mil anos poetas e filósofos, doutores do divino e das ciências procuram destrinchar todos os mistérios da mente humana. Em vão. O que também não deixa de ser apaixonante.

Vinicius Torres Freire: Como pode ser a desbozificação do Brasil

Folha de S. Paulo

É preciso conter manipulação e crimes de Estado, mentira e política negocista

Um procurador-geral da República sério pode criar problemas sérios para um presidente da República delinquente. Um procurador venal da República pode vender sua alma para um presidente que o seduza com a promessa de uma cadeira no Supremo.

Qualquer presidente pode oferecer essa mamata. Existe a oportunidade de mutreta judicial também por meio da manipulação de ministros da Justiça, diretores da Polícia Federal ou ministros de tribunal superior.

Jair Bolsonaro expôs de vez essas vergonhas. Talvez seja o caso de proibir por lei que chefes da procuradoria, da polícia ou da Justiça possam ser indicados para tribunal superior pelo mesmo presidente que os nomeou para aqueles cargos.

Míriam Leitão: Receita Federal no plano de demolição

O Globo

O clima na Receita Federal era, na véspera do Natal, de “indignação coletiva”, na definição de uma fonte. “Essa é a maior crise da história”, completou. Mas o que acontece lá não é fato isolado. O governo Bolsonaro tem feito um ataque sistemático ao Estado usando um arsenal conhecido. Corta cabeças de lideranças com alguma autonomia, aparelha e, depois, seca recursos. Assim ele fez com Ibama, ICMbio, IPHAN, Funai, Fundação Palmares, Ministério da Educação, Ministério da Saúde.

Na Receita, o governo cortou dinheiro da manutenção da máquina para ter recursos para aumentar salários da Polícia Federal. Ela mesma, a PF, enfrentou um vistoso caso de intervenção do presidente para retirar sua autonomia e colocá-la a serviço da sua família, como o próprio presidente confessou com palavras chulas naquela famosa reunião ministerial.

Rolf Kuntz: O risco Bolsonaro em 2022

O Estado de S. Paulo.

O presidente que emperra a vacinação de crianças é o mesmo do desemprego, da inflação e do empobrecimento

Mais do que nunca, apesar de Bolsonaro, Queiroga e seus assemelhados, é preciso insistir nos votos de feliz ano novo, mesmo diante da perspectiva de mais 12 meses de irresponsabilidade, incompetência e desmandos. É preciso manter a esperança e fazer o possível para dificultar o avanço da perversão e da barbárie. O pior presidente da história brasileira encerrou 2021 emperrando a vacinação de crianças contra a covid19. Já havia retardado, em 2020, a vacinação de adultos, num jogo sinistro com centenas de milhares de vidas. Desta vez, além de questionar a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), cobrou os nomes de quem participou da decisão. Com seu exemplo, incitou militantes do ódio a ameaçar diretores da agência. Obediente a seu amo, o ministro da Saúde – sim, da Saúde – anunciou uma consulta pública sobre a imunização das crianças, como se esse fosse o meio de resolver uma questão técnica e científica.

Cristovam Buarque: As lições do Chile

Blog do Noblat / Metrópoles

A maior lição chilena é o enterro do populismo

A eleição de Gabriel Boric para Presidente do Chile nos passa algumas lições.

A primeira, de que a política está polarizada, a “terceira via” não chega ao segundo turno, e vence a eleição o extremo que conseguir apoio do centro.

A segunda lição, para chegar ao segundo turno é preciso ter propostas diferentes das ideias obsoletas herdadas do passado. É preciso: incorporar o desenvolvimento sustentável como propósito da economia casada com o meio ambiente; perceber o papel da educação como vetor do progresso; há um desejo de renovação, nem a velha direita nem a esquerda velha; é preciso incorporar nas propostas as mudanças nos costumes e nos direitos humanos; ter a percepção de que justiça social não caminha sobre economia ineficiente, nem sob moeda com inflação. Foram estas novidades ideológicas que derrotaram os partidos e lideranças tradicionais no primeiro turno e derrotaram o candidato de direita no segundo. Estamos atrasados: os “nem nem” do Centro não entenderam a força dos extremos neste momento da história. Nem foram capazes de modernizar seus discursos, a direita ainda menos, ficando cada vez mais atrasada.

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

A consolidação da queda de homicídios no Rio

O Globo

O ano acaba com uma boa notícia para o Rio. O estado registrou, de janeiro a novembro, o menor número de homicídios dolosos em toda a série histórica, iniciada em 1991. Foram 3.008 assassinatos, redução de 8% na comparação com igual período de 2020. Não se trata de um ponto fora da curva. Está evidente que é uma tendência. Pelo terceiro ano consecutivo, há quebra do recorde registrado anteriormente.

O número de roubos de rua (incluindo celulares e outros pertences de pedestres ou usuários de transporte público) também caiu ao menor patamar desde 2012. O mesmo aconteceu com o total de roubos de veículos, ao nível mais baixo em uma década. Enquanto se festejam as mortes evitadas, é crucial tentar entender as causas da melhora.

Múltiplos fatores têm exercido influência. É inegável que houve, nos últimos anos, maior investimento do governo estadual nas polícias militar e civil. Também houve renovação na frota de veículos e compra de novos fuzis e pistolas. O atraso contumaz nos salários dos agentes de segurança também cessou. Melhores condições materiais permitiram a ampliação do policiamento preventivo e ostensivo, assim como a implementação de projetos focalizados, com uso mais inteligente dos dados.

Poesia | Manuel Bandeira: Poemeto irônico

O que tu chamas tua paixão,

É tão-somente curiosidade.

E os teus desejos ferventes vão

Batendo as asas na irrealidade...

 

Curiosidade sentimental

Do seu aroma, da sua pele.

Sonhas um ventre de alvura tal,

Que escuro o linho fique ao pé dele.

 

Dentre os perfumes sutis que vêm

Das suas charpas, dos seus vestidos,

Isolar tentas o odor que tem

A trama rara dos seus tecidos.

 

Encanto a encanto, toda a prevês.

Afagos longos, carinhos sábios,

Carícias lentas, de uma maciez

Que se diriam feitas por lábios...

 

Tu te perguntas, curioso, quais

Serão seus gestos, balbuciamento,

Quando descerdes na espirais

Deslumbradoras do esquecimento...

 

E acima disso, buscas saber

Os seus instintos, suas tendências...

Espiar-lhe na alma por conhecer

O que há de sincero nas aparências.

 

E os teus desejos ferventes vão

Batendo as asas na irrealidade...

O que tu chamas tua paixão,

É tão-somente curiosidade.