sábado, 8 de janeiro de 2022

Dora Kramer: Nós e a brisa

Revista Veja

Vaticínios sobre a inviabilidade da chamada terceira via são feitos sem que se dê a esse caminho ao menos o benefício da dúvida

Três ideias rondam o ambiente político neste início do ano eleitoral de 2022: Luiz Inácio da Silva voltará à Presidência, Jair Bolsonaro lançará mão de ilegalidades para resistir à derrota e nenhuma alternativa a tal cenário é possível. Fala-se disso como se o inesperado não pudesse nos fazer uma surpresa, conforme descrito por Johnny Alf em Eu e a Brisa, nos idos de 1967.

Pois no imprevisível junto às artes do acidental é que residem a graça e a essência de uma eleição sob as regras da democracia, onde o que vale é a vontade de milhões de pessoas envolvidas num processo que só acaba quando termina.

Portanto, aos arautos das convicções inamovíveis conviria flexibilizar as respectivas mentes de modo a não se tornarem reféns de profecias que se autorrealizam.

De algum modo já vivemos isso desde quando forças políticas começaram a se mobilizar em torno de outra hipótese que não a repetição de velhos erros. De de lá para cá, o que se vê são vaticínios sobre a inviabilidade da chamada terceira via.

Isso sem que se dê a esse caminho ao menos o benefício da dúvida. Uma chance real, não meramente retórica, expressa em frases do tipo “…caso subam nas pesquisas” acompanhadas de toda sorte de desqualificações porque ninguém ainda foi capaz de ameaçar a dianteira de Lula e Bolsonaro. A oito meses da eleição.

Marco Antonio Villa: Por uma eleição com ideias

Revista IstoÉ

As bandeiras políticas de Bolsonaro são frágeis. Servem apenas para mobilizar sua militância e, especialmente, os robôs nas redes sociais

Como será 2022? Teremos o processo eleitoral mais violento desde 1989. Isso é mais que uma previsão, é uma certeza. O cenário dos três anos de governo Bolsonaro aponta para uma eleição marcada não pela disputa de ideias, mas pela brutalidade, pela selvageria, pela bestialidade. Por um lado, porque Bolsonaro fomentou o ataque sistemático às instituições, aos valores consagrados na Constituição de 1988. Foram meses e meses de ameaças ao Estado democrático de Direito, culminando no trágico 7 de setembro de 2021. Por outro, porque o governo não tem nada a mostrar, nada realizou, não tem o que se chama popularmente de “vitrine”. Desta forma, só pode apostar na violência, na desqualificação pelo ódio dos adversários. Teremos, certamente, confrontos de rua, que vão servir, para o extremismo bolsonarista, como instrumentos de mobilização de suas bases e para justificar o discurso de hostilidade à democracia.

Bolívar Lamounier: Nossa eterna e vil tristeza

Revista IstoÉ

A eleição do sr. Jair Bolsonaro foi o reflexo perfeito de um País carente de elites capazes de balizar o processo político

A crise que ora assola o Brasil deve-se a problemas acumulados ao longo de décadas e a outros de ocorrência recente, entre os quais cumpre destacar os efeitos da recessão econômica iniciada no governo Dilma Rousseff, a pandemia Covid-19, o péssimo desempenho das instituições políticas, nos três Poderes e, não menos importante, a ascensão à presidência do sr. Jair Bolsonaro. Essa é, digamos assim, a parte visível do iceberg político, acima das elites e dos eleitores em geral. Hoje quero discorrer brevemente sobre as elites, fator raramente considerado. Entendo que sem elites robustas e bem preparadas, dificilmente as instituições políticas formais terão um bom desempenho.

Ricardo Rangel: A prioridade para 2022

Insistir em candidatura sem chances ajuda a matar a terceira via

Há muitas prioridades para 2022. A vacinação. O combate à fome, à miséria e à desigualdade, que recrudesceram por causa da recessão e da pandemia. Recuperar o tempo perdido na educação. Retomar o crescimento econômico e as reformas do Estado e reduzir o desemprego.

Combater o desmatamento (e estipular que a meta é zero). Recuperar os investimentos em ciência e tecnologia. Discutir como reduzir o impacto da revolução tecnológica nos empregos. Reconstruir a democracia e suas instituições.

E, claro, retirar Bolsonaro do poder.

Com exceção do último item (que ele quer impedir), nada disso é prioridade para Jair Bolsonaro. E é por isso mesmo que a maior prioridade do Brasil para 2022 é remover Jair Bolsonaro do poder.

Hélio Schwartsman: Sim, sou um tarado da vacina

Folha de S. Paulo

Fato raro, reconheci-me numa fala de Bolsonaro

Fato raro, reconheci-me numa fala de Bolsonaro. Sim, sou um dos tarados da vacina. E tenho motivos para sê-lo. Só três conquistas do engenho humano pouparam, cada uma, no acumulado dos anos, mais de 1 bilhão de vidas. São elas fertilizantes artificiais, esgotamento sanitário e vacinas. Outros "milagres" da ciência como antibióticos e a pasteurização salvaram "apenas" centenas de milhões. A anestesia, sem a qual Bolsonaro não teria sobrevivido a tantas intervenções cirúrgicas, fica na casa dos milhões. Se tivéssemos de escolher uma única tecnologia biomédica para conservar para o futuro, a imunização seria seriíssima candidata.

Ignorância não é crime —ninguém sabe tudo o que há de relevante para saber sobre um assunto—, mas militar em favor dela é. Especialmente o presidente da República precisa informar-se antes de propagar asneiras pelas ondas hertzianas. Não é verdade, por exemplo, que crianças não morrem de Covid-19. Pelas contas do acapachado Ministério da Saúde, até o dia 6 de dezembro, o Brasil registrava 301 óbitos pelo Sars-CoV-2 na faixa dos 5 aos 11 anos.

Cristina Serra: Aula de humanidade com os zoés

Folha de S. Paulo

Imagem que vem da floresta amazônica é um raio de luz para o Brasil atual

Vem da floresta amazônica uma imagem que é um raio de luz neste momento em que o presidente volta a atacar as vacinas e, de forma especialmente cruel e criminosa, tenta sabotar a imunização de crianças.

Uma fotografia que circula intensamente nas redes sociais mostra o jovem indígena Tawy Zoé levando o pai, Wahu Zoé, nas costas, para tomar a vacina contra a Covid. O idoso não enxerga bem e tem dificuldades de locomoção. Como os nomes indicam, eles são da etnia zoé, que vive nas matas do noroeste do Pará, perto da fronteira com o Suriname.

O autor da foto é o neurocirurgião Erik Jennings, que há quase 20 anos trabalha na assistência de saúde aos zoés. A foto foi feita quase um ano atrás, quando começou a vacinação. Jennings conta que decidiu divulgá-la agora, em seu perfil no Instagram, para incentivar a vacinação num momento em que o mundo enfrenta mais uma onda de contágio.

Demétrio Magnoli: Gina e o resto

Folha de S. Paulo

Chefe de diversidade de Biden passeia por São Paulo e questiona maioria branca

"Ok, cadê todo o resto?", perguntou-se Gina Abercrombie-Winstanley, chefe de Diversidade e Inclusão no Departamento de Estado do governo Biden, durante sua visita ao Brasil. Gina viu que "a maioria das pessoas era branca, com certeza mais claras do que eu" e, "sabendo que a população é próxima do 50%-50%", emergiu a dúvida sobre o paradeiro do "resto".

A diplomata passeou por São Paulo, não por Salvador, o que explica parte do mistério. Mas, para além da geografia, sua perplexidade decorre de um erro de informação.

A população brasileira não se descreve como "50%-50%". Segundo a última Pnad, 43% declaram-se brancos, 47% pardos e 9% pretos. A noção de uma divisão quase meio a meio entre "brancos" e "negros" decorre, exclusivamente, de uma decisão político-administrativa de unificar os autodeclarados pardos e pretos na categoria "negros".

João Gabriel de Lima: Há algo de bom no reino da Dinamarca

O Estado de S. Paulo.

Confiança traz investimento e bem-estar. E, como, mostra a Dinamarca, traz felicidade

Os pré-candidatos à Presidência da República João Doria (PSDB) e Sérgio Moro (Podemos) criticaram ontem o “revogaço petista”, que, como mostrou o Estadão, planeja rever a reforma trabalhista, as privatizações e o teto de gastos caso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva volte ao Palácio do Planalto.

“O emprego não voltará ressuscitando leis ultrapassadas, mas, sim, com crescimento econômico”, disse Doria, em nota. O “revogaço petista”, afirmou o governador de São Paulo, “vai aumentar o desemprego e manter a inflação elevada”. “E com desemprego e inflação altos, quem mais sofre são os mais pobres.”

Moro, por sua vez, comparou sua proposta de reforma com as dos líderes nas pesquisas de intenção de voto: Lula e Jair Bolsonaro (PL). “Há três propostas postas na mesa da pré-campanha presidencial”, escreveu o ex-juiz, no Twitter. “Uma que fará as reformas necessárias ao País (a nossa); outra de um governo que desistiu completamente de implementar reformas (governo atual); e a terceira que quer revogar reformas já consolidadas (PT)”, disse o ex-ministro, que está em viagem pelo Nordeste.

Adriana Fernandes: Governo faz lambança jurídica

O Estado de S. Paulo.

Se quisesse, o presidente poderia ter escolhido acabar com algum dos incentivos deletérios

O governo vetou o Refis das micro e pequenas empresas alegando que a lei aprovada pelo Congresso de parcelamento dos débitos tributários com descontos de juros e multas precisava de compensação por conter renúncia de receitas.

Depois, integrantes do governo e lideranças parlamentares justificaram que a razão era outra: a lei eleitoral que impediria a concessão de benefícios em ano de eleições.

Por essa interpretação, a lei deveria ter sido sancionada antes da virada do ano. Artigo da lei eleitoral diz que a distribuição gratuita de bens, valores e benefícios é proibida no ano de realização do pleito, exceto nos casos de calamidade pública e de estado de emergência.

Ascânio Seleme: PT sendo PT

O Globo

Estranho seria se Lula apresentasse agora uma pauta liberal, sobretudo depois do fracassado governo de direita e falso liberal de Bolsonaro. Por isso, não tem por que se comover com os sinais do PT e do próprio Lula em torno de uma agenda de centro-esquerda para um provável novo governo petista. Pode não dar certo, tem tudo para dar errado, mas este é o seu caminho natural. Não dá para pedir algo diferente ao candidato que lidera as pesquisas dez meses antes da eleição presidencial. Só se quiséssemos engolir uma farsa eleitoreira, e o eleitor está farto de farsas.

Vamos ver os pontos que suscitaram o debate. O primeiro e mais óbvio é o da reforma trabalhista. Lula parabenizou o governo espanhol por reverter alguns pontos da reforma trabalhista de 2012, insinuando que poderá ir pelo mesmo caminho se for eleito. A reforma promovida pelo governo Temer mexeu em 117 artigos da CLT com a promessa de aumentar empregos no país. Obviamente não houve melhora na oferta de vagas, mais em razão da economia precária do que reflexo das mudanças. Se a reforma não é popular, mudá-la não será mera trivialidade. Lula vai precisar do Congresso para dar a guinada. E se der, ninguém garante que a vida do trabalhador vai melhorar. Pode se dar o contrário, já que a tendência natural é o enxugamento de vagas pelos empregadores.

Claudio Ferraz: O que pensam os economistas dos presidenciáveis?

O Globo

Quase todos, mesmo os que representam candidatos de centro-direita, falam da necessidade de gerar crescimento econômico com redução da desigualdade

Nesta semana, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma série de artigos de economistas que assessoram alguns potenciais candidatos à Presidência em 2022. Apesar de os artigos não serem planos de governo completos, eles nos permitem entender as visões e prioridades de alguns dos economistas que assessoram os candidatos.

Confesso que acho um pouco prematuro um exercício desses. Tenho certeza de que muitas coisas escritas nem foram conversadas com os candidatos presidenciais. Mas, mesmo assim, há coisas interessantes neste conjunto de artigos.

A primeira delas é uma preocupação generalizada com a redução da desigualdade. Quase todos os economistas, mesmo os que representam candidatos de centro-direita, falam da necessidade de gerar crescimento econômico com redução da desigualdade de renda.

Mas as propostas e prioridades que aparecem são bastante diferentes. Enquanto Henrique Meirelles e Nelson Marconi deixam claro que a redução da desigualdade social depende do crescimento sustentado de empregos de melhor qualidade, Affonso Pastore fala em “dar a todos o mesmo ponto de partida através de educação e saúde.”

Mas, em um mundo onde os serviços e a tecnologia são cada vez mais importantes, simplesmente focar na igualdade de oportunidades não será suficiente para a criação de empregos de qualidade.

Pablo Ortellado: Tumulto nas eleições

O Globo

Nesta semana, a invasão do Congresso americano completou um ano. Em 6 de janeiro de 2021, uma multidão que participava de comício convocado por Donald Trump se dirigiu ao Capitólio para tumultuar a sessão que sacramentaria o resultado das eleições vencidas por Joe Biden.

O que aconteceu naquele dia? Foi um protesto pacífico com episódios isolados de violência? Ou um tumulto orquestrado para atrapalhar a sessão? Foi uma tentativa fracassada de golpe de Estado? Qual a responsabilidade do ex-presidente Donald Trump e da cúpula do Partido Republicano? O que aconteceu em 2021 foi apenas um ensaio para 2024? Há bons motivos para acompanharmos o debate que tenta responder a essas questões, já que Estados Unidos e Brasil têm muitas semelhanças.

Quando acompanhamos a ascensão e consolidação de Donald Trump no Partido Republicano, chama a atenção como o então empresário e apresentador de TV passou de um candidato marginal e excêntrico — ironizado e duramente combatido pelas forças dominantes do republicanismo nas primárias de 2016 — a líder incontestável da legenda. Hoje praticamente não há espaço no Partido Republicano para quem diverge do ex-presidente. A transformação levou metade da classe política do país a aderir a teses conspiratórias sobre as eleições, além de a outras posições extremas em temas como pandemia e imigração.

Por aqui, a inabilidade de Jair Bolsonaro, combinada com seu discurso antipartidos, retardou a captura da classe política por seu projeto populista e autoritário. Mas a adesão entusiasmada de políticos do Centrão, sua entrada no PL e a perspectiva de formação de uma poderosa federação partidária com PL, PP e Republicanos mostram o risco de uma bolsonarização mais acentuada da classe política. As perspectivas ficam ainda mais sombrias se imaginarmos que, a esse grupo de partidos, poderia se juntar o União Brasil, fruto da aliança entre PSL e DEM — cenário hoje improvável, mas que poderia se dar para a formação de uma base parlamentar, na eventualidade de Bolsonaro assegurar um segundo mandato.

Carlos Alberto Sardenberg: Bolsonaro não é Trump

O Globo

O ex-presidente Donald Trump concedia uma entrevista, com plateia favorável, quando lhe perguntaram se havia tomado a dose de reforço. Trump respondeu “sim” — e com entusiasmo.

Foi surpreendido com vaias. Não se intimidou. Apontou o dedo para o grupo que vaiava e comentou que se tratava de uma minoria. Era mesmo.

Como conciliar isso com a atitude francamente negacionista dos republicanos e do próprio Trump? São contra qualquer medida que torne a vacina obrigatória — como ocorre quando uma empresa só emprega imunizados ou quando um estabelecimento só permite a entrada de quem apresentar o certificado.

Para os republicanos, essas regras restringem a liberdade individual, configuram uma quase ditadura.

Nesse caso, vacinar-se não é contraditório?

Parece. E, de fato, 60% dos americanos não vacinados se declaravam republicanos — isso em outubro, segundo pesquisa citada pelo economista Paul Krugman em coluna no New York Times.

A explosão da Ômicron vem sendo chamada de “histeria irracional” por lideranças republicanas do primeiro time.

E, entretanto, Trump se vacinou e contou isso para todo mundo.

Qual a lógica?

Trata-se de política, não de ciência, sugere o mesmo Krugman. A hipótese é a seguinte: mesmo sabendo que a pandemia é grave e que a vacina funciona, os chefões republicanos fazem campanhas negacionistas para, primeiro, fidelizar sua base de ignorantes e, segundo, atrapalhar o governo do democrata Biden, criar caso, gerar medo e insegurança, sentimentos que sempre se voltam contra o presidente de plantão.

Marcus Pestana*: Governabilidade e eleições

Daqui a 9 meses teremos eleições gerais no Brasil. Tudo indica que o problema crônico e progressivo da democracia contemporânea brasileira não será sanado: o descolamento das eleições presidenciais em relação às eleições parlamentares e suas consequências na sustentação política do governo.

Hoje no Brasil existem 33 partidos registrados no TSE, sendo que 24 deles têm presença no Congresso Nacional. No ciclo democrático vigente entre 1945 e 1964, UDN, PSD e PTB eram os eixos organizadores da vida política brasileira, com alto grau de consistência política e fidelização de suas bases.

Nas primeiras eleições presidenciais pós golpe de 64, em 1989, o sinal amarelo acendeu pela primeira vez, quando um jovem governador de Alagoas, com discurso populista contra os “marajás” e o “Estado elefante”, usando pioneiramente avançadas ferramentas de marketing, por um partido inexistente, o PRN, venceu nomes como Ulysses Guimarães, Lula, Brizola, Mário Covas, Aureliano Chaves e seus PMDB, PT, PDT, PSDB, PFL. Daí para a frente, o quadro mergulhou numa deterioração crescente. Veio a equivocada decisão do STF declarando a cláusula de barreira inconstitucional, a criação dos fundos partidário e eleitoral, a consolidação de uma legislação partidária e eleitoral flácida e permissiva, a pulverização disfuncional e sua consequência principal: a migração do presidencialismo de coalizão para o presidencialismo de cooptação, que resultou no mensalão e na Lava Jato.

Eduardo Affonso: Sonhos não envelhecem

O Globo

Emoldurado por um teatro desoladoramente vazio e sob as palmas apenas da orquestra, um homem caminha, amparado, até sua cadeira, na boca de cena. Ali, ouve em silêncio os primeiros acordes de canções compostas há meio século — ou teria sido há meia hora? E então solta a voz — aquela que Elis Regina disse ser a de Deus, se Deus tivesse uma voz.

A voz de Deus não tem mais o timbre, a potência, a extensão de outros tempos. Mas é, ainda, solene, terna, envolvente. Divina.

Quem está ali é Milton Nascimento, cercado de novos arranjos, jovens artistas e músicos embevecidos com o compositor que não precisou escolher entre ser moderno ou eterno. Sua arte esteve sempre impregnada de uma ancestralidade e uma modernidade atemporais. Milton é aquela esquina onde se cruzaram os Beatles e a música sacra, San Vicente e o Beco do Mota, o jazz e o que se dançava nos bailes da vida. Ao cantar Três Pontas, cantou o mundo.

Diferentemente dos outros grandes da sua geração, não foi preso, não teve de se exilar. Sua prisão foi a censura; seu exílio, o das palavras. Do encontro com Clementina de Jesus, salvou-se um refrão; restou uma invocação do que seria um dueto com Dorival Caymmi. Nem por isso Milton deixou de fazer do “Milagre dos peixes” um dos seus discos mais eloquentes: a voz era um instrumento que não se podia censurar.

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

A pobreza cresce com a alta de preços

O Estado de S. Paulo.

Combinados, desemprego alto e inflação acelerada corroem os salários e empobrecem os trabalhadores do setor privado

Os brasileiros entram mais pobres em 2022, com a renda familiar corroída pelo desemprego e pela inflação e sem perspectiva de melhora sensível nos próximos meses. Os preços ao consumidor subiram 10,42% nos 12 meses até dezembro, segundo a prévia da inflação oficial, superando amplamente a meta (3,75%) e o limite superior de tolerância (5,25%). A correção salarial, negociada com muita dificuldade num ambiente de baixa atividade econômica, ficou longe de compensar as perdas acumuladas. Até novembro, os trabalhadores com carteira assinada conseguiram reajuste médio de 6,5%, no setor privado, embora os preços pagos por bens e serviços consumidos tenham subido 8,4%, no período de um ano, de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), usado como referência para negociações salariais.

Só 19% das negociações proporcionaram ajustes de salários superiores à inflação acumulada até novembro, indica o “Salariômetro” coordenado pelo professor Hélio Zylberstajn, da Faculdade de Economia e Administração da

USP. “Quando existe desocupação muito grande, os sindicatos não têm poder de barganha nas negociações. É o pior cenário para os trabalhadores”, disse o economista, citado em reportagem do Estadão. O levantamento apontou reajustes abaixo da inflação em 51% dos acordos e empate em 30% do total.

Poesia | João Cabral de Melo Neto: Luz em Joaquim Cardozo

Escrever de Joaquim Cardozo
só pode quem conhece
aquela luz Velásquez
de onde nasceu e de que escreve.

A luz que das várzeas da Várzea
onde nasceu, redonda,
vem até o ex-Cais de Santa Rita
que viveu: luz redoma,

luz espaço, luz que se veste,
leve como uma rede,
e clara, até quando preside
o cemitério e a sede.

Publicado no livro Museu de tudo (1975).