terça-feira, 8 de março de 2022

Merval Pereira: Botequim digital

O Globo

‘As redes sociais dão o direito à palavra a uma legião de imbecis que antes falavam apenas num bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade.’ Essa constatação do escritor e linguista Umberto Eco nunca foi tão exata quanto no caso do deputado estadual (ainda?) Arthur do Val, que se elegeu com o pseudônimo de Mamãe Falei, nome de um programa seu no YouTube.

Numa pseudo “campanha humanitária”, ele viajou para a Ucrânia e, de lá, mandou relatos para seus amigos. Relatos da guerra? Das tragédias que viu? Não, sobre as mulheres ucranianas, nas filas de refugiados de guerra. “Só tem deusa”, comenta com uma rede de amigos, que não se encontram “nem nas melhores baladas” de São Paulo. Melhor ainda, parece dizer ele: “Elas são fáceis porque são pobres”.

Um sujeito que é capaz de fazer tais comentários em meio a uma guerra pode ser considerado humano? O machismo de Mamãe Falei já havia sido constatado numa escola em greve no Paraná, em que ele foi acusado de ter assediado sexualmente algumas estudantes que faziam um cordão de isolamento para impedir sua entrada. Essa masculinidade tóxica, que tem no presidente Bolsonaro um exemplar característico, é usual nas relações de poder no Brasil, o que, se não reagirmos com vigor, nos tornará uma terra de trogloditas onde um comportamento regressivo, animalesco, tem permissão de existir.

Carlos Andreazza: Contra o jogo

O Globo

Está no Senado o projeto que legaliza o jogo no Brasil — inclusive o do bicho, hoje inconfundível com a exploração de máquinas caça-níqueis. Um disparate, obra do tipo de ganância que desconhece a realidade do chão, o campo minado, em que se quer dar as cartas.

Pergunto: o businessman a fim de entrar na parada estará disposto a concorrer com os mafiosos?

Nem precisa rolar os dados. Costuma dar em sangue. Ou em sociedade. Conhecemos a história. Outro dia mesmo, o Supremo trancou processo em que um bicheiro respondia por homicídio. A ideia, então, é formalizar o jogo ora explorado por criminosos perfeitamente livres para explorá-lo criminosamente?

Míriam Leitão: O grande risco das soluções erradas

O Globo

A crise econômica internacional se agravou muito ontem e está havendo um choque de petróleo. O economista Mohamed A. El-Erian prevê recessão de 30% para a Rússia. A economista Monica de Bolle diz que o rublo está perto do colapso e prevê consequências espalhadas na economia do mundo. O risco é enfrentar uma crise deste tamanho com o governo Bolsonaro, que nunca tem visão estratégica e improvisa as soluções. Ainda mais agora com as eleições.

A agricultura brasileira é o setor mais dinâmico da nossa economia e enfrentará, com a guerra de Putin, a falta de fertilizantes. Aqui dentro há mais soluções do que o governo imagina. A mineração em terra indígena, que Bolsonaro quer, não é absolutamente a solução para problema. É uma proposta oportunista e extremamente perigosa.

Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro mira reeleição com “economia de guerra

Correio Braziliense

Além de tabelar combustíveis, também quer aproveitar a tragédia da Ucrânia para passar a boiada no Congresso. Voltou a defender a aprovação do projeto que libera a mineração em terras indígenas

O presidente Jair Bolsonaro considera a guerra da Ucrânia uma oportunidade, e não uma ameaça. Todas as suas declarações sinalizam nessa direção. Embora o Brasil tenha se posicionado contra a agressão de Vladimir Putin, que pôs o mundo diante de uma provável recessão e à beira de uma terceira guerra mundial, Bolsonaro flerta com o perigo, mantendo as relações com a Federação Russa no mesmo patamar em que estavam quando visitou Moscou, no mês passado.

Não é que não esteja levando em conta o impacto das sanções econômicas à Rússia aqui no Brasil, muito pelo contrário. É que esse impacto virou o pretexto de que precisava para a adoção de medidas econômicas de caráter populista, agora com a narrativa de que é preciso mitigar os efeitos da crise internacional com uma “economia de guerra”. Além de se beneficiar da polarização com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que esvazia a chamada terceira via — cujos candidatos não decolam nem desistem, muito menos se unificam —, Bolsonaro aposta na retomada gradativa dos empregos; no efeito dos programas sociais de transferência de renda, como o Auxílio Brasil; e no fim da pandemia de covid-19, graças à vacinação que tanto combateu.

Andrea Jubé: A tática antigolpe de Lula e Bolsonaro

Valor Econômico

Temor é de que para atrair o centro, Lula espante a periferia

Antípodas políticos, o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fazem cálculos políticos quase convergentes para escolher o companheiro de chapa.

O primeiro quer, de novo, um general da reserva para se blindar de um golpe do Congresso. O petista quer um ex-adversário, possível símbolo de uma ampla aliança política, para se blindar de um golpe militar.

Dois fatores traduziriam a escolha de Geraldo Alckmin, um ex-algoz do PT, para compor a chapa presidencial com Lula. O capital político do ex-tucano para ajudar o PT a tentar eleger pela primeira vez o governador de São Paulo, façanha nunca antes alcançada pela legenda.

Pedro Cafardo: O provável triste fim do grupo do Brics

Valor Econômico

Ação de Putin vai provocar inflação elevada em todo o mundo e levar Rússia ao isolamento e empobrecimento ainda maior

anos uma guerra mundial sanitária, provocada pela covid-19, depara-se agora com uma guerra convencional, detonada pela vontade do autocrata russo Vladimir Putin.

A invasão da Ucrânia pela Rússia era uma das ameaças que pairavam sobre o planeta, capaz de impedir a recuperação global iniciada com a redução da pandemia. Analistas não acreditavam que Putin fosse tão insano a ponto de autorizar uma invasão no momento em que o mundo começa a superar a pandemia. Ele provou que é.

A despeito de suas reservas de US$ 630 bilhões, já parcialmente bloqueadas, e de seu poderio nuclear, herança da ex-União Soviética, a Rússia tem um desempenho econômico pífio nas duas últimas décadas. Jim O’Neill, em entrevista ao Valor de quarta-feira (2/3), disse que a Rússia está querendo ser “mais do que seu peso econômico lhe permite”, 2% do PIB global.

Luiz Gonzaga Belluzzo / Gabriel Galípolo*: As consequências econômicas da guerra

Valor Econômico

O comércio entre Rússia e China se afasta mais do uso do dólar em 2018, após o início da guerra comercial EUA-China

Entre as sanções anunciadas no dia 26 de fevereiro para isolar a Rússia do sistema financeiro internacional, concentraram as atenções a remoção de bancos russos selecionados do SWIFT e as medidas restritivas para impedir o BC russo de usar suas reservas internacionais.

Não é a primeira vez que o SWIFT é utilizado como instrumento de poder geopolítico. Em 2006, o sistema foi alvo de divergências envolvendo EUA e União Europeia, após a descoberta do chamado “acordo swift”. Por meio de um software, os EUA acessam a base de dados (informações confidenciais) sobre transferências bancárias, sem o conhecimento de bancos e seus clientes, em um esforço secreto do “Terrorist Finance Tracking Program”, criado pela política de “Guerra ao Terror” da administração Bush.

Ainda em 2006, o governo belga (o SWIFT é sediado em Bruxelas) declarou que o acordo violava as leis do país e da UE. Em 11 de fevereiro de 2010 o “acordo swift” foi rejeitado pelo Parlamento Europeu, com a perda de seus efeitos jurídicos na Europa para preservar os direitos dos cidadãos europeus.

Rubens Barbosa*: Vulnerabilidades do Brasil

O Estado de S. Paulo

País não pode ignorar problemas que poderão afetar seus interesses concretos, prejudicando seu desenvolvimento e sua segurança nacional

A pandemia e, agora, o conflito entre a Rússia e a Ucrânia expuseram de forma dramática as vulnerabilidades de todos os países em áreas estratégicas. A dependência da China em muitos setores da cadeia produtiva fez com que os países desenvolvidos passassem a enfrentar essa questão com novas políticas industriais para reduzir os riscos dessa dependência. No caso do Brasil, a magnitude dos problemas – em especial na economia (baixo crescimento, inflação, taxa de juros), na sociedade (desigualdade, aumento da pobreza, desemprego), na destruição da Amazônia e no isolamento e na perda de espaço do mundo – deixa para um longínquo segundo plano a questão das vulnerabilidades que perpassa diversos setores estratégicos para a segurança alimentar e a segurança nacional.

Pedro Fernando Nery: Oligarcas

O Estado de S. Paulo.

A elite brasileira parece concentrar hoje mais dinheiro do que a elite russa

As sanções anunciadas nos últimos dias têm chamado atenção para os oligarcas, o grupo de russos muito ricos que ajudaria a sustentar Putin no poder. O termo – oligarcas – é usado para a elite da Rússia, mas não tipicamente para elites de outros países. O que permite usar a denominação lá e não, por exemplo, aqui? Que semelhanças e diferenças existem entre as nossas elites?

Nos dicionários, a definição de oligarca passa pela elevada influência política que o sujeito detém, mas também se permite o uso para definir alguém muito rico (um sinônimo de magnata, ricaço). A Rússia é, de fato, um país muito desigual, com alta concentração de renda naqueles que estão no topo dela – mas é difícil encontrar medida que mostre que essa concentração é maior do que no Brasil.

Joel Pinheiro da Fonseca: O MBL tem futuro?

Folha de S. Paulo

A decisão do movimento de amadurecer nunca teve a coragem de ir até o fim

Ir do Brasil para a Ucrânia em pleno conflito armado para ajudar na resistência contra os invasores russos? Era obviamente um golpe de marketing, um exemplo extremo de vale-tudo para aparecer, mas era também o tipo de coisa para capturar a atenção dos eleitores.

Não se vence eleição com debate técnico; é preciso fazer barulho. Aprove-se ou não seus métodos, o MBL é craque na comunicação das redes sociais.

Não contavam, contudo, com o desastre dos áudios de Arthur do Val sobre as mulheres ucranianas. Mistura de machismo com o detalhe sórdido extra da exploração da pobreza pelo turismo sexual.

Comparar uma fila de refugiadas com uma fila de mulheres na balada não é o que se espera de um defensor da família. E isso veio poucas semanas depois do episódio em que Kim Kataguiri defendeu a liberdade à defesa do nazismo.

Hélio Schwartsman: Dá para antecipar o lugar que a invasão da Ucrânia terá na história?

Folha de S. Paulo

A predição é um sonho que não está à disposição de historiadores

invasão da Ucrânia é o prelúdio da 3ª Guerra Mundial, o início de uma nova e mais tensa ordem global, ou um evento histórico dramático, mas sem repercussões duradouras? A resposta é bem anticlimática: não dá para saber.

Como o futuro é contingente, os três cenários —e todas as variações concebíveis— ainda podem se materializar. O que sabemos é que as situações mais extremas, pelo simples fato de serem em menor número do que as intermediárias, são menos prováveis. Também sabemos que, por razões evolutivas óbvias, tendemos a superestimar a gravidade das crises presentes. Isso não significa que nossos piores pesadelos nunca se concretizem, mas apenas que eles já assombram nossas mentes mesmo que nunca se tornem reais.

Alvaro Costa e Silva: O vale-tudo da guerra cultural

Folha de S. Paulo

De um lado cancela-se Dostoiévski e do outro bloqueia-se a internet

Os acontecimentos históricos costumam imitar uns aos outros até nos detalhes. O comboio russo que avança em direção a Kiev não pode confiar nas placas de orientação: elas foram trocadas ou invertidas para confundir o inimigo. Como conta Milan Kundera em seus romances, a mesma coisa aconteceu em 1968 durante a invasão da antiga Tchecoslováquia pelos tanques soviéticos.

Além da opressão, a burrice política também retorna em ciclos. Uma apresentação de "Romeu e Julieta" pelo Balé Bolshoi, transmitida para a televisão de 112 países em 1976, foi proibida no Brasil. A explicação revelou a lógica dos milicos no poder: o Bolshoi era russo, a Rússia comandava a União Soviética, portanto o balé era comunista.

No "Febeapá", Stanislaw Ponte Preta registra que em 1967 um filme clássico de Serguei Eisenstein, "Ivan, o Terrível" —a história do czar que viveu no século 16—, não pôde ser exibido em Belém do Pará. A censura era para impedir que o "credo vermelho" se difundisse entre nós. É bom ficar só nesses dois exemplos, para não dar ideia ao secretário de Cultura, Mario Frias.

Cristina Serra: Todo sangue é vermelho 2

Folha de S. Paulo

Ana Cristina Rosa fez a síntese definitiva: 'nem todos os olhos são azuis, mas todo sangue é vermelho'

Desde a Antiguidade, uma guerra pode ser contada de muitos pontos de vista. A nova ordem mundial dela resultante, os lances do xadrez geopolítico, as vitórias militares, os lucros da indústria armamentista, tudo isso conta uma parte da guerra.

Há outras maneiras, porém, e o jornalista norte-americano John Hersey mostra isso muito bem no seu clássico livro-reportagem "Hiroshima". Hersey escolheu meia dúzia de sobreviventes do ataque nuclear dos Estados Unidos ao Japão, em 1945, para escrever sobre a guerra na sua dimensão mais singular e humana.

As histórias condensam a dor, o horror e o desespero provocado por um dos maiores crimes de guerra, jamais julgado. Estima-se mais de 200 mil mortos em Hiroshima e Nagasaki, desintegrados, em minutos, nas chamas do cogumelo atômico.

Cármen Lúcia*: Claros, sombras e mulheres

Folha de S. Paulo

Muitas são silenciadas e invisibilizadas na importância política, cívica e social

"(...) e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra". Assim dona Hipólita Jacinta Teixeira de Melo dirigiu-se ao vigário da Comarca de Rio das Mortes dando notícia da prisão de Tiradentes.

Eram os idos de 1789. Maio. Dona Hipólita, informada, cuidou de avisar os participantes da "Inconfidência Mineira". Atuara no movimento, sua casa em Ponta do Morro sendo local de encontros dos depois apelidados "inconfidentes". Importante marco da história brasileira, são conhecidos os nomes dos seus participantes, sua trajetória, sua ação. As parcas referências às mulheres que participaram daquela conjuração registram, quase sempre, apenas as mencionadas como musas, cantadas em versos conhecidos. As inconfidentes mineiras ou outras figuras de ação no período, de dona Hipólita a Inácia Gertrudes de Almeida, permaneceram ausentes da história brasileira.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Guerra na Europa trará prejuízo à recuperação do PIB

O Globo

A economia brasileira cresceu 4,6% em 2021 e recuperou as perdas do ano anterior, o primeiro da pandemia. Sem dúvida, foi um alívio. Economias grandes, como a mexicana, ainda não voltaram ao patamar pré-pandêmico. Mas, numa comparação mais ampla, fica evidente que o resultado está longe de excepcional. O crescimento do PIB brasileiro em 2021 ficou abaixo da média global e dos resultados apurados em Estados Unidos, Índia e China (que nem recessão sofreu em 2020). A festa do governo federal com o anúncio foi desproporcional. O que houve foi recuperação, um passo à frente depois de dois ou três para trás. O PIB estava no final do ano passado num nível 0,5% acima do registrado na mesma época do ano em 2019. Mal saímos do lugar.

Poesia | Vinícius de Moraes: Poema dos olhos da amada

Ó minha amada
Que olhos os teus

São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe nos breus…

Ó minha amada
Que olhos os teus

Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus…

Ó minha amada
Que olhos os teus

Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas eras
Nos olhos teus.

Ah, minha amada
De olhos ateus

Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus.