sábado, 19 de março de 2022

Dora Kramer: Sem fantasia

Revista Veja

Federação foi a moda inventada pelo Congresso, mais uma, para fugir da reforma política

Na falta de vontade e de coragem para fazer uma reforma no sistema eleitoral/partidário que contribua de fato para a evolução dos meios e modos da política no Brasil, suas altezas congressistas inventam modas inúteis, como essa última das federações partidárias.

De modo geral, as invenções levam a lugar nenhum e costumam ser revogadas por incompatibilidade com o mundo real ainda referido no atraso. Cito dois casos. Um deles é a chamada regra da verticalização, pela qual os partidos eram obrigados a fazer alianças iguais nos âmbitos estaduais e nacional.

Essa norma foi instituída pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2002 a partir de uma consulta do PDT sobre o “caráter nacional” das legendas consignado com clareza na Constituição. Pois bem. Valeu para a eleição de 2006 e foi derrubada naquele mesmo ano por emenda constitucional aprovada pelo Congresso que estabeleceu o fim da verticalização a partir de 2010.

A ideia era dar uma organizada na barafunda de alianças ideologicamente incongruentes país afora. Na prática, reduziu o número de coligações, mas não influiu no resultado nem organizou coisa alguma. Três presidentes foram reeleitos independentemente da regra.

Almir Pazzianotto Pinto*: Partidos, polvos e camaleões

O Estado de S. Paulo.

As legendas fundadas após 1985 são volúveis e os dirigentes, em expressiva maioria, insaciáveis na busca de dinheiro e poder

Acredito que todos já ouviram falar do camaleão. Trata-se de pequeno lagarto da família dos répteis, encontrado na Europa, na Ásia, na África, no México, no Brasil. Está presente nos diversos países dos cinco continentes.

A característica desta espécie do reino animal consiste na capacidade de mudar de cor para se adaptar a diferentes ambientes. Altera do amarelo ao verde, ao vermelho, segundo a necessidade ou conveniência. Com língua longa, pegajosa e flexível, é capaz de capturar vítimas a considerável distância.

Outro animal dotado de recursos de camuflagem é o polvo, sobre o qual escreveu o Padre Antônio Vieira: “O polvo, com o seu capelo, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, (...) o dito polvo é o maior traidor do mar” (Sermão de Santo António, 1654, Sermões, vol. VII, Ed. Lello & Irmão, Porto, 1959, página 275).

Marcus Pestana*: Como se elege um parlamentar

Infelizmente, no Brasil, prestamos pouca atenção às eleições parlamentares. Em outubro, teremos eleições gerais. Ninguém governa de maneira segura e estável sem maioria parlamentar. O parlamento é um retrato fiel do estágio de desenvolvimento político, cultural e educacional de um país. Não nos reconhecemos no espelho. Mas ninguém chega lá por decreto. Todos são eleitos pela população. Há pesquisas, ao longo das últimas décadas, que revelam que 70% da população, um ano após as eleições, não se lembra sequer do nome do deputado em quem votou. Não há controle social sobre os mandatos. O controle difuso é feito pela imprensa, pelo lobby dos grupos de interesse populares ou empresariais e, agora, pelas redes sociais.

São as agruras do nosso presidencialismo que historicamente tem foco em personalidades, líderes carismáticos, e não em partidos e programas. Isso é agravado pela fragilidade do sistema partidário brasileiro e por nosso sistema eleitoral. A falta de ligação orgânica entre parlamentares e sociedade e de controle social sobre a atividade parlamentar têm aí sua raiz. O nosso sistema eleitoral, original e único, produz a dissociação entre o exercício parlamentar e a sociedade.

Marco Antonio Villa: Brasil: civilização ou barbárie?

Revista IstoÉ

O desprezo pelo coletivo, nacionalidade e destino comum de uma Nação transformou o País em um conjunto de ilhas que não se comunicam entre si

As sucessivas crises políticas e fracassos econômicos das últimas décadas geraram uma sociedade egoísta, narcisista, individualista e inimiga das questões sociais, culturais e inclusivas, típicas da sociedade contemporânea. O crescimento destas demandas não encontra receptividade por uma parcela considerável da população. E na estrutura de Estado há uma disfunção que se manifesta em decisões do Judiciário favoráveis ao que determina a Constituição e a ação concreta do Executivo criando sucessivas dificuldades para o enfrentamento das mesmas questões. O STF parece muito mais à frente do que o Executivo e o Legislativo. E, registre-se, não faz política. Simplesmente nas suas decisões cumpri as disposições constitucionais. Ou seja, o Brasil dos anos 1980 está muito mais avançado do que o Brasil dos anos 2020.

Ricardo Rangel: O Grande fetiche nacional

Revista Veja

As soluções mágicas que só aumentam o problema

Bolsonaro afirmou que a vinculação do preço do combustível à cotação internacional é algo que “não pode continuar acontecendo”. Lula, que botou a culpa na privatização da BR Distribuidora (como se o motorista do caminhão que faz o frete determinasse o preço da mercadoria), declarou que “o preço vai ser brasileiro, porque os investimentos são feitos em real”. Já Ciro Gomes disse que “eu chegando ao governo (…) essa política vai mudar: a Petrobras vai cobrar quanto custa para produzir”. Simples, não?

Todo problema complexo, dizia o jornalista H.L. Mencken, tem uma solução simples e errada. Bolsonaro, Lula e Ciro se esqueceram de combinar com os russos (e americanos, europeus, chineses). Se o preço for baixo aqui, ninguém venderá para o Brasil e, como não somos autossuficientes, vai haver desabastecimento. Nossos políticos dizem defender a Petrobras e o Brasil, mas obrigar a empresa a vender barato (em vez de vender caro no exterior) trará prejuízos à companhia e aos acionistas — costumeiramente apresentados como figuras satânicas que auferem lucros abusivos e indevidos, mas são na maioria empresas e cidadãos brasileiros, sendo o principal o próprio Brasil.

Cristina Serra: Medalha indigenista para Bolsonaro é escárnio

Folha de S. Paulo

Bem fez o indigenista Sidney Possuelo, que devolveu a medalha recebida há 35 anos

Com a campanha eleitoral na porta, Bolsonaro vai empregar, cada vez mais, estratégias da guerra de comunicação que ele sabe manejar como poucos, é preciso admitir. Deve-se a isso a medalha do mérito indigenista que ele e alguns puxa-sacos receberam. Sendo o presidente o maior inimigo dos povos indígenas, dar a ele essa honraria equivale a premiá-lo pela excelência no combate à pandemia no Brasil.

Esse tipo de provocação captura a agenda do debate público, dispersa o foco, ocupa as instituições, que precisam responder aos seguidos abusos. É forçoso manifestar nossa indignação contra o escárnio, como bem fez o indigenista Sidney Possuelo, que devolveu a mesma medalha, por ele recebida há 35 anos.

Demétrio Magnoli: Tomografia do discurso putínico

Folha de S. Paulo

Papagaios de Putin que procuram com lupa neonazistas ucranianos praticam o duplipensar

​​Os papagaios brasileiros de Putin, alvoroçados antes da invasão, calaram-se depois que as forças russas, incapazes de alcançar seus objetivos militares, engajaram-se no vandalismo, bombardeando edifícios residenciais, hospitais e abrigos de civis. Contudo, a algazarra retornará no minuto seguinte à eventual cessação de hostilidades. Vai aí, então, uma descrição das vertentes principais do discurso putínico de justificação da guerra de agressão.

1. "A Rússia nasceu em Kiev –e, portanto, a Ucrânia não é uma nação legítima mas um fragmento da Mãe Rússia". O argumento do "Putin historiador", extraído dos anais clássicos do chauvinismo grão-russo, caberia na voz de um czar. Por aqui, circula livremente entre professores universitários.

De fato, Ucrânia e Rússia nasceram juntas. No plano puramente lógico, seria possível virar o argumento putínico ao avesso para postular que a Rússia não passa de uma extensão da "Mãe Ucrânia". Curioso –e um tanto melancólico– é constatar que os acadêmicos dispostos a ecoar a falácia histórica putínica rejeitam, corretamente, a justificação bíblica para o controle de Israel sobre o conjunto da Terra Santa.

João Gabriel de Lima*: A vida na Lisboa ucraniana

O Estado de S. Paulo.

Cerca de 40 mil ucranianos ficaram em Portugal pelo futuro que poderiam dar aos filhos

Os lisboetas comemoraram muito a vitória do Benfica sobre o poderoso Ajax de Amsterdam, que levou o clube português à elite da Champions League europeia. Entre os que vibraram com a epopeia dos encarnados está o engenheiro Yevhen Doloshytskyy. Ele tem 28 anos, nasceu na Ucrânia e está em Lisboa desde os nove. Chegou sem falar uma palavra de português. “A linguagem que me integrou na escola foi a da bola, que jogava com a turma”, diz Yevhen.

Ele faz parte da numerosa comunidade ucraniana de Portugal. É o terceiro maior contingente de imigrantes no país, atrás apenas dos brasileiros e caboverdianos, e à frente de nações que mantêm ligações históricas com Portugal, como a Inglaterra.

Adriana Fernandes: Dois pesos-pesados

O Estado de S. Paulo.

Fiesp e Febraban afirmam que juros são altos demais e que é preciso agir em busca de solução

Um curto comunicado, distribuído no final da manhã da última quinta-feira, anunciou a dobradinha de dois pesos-pesados – um da indústria e outro do setor bancário – repleto de simbolismo que salta aos olhos no momento atual do cenário de alta de juros altos e estagnação econômica combinado com o ano de eleições para a Presidência da República.

A Fiesp e a Febraban se juntaram para criar um grupo de trabalho para estudar e propor medidas para enfrentar as causas dos juros estruturais do País. Mas a reaproximação das duas entidades vai muito além do tema escolhido para inaugurar uma nova parceria depois da troca de comando de Paulo Skaf (próximo ao governo Jair Bolsonaro) para Josué Gomes da Silva, filho do ex-vice-presidente José Alencar (Lula), que travou uma cruzada contra os juros elevados.

A relação estava trincada desde às vésperas das manifestações antidemocráticas de 7 de Setembro do ano passado, quando a Febraban passou por uma delicada crise institucional após a entidade assinar um manifesto da Fiesp em defesa da democracia.

Ricardo Henriques: Educação é desenvolvimento

O Globo

O Brasil é um país em compasso de espera. Seguimos aquém do nosso potencial, marcados por abissal desigualdade e racismo

O Brasil é um país em compasso de espera. Seguimos aquém do nosso potencial, marcados por abissal desigualdade e um racismo que atravessa estruturas e instituições, sem conseguir projetar os caminhos para um desenvolvimento social, ambiental e econômico consistente, justo e adequado aos parâmetros do século XXI. Educação é variável chave para resolver essa equação.

Nesta coluna inaugural cito alguns trabalhos de economistas que se dedicaram a investigar a relação entre educação, desenvolvimento social e o crescimento econômico, sem pretensão de esgotar o debate que atravessa vários campos de saberes.

Em artigo de 2009, Eric Hanushek e Ludger Woessmann apontaram que maiores níveis de escolarização e da qualidade do ensino — medidos no Pisa, exame internacional da OCDE — geram maior crescimento econômico.

Em 2018, quando esteve aqui, Hanushek estimou que se todos os jovens completassem o ensino médio com qualidade, o PIB brasileiro seria elevado em 16%, e os salários médios seriam 30% maiores.

Ascânio Seleme: Putin destruiu argumentos a seu favor

O Globo

foto de Lynsey Addario é dramática. No primeiro plano, dois soldados estão agachados, checando a vítima mais próxima deles, um homem estirado no chão com sangue no nariz. Logo depois, outras três pessoas mortas estão espalhadas na calçada, um adolescente, sua irmã de nove anos e a mãe de ambos. Ao fundo, um homem passa, com ar apressado, certamente com medo, sem olhar para a cena macabra. O menino tem sua mochila azul ainda presa nas costas. Diante do corpo da mãe, uma mala com o que ela conseguiu reunir para fugir. A foto foi para a primeira página do jornal “The New York Times” de terça-feira, assim como o relato de Addario sobre o massacre que testemunhou.

Todos sabiam que aqueles eram civis evacuando. Era muito visível, mesmo desde a posição onde estavam os soldados russos, disse a jornalista ao podcast “The Daily”, do NYT. Addario via pelas lentes de sua câmera que famílias tentavam fugir de Irpin para Kiev através de um resto de ponte que havia sobrevivido a um bombardeio feito pelos próprios ucranianos para impedir o avanço das tropas invasoras. O ataque contra aqueles civis foi deliberado. Um vídeo produzido pela equipe do jornal mostra as pessoas caminhando em fila e em seguida a explosão. Alguns escaparam, menos Tatiana, de 43 anos, e seus filhos Nikita, de 18, e Alissa, de 9. A quarta vítima era um voluntário que os ajudava a escapar.

Carlos Alberto Sardenberg: Putin acuado?

O Globo

As mais recentes declarações de Putin sugerem que ele enfrenta problemas internos com seus aliados no governo e na economia. O ditador russo ameaçou a “quinta-coluna” — expressão antiga que designa a ação política de grupos locais em favor de outros países. No caso, russos que estariam passando o que ele, Putin, chamou de falsas informações sobre perdas de seu exército na Ucrânia.

A população russa só recebe informações da imprensa estatal. Jornalistas estrangeiros foram expulsos. Logo apenas pessoas privilegiadas e com boa posição dentro do sistema de governo podem ter acesso a outras informações — essas produzidas pela imprensa ocidental mostrando os fracassos das tropas terrestres russas e a forte resistência dos ucranianos. É claro que os comandantes russos e o próprio Putin têm essas informações — outro sinal de que há vazamentos internos.

Eduardo Affonso: Mundo parece ter voltado ao século XX

O Globo

Expectativa do século XXI: cidades suspensas, carros voadores, todo mundo de roupa metalizada. Viagens no tempo, memórias implantadas por chip, teletransporte. Odisseias no espaço, robôs fazendo o serviço doméstico, androides adquirindo consciência da morte. A realidade: isto que a gente vê quando olha pela janela, lê o jornal, liga a TV ou acessa a internet.

Estamos há duas décadas no século XXI e, pelo jeito, pegamos, sem querer, um retorno.

Já tivemos não só uma pandemia como a de 1918-1919, mas também uma revolta da vacina, como em 1904. Derrotada por Itamar e FH em 1994, a inflação ganhou direito a revanche sob Bolsonaro, em 2022. Golpe de Estado, um comportamento tão século passado? Sim, seu rosnado foi ouvido em 2021. Considerada extinta desde a Constituição de 1988, a censura pôde ser vista, lépida e fagueira, nesta semana, em Brasília.

Pablo Ortellado: O governo da Ucrânia é nazista?

O Globo

Um dos elementos mais insidiosos da propaganda de guerra russa é a acusação de que o governo ucraniano está tomado por nazistas. A resposta à pergunta do título acima é simples: não, o governo da Ucrânia não é nazista. Apesar disso, a existência de um regimento da Guarda Nacional, o Batalhão Azov, composto de neonazistas e supremacistas brancos, deveria ser motivo de preocupação, tanto porque mostra condescendência do Estado ucraniano com ideais execráveis como por oferecer apoio à propaganda de Vladimir Putin.

O Batalhão Azov se formou nos desdobramentos das manifestações populares de 2013 e 2014 chamadas Euromaidan, contra as ações anti-União Europeia e pró-Rússia do governo, que terminaram derrubando o presidente ucraniano Viktor Yanukovich.

Paulo Sternick*: A marca da maldade em Putin

O Globo

O mundo ficou assombrado ao finalmente perceber, à frente de uma potência nuclear, um criminoso operando dentro de um chefe de Estado. Em Putin, a teimosa e sinistra obsessão megalomaníaca de restaurar a “Grande Rússia” — sob pretexto de garantir a defesa de uma soberania nem sequer ameaçada — provoca outra guerra cruel. Desafiando os limites da razão, ele não mostra capacidade de admitir erros ou fazer autocrítica. Ditador em seu país, quer tirar de seus vizinhos o direito às próprias escolhas, em nome de uma delirante e paranoica geopolítica enterrada no século passado. Nem parece real, e sim um filme de terror. A perplexidade diante desse anacronismo histórico é tal, que muitos supõem que ele ficou louco.

O diagnóstico é controverso. A começar pelo simples fato de que é impossível saber a verdade a respeito da mente de um mentiroso. Há apenas uma certeza sobre seu tipo: ele é, desde a juventude, um delinquente, um perigoso mau-caráter. Um sádico que fez carreira na KGB. Convém-lhe agora, porém, o oportuno rótulo de maluco. Infunde mais temor às suas ameaças e produz uma assimetria moral com o Ocidente. Com o dedo no gatilho nuclear, negando friamente os riscos de ser retaliado, paralisa militarmente os aliados da Ucrânia e os mantém como reféns de sua chantagem atômica. Lembra algum terrorista fanático?

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Desmembramento da Petrobras tem de entrar na agenda

O Globo

Há um elefante atrapalhando a discussão a respeito do preço dos combustíveis, que a classe política teima em não querer enxergar: o domínio da Petrobras sobre o mercado de refino no Brasil. Mesmo que, desde 1997, a estatal legalmente não detenha mais o monopólio, na prática a concorrência não chegou ao setor. Das 17 refinarias que produzem combustível no país, quatro são privadas, mas elas respondem por apenas 1,3% do petróleo processado, segundo o último anuário da Agência Nacional do Petróleo. O resto é controlado pela Petrobras, cuja política de preços determina o valor cobrado na bomba.

Em artigo no GLOBO, o engenheiro Edvaldo Santana, que foi diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e um dos coordenadores do Fórum do Gás, chamou a atenção para essa distorção e sugeriu a pulverização da Petrobras em várias empresas privadas, como forma de ampliar a concorrência e de reduzir os preços ao consumidor. Santana compara a situação ao ocorrido há 111 anos no mercado americano, quando a Suprema Corte quebrou a monopolista Standard Oil em 34 empresas, diante do clamor popular contra os preços abusivos. “Por que, no Brasil, o governo e o Congresso, em lugar de ficarem a discutir medidas ineficazes e eleitoreiras, não propõem a separação da Petrobras em pelo menos dez empresas, todas privadas?”, questionou.