Valor Econômico
Mais do que regras, precisamos de
compromisso fiscal
No premiado livro “Adeus, Senhor Portugal”,
Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira realizam uma profunda pesquisa
histórica que revela como uma crise fiscal e a elevação do custo de vida
fustigaram a insatisfação social nas primeiras décadas do século XIX,
acelerando o processo de independência do Brasil.
Fatalistas dirão que a irresponsabilidade
orçamentária está no DNA brasileiro, pois ao longo dos últimos 200 anos
convivemos com sucessivos governos que gastam mais do que arrecadam. Períodos
de austeridade são tão raros que seus artífices imprimiram seus nomes em nossa
história econômica, tal qual as parcerias Lennon & McCartney ou Roberto
& Erasmo Carlos o fizeram na música popular.
O presidente Campos Salles e seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, corrigiram os excessos monetários nos primeiros anos da República renegociando as condições da dívida externa, contendo as emissões de moeda, cortando despesas e criando novos impostos. Ao provocar a valorização do mil-réis, despertaram a ira da tradicional elite cafeeira e também dos empresários da nascente indústria nacional.
No início da ditadura militar, os ministros
Roberto Campos (Planejamento) e Octávio Bulhões (Fazenda) ganharam total
liberdade do presidente Castelo Branco para implementar um amplo projeto de
ajuste macroeconômico e de reformas microeconômicas. Suas medidas ambiciosas
estabilizaram a inflação e geraram as condições para o “milagre brasileiro” no
início da década de 1970, mas os remédios não foram indolores: as restrições
creditícias e a política salarial contracionista impuseram um forte ônus
social.
Em janeiro de 1999, quando o Plano Real
ameaçou soçobrar diante de uma sequência de crises externas (mexicana, asiática
e russa) que nos tornaram a bola da vez, uma outra dupla, com Pedro Malan na
Fazenda e Arminio Fraga no Banco Central, lançou o famoso “tripé
macroeconômico”. Como contrapartida a um volumoso empréstimo do Fundo Monetário
Internacional, Malan & Fraga criaram um programa assentado em câmbio
flutuante, metas de inflação e geração de superávits primários. Deu certo para
recuperar a credibilidade externa e interna da economia brasileira, mas não foi
suficiente para manter os tucanos no poder.
Do ponto de vista político, as três
experiências citadas acima possuem, em comum, o fato de terem sido
implementadas sem um arcabouço jurídico-constitucional que demandasse a sua
implementação. Salles-Murtinho, Campos-Bulhões e Malan-Fraga agiram premidos pela
gravidade de crises econômicas e respaldados por credores estrangeiros ou por
um regime ditatorial.
Isso não quer dizer, contudo, que
aprimoramentos institucionais não tiveram um papel importante em nossa
trajetória fiscal. Para ficar apenas nos grandes marcos jurídicos, a Lei nº º
4.320/1964 - por sinal, a última lei aprovada antes do golpe militar - até hoje
é a nossa principal referência de direito orçamentário, com seus princípios
gerais para a despesa e a receita.
A Constituição de 1988 trouxe um sistema
concatenado de normas - o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) - para impor planejamento
e previsibilidade para a ação governamental, bem como uma regra de ouro que
impedia governos de se endividarem para o pagamento de pessoal, benefícios
sociais e outras despesas correntes.
Em 2000, o Congresso Nacional aprovou a Lei
de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101), prometendo o início de
uma nova era em que governantes da União, Estados e municípios iriam se pautar
por regras austeras, com limites e metas para despesas e endividamento, e um
rol de exigências e penalidades a serem aplicadas em caso de descumprimento.
Para apertar ainda mais o torniquete, em
2016 o governo Temer aprovou a Emenda Constitucional nº 95, que instituiu a
nossa Carta Magna um dispositivo que obrigava os Três Poderes, mais o
Ministério Público e a Defensoria Pública, a respeitarem um teto limitando seus
gastos às despesas do ano anterior, corrigidas pela inflação.
Segundo anunciado pelo atual ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, nesta semana conheceremos os detalhes de mais um
capítulo em nossa saga em busca de colocar em ordem as contas públicas
brasileiras.
Se um novo arcabouço fiscal se faz
necessário, não significa que as normas anteriores foram inúteis. Difícil
imaginar como estaríamos sem a regra de ouro, a Lei de Responsabilidade Fiscal
ou o teto de gastos. Sempre que a situação política exigiu, porém, nossas
lideranças no Palácio do Planalto e no Congresso não titubearam em afastar a
aplicação dessas normas.
Desde que o governo brasileiro passou a
caminhar com as suas próprias pernas, com a quitação de nossa dívida com o FMI
por Lula em 2006, vivemos dois períodos muito distintos em relação à gestão
fiscal.
Até o fim de 2014, o país foi capaz de
manter a geração de superávits primários (sem contabilizar os pagamentos de
dívida) da ordem de 3% do PIB a cada ano. Os recorrentes resultados positivos,
contudo, mascaravam uma realidade de forte crescimento das despesas que era
mais do que compensado por elevações na carga tributária e receitas
extraordinárias atreladas ao boom de commodities.
Quando os tempos de bonança e a tolerância
da sociedade a mais impostos chegaram ao fim, a curva dos gastos passou a correr
acima da linha de receitas. A boca de jacaré que se abriu na tempestade
perfeita de recessão econômica com crise política em 2015 foi escancarada com a
pandemia, elevando a dívida pública.
Orçamento de guerra, Precatórios, Kamikaze
e Transição - de PEC em PEC, fomos implodindo um dos pilares do tripé
macroeconômico, causando sérias avarias nos outros dois. Nossa história revela
que somos pródigos em inventar leis que funcionam quando tudo vai bem, mas
deixam de ser aplicadas justamente quando mais precisamos delas.
Haddad promete apresentar um novo conjunto
de regras que resgate a confiança na política fiscal brasileira. Será que desta
feita teremos uma lei com seguro contra interesses políticos?
*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
O colunista relembra a quitação da nossa dívida com o FMI por Lula, em 2006, simplesmente esquecida por todos os colunistas que criticam a política econômica do atual presidente.
ResponderExcluirLendo e aprendendo.
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