segunda-feira, 13 de março de 2023

Bruno Carazza* - Normas que só funcionam quando tudo vai bem

Valor Econômico

Mais do que regras, precisamos de compromisso fiscal

No premiado livro “Adeus, Senhor Portugal”, Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira realizam uma profunda pesquisa histórica que revela como uma crise fiscal e a elevação do custo de vida fustigaram a insatisfação social nas primeiras décadas do século XIX, acelerando o processo de independência do Brasil.

Fatalistas dirão que a irresponsabilidade orçamentária está no DNA brasileiro, pois ao longo dos últimos 200 anos convivemos com sucessivos governos que gastam mais do que arrecadam. Períodos de austeridade são tão raros que seus artífices imprimiram seus nomes em nossa história econômica, tal qual as parcerias Lennon & McCartney ou Roberto & Erasmo Carlos o fizeram na música popular.

O presidente Campos Salles e seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho, corrigiram os excessos monetários nos primeiros anos da República renegociando as condições da dívida externa, contendo as emissões de moeda, cortando despesas e criando novos impostos. Ao provocar a valorização do mil-réis, despertaram a ira da tradicional elite cafeeira e também dos empresários da nascente indústria nacional.

No início da ditadura militar, os ministros Roberto Campos (Planejamento) e Octávio Bulhões (Fazenda) ganharam total liberdade do presidente Castelo Branco para implementar um amplo projeto de ajuste macroeconômico e de reformas microeconômicas. Suas medidas ambiciosas estabilizaram a inflação e geraram as condições para o “milagre brasileiro” no início da década de 1970, mas os remédios não foram indolores: as restrições creditícias e a política salarial contracionista impuseram um forte ônus social.

Em janeiro de 1999, quando o Plano Real ameaçou soçobrar diante de uma sequência de crises externas (mexicana, asiática e russa) que nos tornaram a bola da vez, uma outra dupla, com Pedro Malan na Fazenda e Arminio Fraga no Banco Central, lançou o famoso “tripé macroeconômico”. Como contrapartida a um volumoso empréstimo do Fundo Monetário Internacional, Malan & Fraga criaram um programa assentado em câmbio flutuante, metas de inflação e geração de superávits primários. Deu certo para recuperar a credibilidade externa e interna da economia brasileira, mas não foi suficiente para manter os tucanos no poder.

Do ponto de vista político, as três experiências citadas acima possuem, em comum, o fato de terem sido implementadas sem um arcabouço jurídico-constitucional que demandasse a sua implementação. Salles-Murtinho, Campos-Bulhões e Malan-Fraga agiram premidos pela gravidade de crises econômicas e respaldados por credores estrangeiros ou por um regime ditatorial.

Isso não quer dizer, contudo, que aprimoramentos institucionais não tiveram um papel importante em nossa trajetória fiscal. Para ficar apenas nos grandes marcos jurídicos, a Lei nº º 4.320/1964 - por sinal, a última lei aprovada antes do golpe militar - até hoje é a nossa principal referência de direito orçamentário, com seus princípios gerais para a despesa e a receita.

A Constituição de 1988 trouxe um sistema concatenado de normas - o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) - para impor planejamento e previsibilidade para a ação governamental, bem como uma regra de ouro que impedia governos de se endividarem para o pagamento de pessoal, benefícios sociais e outras despesas correntes.

Em 2000, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101), prometendo o início de uma nova era em que governantes da União, Estados e municípios iriam se pautar por regras austeras, com limites e metas para despesas e endividamento, e um rol de exigências e penalidades a serem aplicadas em caso de descumprimento.

Para apertar ainda mais o torniquete, em 2016 o governo Temer aprovou a Emenda Constitucional nº 95, que instituiu a nossa Carta Magna um dispositivo que obrigava os Três Poderes, mais o Ministério Público e a Defensoria Pública, a respeitarem um teto limitando seus gastos às despesas do ano anterior, corrigidas pela inflação.

Segundo anunciado pelo atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, nesta semana conheceremos os detalhes de mais um capítulo em nossa saga em busca de colocar em ordem as contas públicas brasileiras.

Se um novo arcabouço fiscal se faz necessário, não significa que as normas anteriores foram inúteis. Difícil imaginar como estaríamos sem a regra de ouro, a Lei de Responsabilidade Fiscal ou o teto de gastos. Sempre que a situação política exigiu, porém, nossas lideranças no Palácio do Planalto e no Congresso não titubearam em afastar a aplicação dessas normas.

Desde que o governo brasileiro passou a caminhar com as suas próprias pernas, com a quitação de nossa dívida com o FMI por Lula em 2006, vivemos dois períodos muito distintos em relação à gestão fiscal.

Até o fim de 2014, o país foi capaz de manter a geração de superávits primários (sem contabilizar os pagamentos de dívida) da ordem de 3% do PIB a cada ano. Os recorrentes resultados positivos, contudo, mascaravam uma realidade de forte crescimento das despesas que era mais do que compensado por elevações na carga tributária e receitas extraordinárias atreladas ao boom de commodities.

Quando os tempos de bonança e a tolerância da sociedade a mais impostos chegaram ao fim, a curva dos gastos passou a correr acima da linha de receitas. A boca de jacaré que se abriu na tempestade perfeita de recessão econômica com crise política em 2015 foi escancarada com a pandemia, elevando a dívida pública.

Orçamento de guerra, Precatórios, Kamikaze e Transição - de PEC em PEC, fomos implodindo um dos pilares do tripé macroeconômico, causando sérias avarias nos outros dois. Nossa história revela que somos pródigos em inventar leis que funcionam quando tudo vai bem, mas deixam de ser aplicadas justamente quando mais precisamos delas.

Haddad promete apresentar um novo conjunto de regras que resgate a confiança na política fiscal brasileira. Será que desta feita teremos uma lei com seguro contra interesses políticos?

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.

2 comentários:

Anônimo disse...

O colunista relembra a quitação da nossa dívida com o FMI por Lula, em 2006, simplesmente esquecida por todos os colunistas que criticam a política econômica do atual presidente.

ADEMAR AMANCIO disse...

Lendo e aprendendo.