O Globo
Foram necessários seis meses e uma Comissão
Parlamentar de Inquérito para a Americanas S.A.
admitir publicamente o óbvio. O que houve na maior varejista do Brasil foi um
esquema de proporções épicas, a maior fraude corporativa da História do Brasil.
O atual presidente da companhia, Leonardo
Coelho, afirmou aos deputados que um rombo calculado em R$ 25,7 bilhões foi
escamoteado nas demonstrações financeiras ao longo de vários anos. É uma
enormidade, ainda mais considerando que o faturamento anual foi desse mesmo
valor em 2021.
Impressionaram, ainda, as evidências de que
os antigos diretores trabalhavam ativamente e em equipe (ou talvez fosse melhor
dizer em quadrilha) para transformar prejuízo em lucro, além de produzir uma
contabilidade falsa para o conselho de administração e o mercado.
Havia duas planilhas: a “visão interna”, com os números reais, e a “visão conselho”, com dados inflados. Por e-mail, os executivos discutiam formas de perpetuar e esconder a enganação, pois do contrário seria “morte súbita”.
Segundo o CEO, eles negociavam com bancos e
auditorias formas de retirar de documentos qualquer termo que pudesse ligar o
alerta sobre as fraudes. O objetivo era um só: inflando o lucro, faziam subir o
valor das ações na Bolsa e recebiam bônus milionários. Isso à custa de dezenas
de milhares de investidores, fornecedores e trabalhadores.
Engana-se, porém, quem acha que esse relato
bombástico encerra a história. Ao contrário, inaugura uma batalha pela
distribuição de responsabilidades que promete ser sangrenta.
Para começo de conversa, em mais de quatro
horas de sessão da CPI, mal se ouviram os nomes dos principais acionistas
— Jorge
Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira,
que até outro dia formavam o trio dourado do capitalismo brasileiro. Na versão
meticulosamente apresentada pelo CEO — ao fim e ao cabo, um funcionário do trio
—, os antigos diretores foram os únicos responsáveis pelos crimes.
Tudo era feito de forma a driblar o
conselho, onde o próprio Sicupira tinha assento, além do filho de Lemann. “Era
apresentado ao Conselho de Administração aquilo que a diretoria desejava que se
tornasse público”, diz o relatório de 20 páginas entregue aos deputados. Não se
trata de duvidar do que foi exibido. A questão é saber o que ainda não
apareceu.
O próprio CEO admite que o documento,
preparado por advogados da Americanas, “foi baseado nas informações, mas não
são a conclusão do comitê independente [contratado pela companhia], que ainda
está investigando”.
A reação dos ex-executivos fatalmente virá.
Nos bastidores, eles se preparam para atirar. Quem conhece bem o 3G e a cultura
corporativa forjada por eles duvida que pelo menos Sicupira, que participava da
rotina da Americanas, não tivesse ideia do que se passava.
Além de ser do conselho, Beto se envolvia
diretamente na contratação dos executivos, de quem exigia lealdade. Além disso,
embora talvez não fosse possível identificar as fraudes específicas apontadas
pelo CEO, não faltou quem percebesse furos no balanço.
De acordo com o sócio de uma gestora que
acompanhou a empresa durante anos e vendeu suas ações por desconfiar dos
números, era comum rubricas de gastos aparecerem e desaparecerem de uma
demonstração financeira para outra sem que ninguém desse satisfação.
Era comum, também, anunciarem aquisições
sem explicitar quanto havia sido pago ou o impacto sobre as finanças. “Eles se
davam ao direito de não dar explicação a ninguém, porque eram o 3G. A gente
aceitava, porque eram ícones da competência e do capitalismo.”
Aí reside o tema que deveria estar no cerne
das preocupações do poder público. A Americanas não é a primeira empresa do 3G
a ter problemas. Para ficar só no exemplo mais recente, em 2019, fraude
semelhante foi descoberta por autoridades dos Estados Unidos na Kraft Heinz,
que teve de corrigir o balanço em US$ 15,4 bilhões e pagar multa de US$ 62
milhões. Kraft e 3G ainda tiveram de pagar US$ 450 milhões para encerrar a ação
movida pelos investidores.
Enquanto tudo isso acontecia lá fora, no
Brasil os executivos da Americanas recebiam seus bônus, os bancos faturavam com
as taxas de seus financiamentos, as auditorias recebiam sua remuneração, e os
órgãos reguladores se mantinham alheios aos sinais de que algo poderia estar
errado.
Sempre se poderá dizer, como fez o CEO na
CPI, que “quem olha do lado de fora não consegue perceber essa fraude”. O nó
está justamente em saber quem estava realmente de fora e quem estava dentro.
Algo me diz que ainda vamos descobrir.
Pois é.
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