quinta-feira, 15 de junho de 2023

Malu Gaspar – Autópsia de uma fraude

O Globo

Foram necessários seis meses e uma Comissão Parlamentar de Inquérito para a Americanas S.A. admitir publicamente o óbvio. O que houve na maior varejista do Brasil foi um esquema de proporções épicas, a maior fraude corporativa da História do Brasil.

O atual presidente da companhia, Leonardo Coelho, afirmou aos deputados que um rombo calculado em R$ 25,7 bilhões foi escamoteado nas demonstrações financeiras ao longo de vários anos. É uma enormidade, ainda mais considerando que o faturamento anual foi desse mesmo valor em 2021.

Impressionaram, ainda, as evidências de que os antigos diretores trabalhavam ativamente e em equipe (ou talvez fosse melhor dizer em quadrilha) para transformar prejuízo em lucro, além de produzir uma contabilidade falsa para o conselho de administração e o mercado.

Havia duas planilhas: a “visão interna”, com os números reais, e a “visão conselho”, com dados inflados. Por e-mail, os executivos discutiam formas de perpetuar e esconder a enganação, pois do contrário seria “morte súbita”.

Segundo o CEO, eles negociavam com bancos e auditorias formas de retirar de documentos qualquer termo que pudesse ligar o alerta sobre as fraudes. O objetivo era um só: inflando o lucro, faziam subir o valor das ações na Bolsa e recebiam bônus milionários. Isso à custa de dezenas de milhares de investidores, fornecedores e trabalhadores.

Engana-se, porém, quem acha que esse relato bombástico encerra a história. Ao contrário, inaugura uma batalha pela distribuição de responsabilidades que promete ser sangrenta.

Para começo de conversa, em mais de quatro horas de sessão da CPI, mal se ouviram os nomes dos principais acionistas — Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, que até outro dia formavam o trio dourado do capitalismo brasileiro. Na versão meticulosamente apresentada pelo CEO — ao fim e ao cabo, um funcionário do trio —, os antigos diretores foram os únicos responsáveis pelos crimes.

Tudo era feito de forma a driblar o conselho, onde o próprio Sicupira tinha assento, além do filho de Lemann. “Era apresentado ao Conselho de Administração aquilo que a diretoria desejava que se tornasse público”, diz o relatório de 20 páginas entregue aos deputados. Não se trata de duvidar do que foi exibido. A questão é saber o que ainda não apareceu.

O próprio CEO admite que o documento, preparado por advogados da Americanas, “foi baseado nas informações, mas não são a conclusão do comitê independente [contratado pela companhia], que ainda está investigando”.

A reação dos ex-executivos fatalmente virá. Nos bastidores, eles se preparam para atirar. Quem conhece bem o 3G e a cultura corporativa forjada por eles duvida que pelo menos Sicupira, que participava da rotina da Americanas, não tivesse ideia do que se passava.

Além de ser do conselho, Beto se envolvia diretamente na contratação dos executivos, de quem exigia lealdade. Além disso, embora talvez não fosse possível identificar as fraudes específicas apontadas pelo CEO, não faltou quem percebesse furos no balanço.

De acordo com o sócio de uma gestora que acompanhou a empresa durante anos e vendeu suas ações por desconfiar dos números, era comum rubricas de gastos aparecerem e desaparecerem de uma demonstração financeira para outra sem que ninguém desse satisfação.

Era comum, também, anunciarem aquisições sem explicitar quanto havia sido pago ou o impacto sobre as finanças. “Eles se davam ao direito de não dar explicação a ninguém, porque eram o 3G. A gente aceitava, porque eram ícones da competência e do capitalismo.”

Aí reside o tema que deveria estar no cerne das preocupações do poder público. A Americanas não é a primeira empresa do 3G a ter problemas. Para ficar só no exemplo mais recente, em 2019, fraude semelhante foi descoberta por autoridades dos Estados Unidos na Kraft Heinz, que teve de corrigir o balanço em US$ 15,4 bilhões e pagar multa de US$ 62 milhões. Kraft e 3G ainda tiveram de pagar US$ 450 milhões para encerrar a ação movida pelos investidores.

Enquanto tudo isso acontecia lá fora, no Brasil os executivos da Americanas recebiam seus bônus, os bancos faturavam com as taxas de seus financiamentos, as auditorias recebiam sua remuneração, e os órgãos reguladores se mantinham alheios aos sinais de que algo poderia estar errado.

Sempre se poderá dizer, como fez o CEO na CPI, que “quem olha do lado de fora não consegue perceber essa fraude”. O nó está justamente em saber quem estava realmente de fora e quem estava dentro. Algo me diz que ainda vamos descobrir.

 

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