quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Fernando Exman - Mitos e personagens da trajetória bolsonarista

Valor Econômico

Recém-eleito presidente da República, Jair Bolsonaro foi naquela manhã de domingo até a Urca, no Rio de Janeiro, para participar de um tradicional encontro anual nas instalações da Escola de Educação Física do Exército. Era 25 de novembro de 2018. O então deputado federal acabara de vencer as eleições com um inflamado discurso antipetista e anticorrupção, momento bem distinto do vivido por ele e seu entorno atualmente.

Bolsonaro passara a campanha fazendo de tudo para construir a imagem de austero. Manteve o esforço nos anos seguintes, aparecendo frequentemente em público como homem de hábitos simples, apreciador de pão com leite condensado e portador de relógios ou canetas que nem de longe lembram os modelos supostamente dados ao Estado brasileiro e depois incorporados ao seu patrimônio pessoal.

Convenceu muita gente. Na campanha à reeleição, em 2022, repetiu a estratégia. Perdeu a disputa, mas ainda assim o discurso sensibilizou mais uma vez parcela considerável do eleitorado. Tanto que seu partido, o PL, reservou-lhe um papel de luxo, muitíssimo bem remunerado, para que trabalhe para impulsionar candidaturas da sigla nas eleições municipais.

Nem mesmo a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de torná-lo inelegível o fez mudar de plano. Em julho, enquanto todas as principais lideranças políticas do país discutiam a reforma tributária em Brasília, Bolsonaro aparecia em uma loja popular em Goiás falando com apoiadores e bebendo caldo de cana.

Naquele longínquo domingo de 2018, contudo, vivia-se outro momento.

Do lado de fora da organização militar onde se formou em educação física, ele falou com a imprensa. Em meio a gritos de “mito” dados por apoiadores que o aguardavam na rua, assegurou que não negociaria cargos com partidos políticos para a formação do governo. Promessa que descumpriu, aliás, quando se viu pressionado por alguns pedidos de impeachment.

Dentro do quartel, mais à vontade, confraternizou e recebeu uma condecoração.

Nas imagens que foram divulgadas após o encontro, tinha ao seu lado personagens até então pouco conhecidos do público em geral. Participaram do evento, por exemplo, o então interventor federal no Rio de Janeiro e comandante militar do Leste, general Walter Souza Braga Netto, e o general Décio dos Santos Brasil, antigo vice-chefe do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx) e ex-chefe do Centro de Capacitação Física da Força Terrestre.

O primeiro, como se sabe, depois foi ministro da Casa Civil e da Defesa. Deixou o governo para disputar as eleições como vice de Bolsonaro e, agora, é cotado para concorrer à Prefeitura do Rio.

Décio dos Santos Brasil tornou-se Secretário Especial do Esporte. Em entrevista à “Folha de S. Paulo” concedida em março de 2020 após sua demissão, disse que fora exonerado por ter resistido à nomeação de um amigo do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). Segundo fontes relataram à época, ele foi uma baixa na guerra entre as alas militar e ideológica da administração anterior.

No almoço oferecido durante o encontro, ele foi acomodado à direita do presidente eleito, em lugar de destaque. Do outro lado, sentou-se o então chefe do Departamento de Educação e Cultura do Exército, general Mauro Cesar Lourena Cid.

Era impossível para qualquer espectador da cena prever o que ocorreria anos depois. Respeitado pelos seus pares, Lourena Cid fora colega na academia militar do novo presidente da República e conseguiu emplacar o próprio filho, o tenente-coronel Mauro Cid, no cargo de ajudante de ordens de Bolsonaro, posto de extrema confiança e do círculo próximo do chefe do Poder Executivo.

Essa proximidade, segundo investigadores, estreitou-se, e muito, de lá para cá. Pai e filho se tornaram personagens centrais nas apurações que podem determinar o futuro do que ainda resta do cacife político de Bolsonaro.

Diante das incertezas, aliados do ex-presidente estão cautelosos. Apesar da repercussão negativa nas redes sociais e do silêncio de apoiadores, eles acreditam que o potencial eleitoral de Bolsonaro ainda está relativamente preservado: o PL fará pesquisas nos próximos meses para avaliar os danos do episódio em relação à imagem de Bolsonaro e da ex-primeira-dama Michelle.

Por enquanto, contudo, eles decidiram esperar os desdobramentos para comentar os fatos em apuração. Podem até divulgar mensagens genéricas de apoio, mas sem falar diretamente sobre o que não sabem. Até porque, neste momento, os investigadores estão vasculhando as informações de celulares, dispositivos eletrônicos, sigilos fiscais e bancários dos envolvidos no suposto esquema de venda de presentes oficiais.

Da seara eleitoral, fala-se agora de supostas irregularidades praticadas no âmbito criminal. Ou seja, em caso de condenação transitada em julgado, estaria em jogo mais do que a já declarada inelegibilidade de Bolsonaro, mas a suspensão de seus direitos políticos. A inelegibilidade é mais restrita do que a perda ou suspensão de direitos políticos, uma vez que ela não tira o direito ao voto e ao de ser nomeado a cargos públicos não eletivos, por exemplo.

Ficaria em xeque, dessa forma, até a sua capacidade de fazer campanha para os correligionários. Assim como a imagem que tentou construir ao longo dos últimos anos e ainda se sustenta entre aqueles que o chamam de “mito”.

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