O Estado de S. Paulo
A nova proposta orçamentária mostra que não precisamos apenas de novos números, mas de novas práticas
O mês de setembro marcou o encaminhamento
do primeiro projeto de lei orçamentária federal ao amparo do novo regime
fiscal, sancionado no dia anterior pelo presidente da República. Não foi uma
mera formalidade. O olhar sobre as contas públicas afeta a vida de todos os
brasileiros e as desconfianças impuseram ao País que o Banco Central fixasse,
sem muitas explicações, juros em níveis reais que beiram o insólito.
Pelo menos temos uma boa notícia, a maior barbaridade econômica da última década foi jogada na lata de lixo da história. O teto de gastos não governa mais a nossa política fiscal. Vale notar que o torniquete colocado nas despesas com saúde e educação perdeu eficácia, algo fundamental para que as políticas sociais voltem a exercer o seu potencial de transformação da economia e da sociedade brasileira.
Apesar de algumas boas notícias, não
podemos deixar de lembrar que a aterrissagem na realidade vai demandar muito
mais do que metas e gráficos de um novo arcabouço fiscal.
A nova proposta orçamentária mostra que não
precisamos apenas de novos números, mas de novas práticas. Em verdade, é
fundamental reciclar não somente o planejamento das ações da máquina pública,
como também a forma como o Executivo e o Legislativo conduzem as decisões sobre
a alocação de recursos orçamentários.
A proposta de orçamento chega ao Congresso
Nacional com expansão de despesas primárias de R$ 129 bilhões, ante a execução
estimada para 2023. No entanto, a programação não incluiu itens absolutamente
essenciais: reajuste dos salários dos servidores federais, Bolsa Família e
correção da tabela progressiva do Imposto de Renda. São aspectos politicamente
sensíveis e compromissos de campanha do atual presidente. As ausências
indicaram a provisoriedade da proposta e são terreno fértil para as suspeitas
que o mercado financeiro manipula de forma tão desenvolta.
Mas falta mais. O governo federal precisa
de R$ 168,5 bilhões em receitas que não estão garantidas. A mais expressiva é a
mudança no Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (Carf),
já aprovada pelo Congresso, pela qual o governo volta a ter o voto de
qualidade, prerrogativa perdida em 2020. A medida deve gerar R$ 98 bilhões.
Chegar a uma estimativa de recursos a partir de um voto de qualidade é algo,
digamos, surreal. Mas espero que dê certo.
A segunda grande aposta é a Medida
Provisória 1.185/2023, recentemente publicada. Ela dá operacionalidade à
vitória obtida pelo governo no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que
possibilita a cobrança de tributos federais sobre benefícios concedidos pelos
Estados em impostos de sua competência, quando não relativas a investimentos. A
estimativa é de R$ 35,3 bilhões.
De resto, é a reposição de matérias que
sempre estiveram na pauta e fracassaram pelo poder dos interesses em contrário.
Elas vão desde o recolhimento antecipado de Imposto de Renda sobre os fundos
fechados até a cobrança de impostos das offshores, passando por loterias e a
revogação da dedutibilidade para juros sobre o capital próprio. Estranho que já
não sejam questões equacionadas.
Salvo alguns efeitos colaterais, as medidas
são corretas. O problema é o contexto em que vão ao Congresso Nacional. E aí
não dá para fugir ao tema das emendas de parlamentares individuais e de
bancada. No projeto de lei, foram reservados R$ 37,6 bilhões, mas se fala numa
conta de até R$ 20 bilhões a mais. Só para ter um parâmetro comparativo, a
complementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) está orçada em R$ 46,9
bilhões.
Sem a expansão da receita esperada e com o
déficit primário estimado em R$ 146 bilhões para 2023, não será revertido a um
pequeno superávit primário (R$ 2,8 bilhões). Um fracasso maior poderá levar ao
descumprimento da meta, incluída a banda de variação, dado que o novo arcabouço
fiscal permite flutuação entre menos 0,25% e mais 0,25% do PIB em torno da
meta.
As votações das medidas provisórias e a
construção da peça orçamentária nunca serão desvinculadas. O Executivo federal
acabou construindo o terreno mais propício para que a chantagem ocorra. Emendas
parlamentares, receitas adicionais e cumprimento da meta fiscal passam a compor
um mecanismo perverso de decisão sobre as finanças públicas.
Alguns dirão: “Esse é o jogo!”. Esse jogo,
no entanto, está desestruturando o funcionamento da máquina pública,
pervertendo as decisões do Legislativo e promovendo decisões fiscais de
qualidade cada vez mais duvidosas.
O jogo democrático exige que os atores que
ganharam representatividade pela via do voto tenham voz. Mas já passou da hora
de submeter essas indicações de gasto a estruturas que tenham condições de
realizar a avaliação da eficiência do gasto público. E isso deve valer para
toda despesa.
Ainda tenho a esperança de que a tramitação
do Orçamento deixe de ser apenas uma arena de luta por privilégios e se
transforme no locus das decisões sobre a melhor forma de aplicar os recursos
públicos de maneira eficaz.
*Economista
Nenhum comentário:
Postar um comentário