terça-feira, 7 de novembro de 2023

Luiz Schymura* - Pacto e vínculos agravam quadro fiscal

Valor Econômico

“Pedágios” acabam encurtando o espaço de manobra do governo de plantão

O governo vem tentando administrar as contas públicas a contento. Se por um lado procura construir caminhos para assegurar a sustentabilidade fiscal, por outro, trabalha para atender as enormes demandas da sociedade. Sem dúvida não é um equilíbrio fácil de ser alcançado.

No intuito de satisfazer essa intrincada equação, o governo se comprometeu a zerar o déficit já em 2024, obviamente, imaginando que conseguiria dispor do montante necessário para cumprir seu programa. Frente a esse quadro, o equilíbrio fiscal passou a depender eminentemente da elevação da receita. Não à toa, a arrecadação bruta da União em 2024 precisa de um reforço da ordem de R$ 170 bilhões. No entanto, por mais que o governo venha trabalhando junto à classe política e aos grupos de interesse organizados, a economia política não dá sinais de que viabilizará, em tempo hábil, a aprovação, no Congresso, das medidas necessárias para obtenção dos R$ 170 bilhões.

Diante dessa dificuldade, o presidente Lula sinalizou a intenção de redefinir a meta para 2024. Fala-se em déficit de 0,5% do PIB (cerca de R$ 50 bilhões). Na verdade, esse foi o último lance no tabuleiro do xadrez fiscal.

Seja como for, nessa busca arrecadatória incessante, dois aspectos do modelo institucional brasileiro merecem atenção.

Primeiramente, a União se vê obrigada a arrecadar substancialmente mais que precisa para fechar suas próprias contas, uma vez que a receita total arrecadada deve ser particionada com Estados e municípios. Em função disso, para conseguir se apropriar dos R$ 125 bilhões necessários ao cumprimento da meta de primário, o governo federal se viu obrigado a mirar uma arrecadação extra de algo próximo a R$ 170 bilhões. Como argumenta meu colega Manoel Pires, a diferença de quase R$ 45 bilhões passa a engrossar as receitas disponíveis dos governos regionais sem que tenham feito muito esforço. Essa soma não deveria ser ignorada nas discussões sobre a compensação das perdas de receitas de ICMS geradas por decisões tomadas pelo governo federal em 2022, muito menos em termos do tamanho do Fundo de Desenvolvimento Regional da reforma tributária.

Em segundo lugar, existe uma particularidade em algumas das despesas públicas que torna ainda mais incerto o cumprimento da meta: a vinculação legal (em muitos casos constitucional) das despesas às receitas. Saúde, educação e emendas parlamentares são exemplos disso. É de fácil compreensão intuitiva que um ajuste fiscal apoiado no aumento de receita fica ainda mais difícil de ser atingido quando o crescimento da receita se traduz, automaticamente, em mais despesas. E esse é, de fato, um dos problemas que a política fiscal brasileira enfrenta hoje.

Em uma análise bastante preliminar, Pires estima que algo entre 20 e 25% da alta de impostos fique comprometido com as rubricas do Orçamento que vinculam despesa à receita, penalizando, desta feita, o resultado primário do governo.

O problema das vinculações da despesa à receita aparece marcadamente no setor de saúde, como aponta meu colega Bráulio Borges. Na verdade, o vínculo retornará somente em 2024, por conta de a definição do dispêndio mínimo com saúde passar a ser novamente 15% da Receita Corrente Líquida (RCL). Até o presente ano, com a Emenda Constitucional do teto de gastos ainda vigendo, o gasto mínimo com saúde está sendo corrigido pela inflação aferida pelo IPCA.

Segundo projeção de agosto do Ministério do Planejamento, o mínimo com saúde passará de R$ 168,1 bilhões em 2023 para R$ 218,4 bilhões em 2024, um aumento de R$ 50,3 bilhões (cerca de 30%). Por outro lado, num cenário no qual o teto de gastos continuasse de pé no próximo ano, a despesa mínima com saúde partiria dos R$ 168,1 bilhões em 2023 e atingiria R$ 176,5 bilhões em 2024 (aumento de R$ 8,4 bilhões), tendo em vista variação do IPCA de 5%. A mudança na regra carimba um dispêndio mínimo adicional para a saúde na faixa de R$ 41,9 bilhões.

Na realidade, são dois os fatores que potencializaram esse aumento do gasto obrigatório em saúde. Uma primeira ampliação decorre da própria mudança da fórmula de cálculo. Ao apurar a despesa obrigatória com saúde em 2023, é possível constatar que totaliza o equivalente a algo na faixa de 13,2% da RCL, menor do que os obrigatórios 15% a vigerem a partir de 2024. A segunda expansão ocorre em virtude da projeção de forte aumento na carga tributária para o próximo ano. É importante ressaltar que, como lembra Borges, o gasto em saúde sempre foi muito próximo ao mínimo constitucional obrigatório, e, portanto, a regra em vigor faz muita diferença.

Tanto a institucionalidade do atual pacto federativo quanto a vinculação de algumas despesas às receitas impedem o governo de se apropriar de todo o montante relativo a um aumento de arrecadação. Grosso modo, todo aumento de receita pública embute um “pedágio” ao governo federal. Em um cenário como o de hoje, no qual a arrecadação pública está operando como a variável de folga para o ajuste das contas públicas, os “pedágios” acabam encurtando o espaço de manobra do governo de plantão. Assim, precisam ser repensados, debatidos e negociados. Obviamente, a solução não é simplesmente eliminá-los, mas uma revisão cuidadosa é evidentemente necessária.

*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre

 

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