Valor Econômico
“Pedágios” acabam encurtando o
espaço de manobra do governo de plantão
O governo vem tentando administrar as contas públicas a contento. Se por
um lado procura construir caminhos para assegurar a sustentabilidade fiscal,
por outro, trabalha para atender as enormes demandas da sociedade. Sem dúvida
não é um equilíbrio fácil de ser alcançado.
No intuito de satisfazer essa intrincada equação, o governo se comprometeu a zerar o déficit já em 2024, obviamente, imaginando que conseguiria dispor do montante necessário para cumprir seu programa. Frente a esse quadro, o equilíbrio fiscal passou a depender eminentemente da elevação da receita. Não à toa, a arrecadação bruta da União em 2024 precisa de um reforço da ordem de R$ 170 bilhões. No entanto, por mais que o governo venha trabalhando junto à classe política e aos grupos de interesse organizados, a economia política não dá sinais de que viabilizará, em tempo hábil, a aprovação, no Congresso, das medidas necessárias para obtenção dos R$ 170 bilhões.
Diante dessa dificuldade, o presidente Lula sinalizou a intenção de
redefinir a meta para 2024. Fala-se em déficit de 0,5% do PIB (cerca de R$ 50
bilhões). Na verdade, esse foi o último lance no tabuleiro do xadrez fiscal.
Seja como for, nessa busca arrecadatória incessante, dois aspectos do
modelo institucional brasileiro merecem atenção.
Primeiramente, a União se vê obrigada a arrecadar substancialmente mais
que precisa para fechar suas próprias contas, uma vez que a receita total
arrecadada deve ser particionada com Estados e municípios. Em função disso,
para conseguir se apropriar dos R$ 125 bilhões necessários ao cumprimento da
meta de primário, o governo federal se viu obrigado a mirar uma arrecadação
extra de algo próximo a R$ 170 bilhões. Como argumenta meu colega Manoel Pires,
a diferença de quase R$ 45 bilhões passa a engrossar as receitas disponíveis
dos governos regionais sem que tenham feito muito esforço. Essa soma não
deveria ser ignorada nas discussões sobre a compensação das perdas de receitas
de ICMS geradas por decisões tomadas pelo governo federal em 2022, muito menos
em termos do tamanho do Fundo de Desenvolvimento Regional da reforma
tributária.
Em segundo lugar, existe uma particularidade em algumas das despesas
públicas que torna ainda mais incerto o cumprimento da meta: a vinculação legal
(em muitos casos constitucional) das despesas às receitas. Saúde, educação e
emendas parlamentares são exemplos disso. É de fácil compreensão intuitiva que
um ajuste fiscal apoiado no aumento de receita fica ainda mais difícil de ser
atingido quando o crescimento da receita se traduz, automaticamente, em mais
despesas. E esse é, de fato, um dos problemas que a política fiscal brasileira
enfrenta hoje.
Em uma análise bastante preliminar, Pires estima que algo entre 20 e 25%
da alta de impostos fique comprometido com as rubricas do Orçamento que
vinculam despesa à receita, penalizando, desta feita, o resultado primário do
governo.
O problema das vinculações da despesa à receita aparece marcadamente no
setor de saúde, como aponta meu colega Bráulio Borges. Na verdade, o vínculo
retornará somente em 2024, por conta de a definição do dispêndio mínimo com
saúde passar a ser novamente 15% da Receita Corrente Líquida (RCL). Até o
presente ano, com a Emenda Constitucional do teto de gastos ainda vigendo, o
gasto mínimo com saúde está sendo corrigido pela inflação aferida pelo IPCA.
Segundo projeção de agosto do Ministério do Planejamento, o mínimo com
saúde passará de R$ 168,1 bilhões em 2023 para R$ 218,4 bilhões em 2024, um
aumento de R$ 50,3 bilhões (cerca de 30%). Por outro lado, num cenário no qual
o teto de gastos continuasse de pé no próximo ano, a despesa mínima com saúde
partiria dos R$ 168,1 bilhões em 2023 e atingiria R$ 176,5 bilhões em 2024
(aumento de R$ 8,4 bilhões), tendo em vista variação do IPCA de 5%. A mudança
na regra carimba um dispêndio mínimo adicional para a saúde na faixa de R$ 41,9
bilhões.
Na realidade, são dois os fatores que potencializaram esse aumento do
gasto obrigatório em saúde. Uma primeira ampliação decorre da própria mudança
da fórmula de cálculo. Ao apurar a despesa obrigatória com saúde em 2023, é
possível constatar que totaliza o equivalente a algo na faixa de 13,2% da RCL,
menor do que os obrigatórios 15% a vigerem a partir de 2024. A segunda expansão
ocorre em virtude da projeção de forte aumento na carga tributária para o
próximo ano. É importante ressaltar que, como lembra Borges, o gasto em saúde
sempre foi muito próximo ao mínimo constitucional obrigatório, e, portanto, a
regra em vigor faz muita diferença.
Tanto a institucionalidade do atual pacto federativo quanto a vinculação
de algumas despesas às receitas impedem o governo de se apropriar de todo o
montante relativo a um aumento de arrecadação. Grosso modo, todo aumento de
receita pública embute um “pedágio” ao governo federal. Em um cenário como o de
hoje, no qual a arrecadação pública está operando como a variável de folga para
o ajuste das contas públicas, os “pedágios” acabam encurtando o espaço de
manobra do governo de plantão. Assim, precisam ser repensados, debatidos e
negociados. Obviamente, a solução não é simplesmente eliminá-los, mas uma
revisão cuidadosa é evidentemente necessária.
*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre
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