O Globo
Manifestações da economia criativa, como o
Carnaval, deveriam estar no centro dos projetos de redução de desigualdades e
crescimento econômico do país
Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos aos 81
anos, em cima do trio dos Filhos de Gandhy, vestidos com o tradicional manto
azul e branco e turbantes, para celebrar os 75 anos do bloco de afoxé, que
homenageou o filho mais ilustre de Santo Amaro neste ano.
Ivete Sangalo, dona do hit do ano, em
parceria com Ludmilla, recebendo em seu trio Baby do Brasil, que já foi
Consuelo, travando o diálogo-síntese não só do Carnaval de 2024, mas do momento
atual do Brasil.
Conceição Evaristo no alto do carro alegórico
com a Velha Guarda da Portela, num tributo a “Um Defeito de Cor”, clássico
moderno da literatura brasileira, de outra mineira como ela, de outra geração,
Ana Maria Gonçalves.
São apenas três cenas, ocorridas em poucos dias, entre tantos encontros somente neste ano, em duas das centenas de cidades do país que param tudo por (pelo menos) quatro dias para a folia.
O carnaval é a expressão maior da identidade
brasileira, é aquilo que produzimos de único, que catalisa as atenções do resto
do mundo para o Brasil. O deste ano parece ter espanado os últimos resquícios
da pandemia e do obscurantismo que grassaram nos anos mais recentes.
Não é à toa que o bolsonarismo, como todo
movimento de característica reacionária, tenha procurado estigmatizar a cultura
como um todo, e o carnaval em particular, numa das muitas estratégias para
dividir a sociedade e cristalizar uma polarização política limitadora e
irracional.
Quem não se lembra do vídeo do “golden
shower”, que o agora investigado no inquérito da Abin Carlos Bolsonaro escolheu
a dedo como “símbolo” ainda no primeiro ano do governo do pai, quando o novo
coronavírus não estava nem no radar? Desde então, não faltaram, ano a ano,
“influenciadores” ou políticos bolsonaristas para tentar classificar o carnaval
como festa promíscua, destinada à destruição dos valores religiosos e
familiares.
De todas as descompressões por que passa o
país depois de 8 de janeiro de 2023, o restabelecimento de políticas culturais
pelo governo federal e o fim de uma plataforma voltada para marginalizar e até
criminalizar produtores culturais, artistas e empresários do setor certamente
foram das mais relevantes.
A economia criativa tem, junto à indústria da
transição energética, um dos maiores potenciais de crescimento econômico e
ganho de estatura global no Brasil hoje. Resgatar o reconhecimento
internacional que o Brasil já teve na música, graças a movimentos como a Bossa
Nova e a MPB, e explorar cada vez mais o potencial econômico de eventos
culturais — não só o carnaval, mas o São-João do Nordeste ou as festas do Boi,
com suas diferenças regionais — não deveria ser reduzido a um debate pobre e
infantil entre o que é de direita ou de esquerda, mas tratado como projeto
estratégico de promoção social e construção educacional e cívica.
O fato de o carnaval ser o sucesso que é, em
diversas manifestações — só o carnaval de rua tem configurações absolutamente
próprias a depender do estado —, a despeito da crônica desorganização, desses
debates políticos de quinta categoria e da infiltração da contravenção e do
crime justamente onde o poder público falha, mostra quanto o país poderia
alavancar seu desenvolvimento se desse a essa e outras expressões da
brasilidade o caráter de uma prioridade, e não de um feriado a mais no
calendário.
A sociedade, os empresários e os governos de
diferentes partidos parecem a cada ano despertar um pouco mais para o fato de
desprezarem um maná valioso. O tema da economia criativa e da cultura, como
veículos para a redução das múltiplas desigualdades que castigam o Brasil, tem
de ser central na próxima eleição municipal. Que esse seja um legado que vá bem
além da Quarta-Feira de Cinzas.
Concordo.
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