quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Vera Magalhães - A cultura é o melhor do Brasil

O Globo

Manifestações da economia criativa, como o Carnaval, deveriam estar no centro dos projetos de redução de desigualdades e crescimento econômico do país

Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos aos 81 anos, em cima do trio dos Filhos de Gandhy, vestidos com o tradicional manto azul e branco e turbantes, para celebrar os 75 anos do bloco de afoxé, que homenageou o filho mais ilustre de Santo Amaro neste ano.

Ivete Sangalo, dona do hit do ano, em parceria com Ludmilla, recebendo em seu trio Baby do Brasil, que já foi Consuelo, travando o diálogo-síntese não só do Carnaval de 2024, mas do momento atual do Brasil.

Conceição Evaristo no alto do carro alegórico com a Velha Guarda da Portela, num tributo a “Um Defeito de Cor”, clássico moderno da literatura brasileira, de outra mineira como ela, de outra geração, Ana Maria Gonçalves.

São apenas três cenas, ocorridas em poucos dias, entre tantos encontros somente neste ano, em duas das centenas de cidades do país que param tudo por (pelo menos) quatro dias para a folia.

O carnaval é a expressão maior da identidade brasileira, é aquilo que produzimos de único, que catalisa as atenções do resto do mundo para o Brasil. O deste ano parece ter espanado os últimos resquícios da pandemia e do obscurantismo que grassaram nos anos mais recentes.

Não é à toa que o bolsonarismo, como todo movimento de característica reacionária, tenha procurado estigmatizar a cultura como um todo, e o carnaval em particular, numa das muitas estratégias para dividir a sociedade e cristalizar uma polarização política limitadora e irracional.

Quem não se lembra do vídeo do “golden shower”, que o agora investigado no inquérito da Abin Carlos Bolsonaro escolheu a dedo como “símbolo” ainda no primeiro ano do governo do pai, quando o novo coronavírus não estava nem no radar? Desde então, não faltaram, ano a ano, “influenciadores” ou políticos bolsonaristas para tentar classificar o carnaval como festa promíscua, destinada à destruição dos valores religiosos e familiares.

De todas as descompressões por que passa o país depois de 8 de janeiro de 2023, o restabelecimento de políticas culturais pelo governo federal e o fim de uma plataforma voltada para marginalizar e até criminalizar produtores culturais, artistas e empresários do setor certamente foram das mais relevantes.

A economia criativa tem, junto à indústria da transição energética, um dos maiores potenciais de crescimento econômico e ganho de estatura global no Brasil hoje. Resgatar o reconhecimento internacional que o Brasil já teve na música, graças a movimentos como a Bossa Nova e a MPB, e explorar cada vez mais o potencial econômico de eventos culturais — não só o carnaval, mas o São-João do Nordeste ou as festas do Boi, com suas diferenças regionais — não deveria ser reduzido a um debate pobre e infantil entre o que é de direita ou de esquerda, mas tratado como projeto estratégico de promoção social e construção educacional e cívica.

O fato de o carnaval ser o sucesso que é, em diversas manifestações — só o carnaval de rua tem configurações absolutamente próprias a depender do estado —, a despeito da crônica desorganização, desses debates políticos de quinta categoria e da infiltração da contravenção e do crime justamente onde o poder público falha, mostra quanto o país poderia alavancar seu desenvolvimento se desse a essa e outras expressões da brasilidade o caráter de uma prioridade, e não de um feriado a mais no calendário.

A sociedade, os empresários e os governos de diferentes partidos parecem a cada ano despertar um pouco mais para o fato de desprezarem um maná valioso. O tema da economia criativa e da cultura, como veículos para a redução das múltiplas desigualdades que castigam o Brasil, tem de ser central na próxima eleição municipal. Que esse seja um legado que vá bem além da Quarta-Feira de Cinzas.

 

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