O Globo
O devido processo legal no Brasil é tão
intricado que praticamente impede a busca da justiça
Não é apenas que se tolera a coisa errada
para alcançar resultado que se considera certo. É pior. O que sobra do debate
em torno dos fatos da semana é o seguinte: no sistema jurídico e político
brasileiro, só dá para fazer a coisa certa pelos métodos errados.
E, se é assim, vamos mal. E não é de hoje.
O gabinete do ministro Alexandre de Moraes fez muitas coisas erradas. Mas o que queriam? — dizem seus defensores. Se fosse para seguir tudo direitinho, não haveria como combater a tempo e com a força necessária a ameaça de golpe contra a democracia.
Tudo direitinho, no caso, seria assim: a
polícia investiga, o Ministério Público denuncia, o tribunal julga. Alexandre
de Moraes acumula as três atribuições porque — é o argumento de seus apoiadores
— a polícia não investigava, e o Ministério Público não fazia nada. E o golpe
estava ali na esquina. Ou seja, teria sido necessário fazer um desvio pelo
caminho errado para dar no lugar certo.
Mesmo assim, a produção de provas pelo duplo
gabinete de Moraes — no STF e
no TSE —
foi, no mínimo, irregular. As conversas entre os assessores, combinando formas
de ajustar provas a pedido do ministro, são, no mínimo, constrangedoras. E uma
confissão. Eles sabiam que faziam a coisa errada, ou “descarada”, por isso
pensaram em meios de burlar as aparências. Fica implícito que perderiam tempo e
oportunidade de pegar os golpistas se seguissem o devido processo legal.
Foi, portanto, pior do que na Lava-Jato.
Nesta, promotor e juiz combinaram suas atuações. A justificativa também era
fazer a coisa certa: combater a grossa corrupção. Também tomaram atalhos que se
revelaram eficientes. Por exemplo: perguntar informalmente a uma autoridade
estrangeira se tinha alguma conta escondida por ali. Tinha? Ok, então segue o
ofício solicitando o acesso oficial a essa informação. Muitas autoridades
policiais e jurídicas, aqui e em países de sólida democracia, defendem essa
informalidade. E deu certo, não é mesmo? A corrupção foi apanhada e o golpe
impedido.
O que nos leva a uma terrível conclusão: o
devido processo legal no Brasil é tão intricado que praticamente impede a busca
da justiça. Daí os atalhos. O que piora o quadro. O recurso aos atalhos depende
da política, que muda como as nuvens.
A Lava-Jato foi “legalizada” pelos tribunais
superiores, inclusive o STF, em diversas decisões. O atalho mostrou-se largo e
certeiro. Levou a grandes empresas, ao Parlamento, aos governos nacional e
regionais, chegou muito perto de outras autoridades — uma sangria que saía do
controle. Os alvos reagiram, fechou-se o atalho, a operação foi considerada
ilegal. Mudou a lei? O processo? A jurisprudência? Nada. Apenas se formou um
outro arranjo político, com a participação do STF.
Foi também um arranjo político que permitiu a
instalação, no Supremo, do inquérito em que Alexandre de Moraes investiga,
denuncia e julga. A tentativa de golpe de Bolsonaro foi tão “tabajara”, tão
escrachada, que facilitou a formação de uma frente contrária a tal movimento. A
necessidade de eficiência contra forças poderosas — Bolsonaro ainda era o
presidente — justificou os atalhos.
Tudo bem, não é mesmo? Lula se elegeu,
assumiu, está governando, teremos eleições municipais livres. Mas até onde pode
ir a superautoridade de Moraes e do STF? Até alcançar quem mais?
A Corte entrou na política naquele e noutros
casos — como na disputa entre o presidente Lula e o Congresso em torno das
emendas parlamentares impositivas. O presidente gostou da intromissão do STF,
mas o Congresso retaliou negando verbas ao Judiciário. Tudo por atalhos
travestidos de formalidades.
Todos os Poderes se diminuem nesse ambiente.
O Supremo deixa de ser a Suprema Corte constitucional. O Executivo governa para
os seus. O Congresso quer o dinheiro, público, para fazer campanha e distribuir
entre os correligionários.
É, não dá mesmo para fazer tudo isso pelo
devido processo legal.
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