domingo, 24 de novembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Anistia para réus do 8 de Janeiro é inadmissível

O Globo

Investigação da PF revela que violência e invasão a sedes dos três Poderes foram parte da trama golpista

As revelações da Polícia Federal (PF) sobre a tentativa de golpe para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o indiciamento de 37 envolvidos na trama golpista, entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro e autoridades graduadas de seu governo, corroboram que é inadmissível o projeto que tramita no Congresso para anistiar quem participou da invasão às sedes dos três Poderes no 8 de Janeiro. Implicitamente, a proposta visa também a beneficiar Bolsonaro, inelegível devido à condenação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Crimes contra a democracia são gravíssimos. Não pode haver anistia nem para os participantes do 8 de Janeiro, nem para quem tramou um golpe de Estado.

A trama golpista, diz a PF, foi urdida dentro do Palácio do Planalto por auxiliares próximos de Bolsonaro. Um plano com o passo a passo da intentona, que previa o assassinato de Lula, do vice Geraldo Alckmin e do então presidente do TSE, Alexandre de Moraes, foi impresso nas dependências palacianas. As investigações mostram também que os acampamentos de onde partiram as manifestações violentas do 8 de Janeiro não foram protesto espontâneo de descontentes com a vitória de Lula. Faziam parte do plano para impedir a posse dele, depois tumultuar seu governo. De acordo com a PF, o general da reserva Mário Fernandes, preso na semana passada, funcionava como elo entre o Planalto e os acampados na frente do quartel-general do Exército em Brasília. A invasão e a vandalização dos prédios públicos, depois que a intentona fracassara por falta de apoio no Alto Comando do Exército, objetivavam gerar instabilidade ao governo recém-empossado.

A noite americana - Luiz Sérgio Henriques

O Estado de S. Paulo

A interdependência entre povos e nações sempre retorna, assombrando os isolacionistas e tornando provisório o triunfo dos autoritários

Digerir os resultados da eleição norte-americana, que confirmaram Donald Trump como caso incomum de presidente com mandatos intercalados e lhe deram o controle das Casas Legislativas, leva a pensar não só na sorte da democracia naquele país, como também na estrutura do mundo que tende a se desenhar nos próximos anos. Ficaram para trás ideias parciais sobre o trumpismo, como a de que só expressava o ressentimento da minoria branca e conservadora. Por esse argumento, a demografia variada e complexa por si só garantiria o sucesso dos democratas, se não necessariamente no anacrônico Colégio Eleitoral, pelo menos no voto popular.

A demografia não é um destino e não pode haver a certeza prévia da afirmação de nenhuma maioria. Um bilionário com variados problemas judiciais e dois impeachments, um dos quais por investir contra a transição pacífica de poder, conseguiu capturar o sentimento majoritário. Seria ele, e não uma mulher de classe média, a se mostrar em sintonia com o difuso sentimento de mal-estar contra as “elites”. Ironicamente, alguns disseram que, para tal manobra, Trump estaria muito bem equipado: ele, e não outro, encarna fielmente a figura do homem rico segundo a percepção de pobres e remediados, supostamente acima das tentações corruptoras do sistema. Por aí, também, se abriu uma surpreendente possibilidade de empatia com queixas e dificuldades dos “de baixo”.

O cruzado que Trump escolheu para a Defesa – Dorrit Harazim

O Globo

É uma temeridade deixar Pete Hegseth, um extremista, comandar um orçamento militar anual de quase US$ 900 bilhões

Aos 44 anos, o veterano Pete Hegseth mantém o corpanzil sarado dos tempos em que foi soldado de elite do Exército americano. Prestou serviços no Iraque, no Afeganistão e na abominável prisão militar de Guantánamo antes de se tornar personalidade cultuada da Fox News. Ali ancorava um dos programas de maior audiência e estridência do canal, até ser pinçado por Donald Trump para ocupar o cargo de futuro secretário da Defesa.

Em condições mínimas de razoabilidade, a indicação de Hegseth teria poucas chances até de chegar ao Senado, ainda menos de ser aprovada na sabatina — os legisladores democratas, somados a alguns republicanos pensantes, pareciam decididos a impedir tamanha insânia. Antes, porém, era preciso abortar outra indicação de Trump: a do agora ex-deputado federal Matt Gaetz como procurador-geral. A pressão contra Gaetz funcionou. Detestado por seus pares e retratado como predador sexual contumaz em relatório da Comissão de Ética da Câmara, ele desistiu do cargo antes de precisar ser sabatinado.

A direita e o radicalismo - Merval Pereira

O Globo

Os políticos que se mantiverem ao lado de Bolsonaro serão cúmplices de seus atos

A fronteira entre a direita democrática e o radicalismo bolsonarista já está traçada há muito tempo, mas até a revelação dos fatos recentes, que culminaram com a descoberta da insurreição programada meticulosamente por militares, era mais fácil fingir não ter nada a ver com a violência, e continuar a apoiar Bolsonaro. Como se o ex-presidente encarnasse apenas a face liberal do seu projeto político, e estivesse alheio aos golpistas que o rodeavam. Se formos ver a origem dessa influência militar no governo Bolsonaro, basta lembrar que eles se reuniam em uma espécie de bunker em Brasília, onde a presença de civis era rara. A interpretação otimista era que os militares estariam no governo para conter Bolsonaro, mas aconteceu exatamente o contrário. Eram militares experimentados, a maioria comandara as forças brasileiras no Haiti, vistos como democratas. Bolsonaro, no entanto, botou no bolso generais, almirantes, brigadeiros, numa subversão da hierarquia militar.

Não era o presidente civil que se impunha aos militares, mas um capitão de pouca instrução e história militar medíocre que usava a hierarquia militar para controlá-los, pois era o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas. Além das benesses do poder, que alimentam o corpo e a alma.

Muito perto do abismo - Míriam Leitão

O Globo

Os envolvidos na trama golpista estavam em postos estratégicos, alguns até recentemente. É preciso apurar e punir todos

O general Nilton Diniz Rodrigues chefiava até quinta-feira a 2ª Brigada de Infantaria de Selva de São Gabriel da Cachoeira. Na sexta-feira, foi substituído. À época dos fatos, ele era assessor direto do comandante do Exército, Freire Gomes. O coronel Fabrício Moreira Bastos foi chamado de volta de Israel, onde era adido militar, na sexta-feira. Ambos foram indiciados e vão ficar em funções administrativas aguardando os acontecimentos. O tenente-coronel Rodrigo Bezerra Azevedo era oficial do Estado-Maior prestando assessoramento ao comando de Operações Especiais. Não foi indiciado, mas preso na terça-feira e afastado das funções. Nomes como Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira chamam mais a atenção, mas o que realmente preocupa o Exército são os da ativa.

A Justiça precisa cuidar dos golpistas - Elio Gaspari

O Globo

Todo golpe fracassado é ridículo e todo golpe vitorioso é heroico. O de Jair Bolsonaro fracassou. Passados dois anos, o Brasil livrou-se das turbulências militares chacoalhadas a partir do Palácio do Planalto. Isso não é pouca coisa.

A Polícia Federal divulgou uma representação de 221 páginas, prendeu quatro pessoas, inclusive um general da reserva, e indiciou 37 cidadãos. Bolsonaro encabeça a lista na qual estão quatro ex-ministros, três dos quais com altas patentes militares. A Justiça decidirá o que fazer com cada um deles. Sabendo-se como o Judiciário baixou o pano da Operação Lava-Jato, é melhor economizar expectativas.

Pode-se olhar de duas maneiras para o golpe de Bolsonaro. Primeiro, por que fracassou. Depois, como ele tentou ficar de pé. Fracassou porque pretendia cancelar o resultado das urnas e, até por isso, não teve o apoio de comandantes militares relevantes.

Bernardo Mello Franco – A omelete do general

O Globo

Em 15 de julho de 2019, o Congresso viveu um dia de quartel. Militares de verde-oliva ocuparam os lugares dos deputados no plenário da Câmara. Foram escalados para assistir a uma sessão solene em homenagem ao Comando de Operações Especiais do Exército.

O então presidente Jair Bolsonaro participou da cerimônia. “O Brasil precisa de uma quimioterapia para que não pereça. Alguns poucos, pouquíssimos, ainda reagem. Mas serão convencidos pelo povo”, discursou. Ele exaltou os “ensinamentos da caserna” e se definiu como “terrivelmente patriota”. “Eu deixei o Exército em 1988, mas o Exército não me deixou”, disse.

O capitão estava enfezado com a imprensa, que reagia à sua intenção de nomear o filho Zero Três como embaixador nos EUA. “Um filho meu, tão criticado pela mídia... se está sendo criticado, é sinal que é a pessoa adequada”, esbravejou.

Por que o golpe de Bolsonaro não se consumou? – Luiz Carlos Azedo

Correio Braziliense

Na primeira versão, "oficial", Bolsonaro estaria abatido com a derrota eleitoral e pretendia tirar um "período sabático" nos Estados Unidos, não comparecendo à posse de Lula

Duas semanas antes de terminar o seu mandato, o ex-presidente Jair Bolsonaro compareceu a um jantar na casa do ex-ministro das Comunicações Fábio Faria, para o qual também foram convidados o então ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, presidente do PP, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli. O encontro antecedeu a exoneração de Faria da pasta, a pedido, o que viria ocorrer em 21 de dezembro, uma quarta-feira.

O vazamento do encontro ocorreu duas semanas após a conversa. Na primeira versão, "oficial", Bolsonaro estaria abatido com a derrota eleitoral e pretendia tirar um "período sabático" nos Estados Unidos, não comparecendo à posse de Lula. Nogueira, Faria e Toffoli tentaram convencer Bolsonaro a reconhecer a vitória do petista, para esvaziar os acampamentos bolsonaristas à porta dos quartéis, que defendiam uma intervenção militar e não reconheciam o resultado das urnas.

Contra o risco do autoritarismo - Rolf Kuntz

O Estado de S. Paulo

Golpismo homicida descoberto pela Polícia Federal reforça o valor preventivo da boa política econômica

O golpismo está mais ambicioso, no Brasil. Pode ir além da tomada do poder, anular mais de um século de evolução e jogar o País num passado inimaginável para muitos cidadãos. Assassinatos foram discutidos na conspiração recém-descoberta, segundo informou a Polícia Federal (PF). O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin estariam entre as vítimas. Mas nenhum golpe ocorreu, nem atentados, e isso poderia bastar, numa visão muito otimista, para se esquecer da história. Defensores da extrema direita comentaram o episódio como se nada tivesse ocorrido além de palavras. Deve encerrar-se o caso, portanto, como se os envolvidos apenas tivessem conversado numa tertúlia?

A PF preferiu tratar o caso como um problema real e incontornável – um plano de golpe com homicídios. Além do presidente e do vice-presidente da República, a violência deveria vitimar um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, também desafeto da direita radical. Houve adesão de figuras fardadas, mas o chefe do Exército rejeitou a conspiração. Na quinta-feira, foram indiciados por tentativa de golpe o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 suspeitos de conspiração, incluídos os generais Braga Netto e Augusto Heleno, o tenente-coronel Mauro Cid e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto.

O pós-golpe - Eliane Cantanhêde

O Estado de S. Paulo

O plano macabro de decretar Estado de Defesa, matar o presidente eleito, seu vice e o então presidente do TSE para deixar o caminho livre para uma ditadura de viés e comando militar no Brasil foi tão real que já previa personagens chaves para postos estratégicos no pós-golpe. Bolsonaristas certos nos lugares certos. Ou, melhor, pessoas erradas nos lugares errados.

Os generais de quatro estrelas Augusto Heleno e Walter Braga Neto, da reserva, que estavam no coração do governo de Jair Bolsonaro, seriam comandantes do Gabinete de Intervenção, que se colocaria acima dos poderes e autoridades da República para implantar o “novo regime”, mais ou menos nos moldes da comissão revolucionária de 1964.

O plano era matar Lula - Celso Rocha de Barros

Folha de S. Paulo

A ação foi interrompida por motivos alheios à vontade dos criminosos

Polícia Federal descobriu que o golpe dos bolsonaristas em 2022 incluía um plano de assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes.

O plano foi elaborado pelo general Mário Fernandes, que trabalhava na Secretaria-Geral da Presidência. Segundo a PF, o plano foi impresso no Palácio do Planalto e apresentado ao Jair no Palácio da Alvorada. Dois dias antes, Bolsonaro havia apresentado a minuta do golpe aos chefes das Forças Armadas.

O plano previa o recrutamento de seis assassinos, para os quais deveriam ser providenciados seis telefones celulares novos. A polícia descobriu que, nos dias seguintes, seis militares, com celulares recém-comprados, seguiram Alexandre de Moraes. As mensagens dos golpistas mostram que o atentado foi abortado na última hora porque uma sessão do STF foi suspensa.

Esbórnia orçamentária é ataque ao crescimento - Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Déficit zero não pode continuar a ser álibi da rataria que rói há séculos, sem dó, o baú patrimonial da nação

De repente, acorre à memória uma historinha infantil versejada: "Ratusca Boduça de Rafo Rafuça morava na roça / por voracidade, quis ir à cidade com toda essa troça / os cinco fedelhos de Rafo Rafelhos que filhos lhe são / pois lá na cidade tem uma comadre que habita o porão / da gorda ricaça Fifica Fogaça, que tem na despensa / mui ricas pitanças pra suas papanças e nem sequer pensa...". E adiante narra a ouvidos ainda inocentes um assalto sistemático de ratos à desprevenida Fifica Fogaça. Outro nome para o tesouro da "Viúva", mote de um arguto historiógrafo das mazelas nacionais.

Sobre a liberdade - Hélio Schwartsman

Folha de S. Paulo

Livro distingue liberdades negativas de positivas e toma partido das segundas

Gostei de "On Freedom", de Timothy Snyder. Ele parte de uma distinção radical entre liberdades negativas e positivas e toma partido das segundas.

Para Snyder, nós até podemos achar que somos livres quando o Estado não nos impõe restrições, mas a verdadeira liberdade é muito mais do que isso. Só somos realmente livres quando temos condições de fazer escolhas significativas para nós mesmos e para as comunidades em que vivemos. A liberdade é, para o autor, o valor que torna todos os outros valores possíveis.

Ao longo do livro, Snyder faz uma espécie de radiografia dos domínios que ele entende necessários para que possamos desenvolver as capacidades que nos permitirão tomar decisões de modo autônomo e fazer boas escolhas. Aí entram vários ingredientes, como acesso a boa informação, empatia e algum tipo de proteção contra a manipulação por algoritmos.

A última fronteira do bolsonarismo - Bruno Boghossian

Folha de S. Paulo

Diante de uma linha divisória tão nítida, alguns já escolheram ser apenas bolsonaristas

Há anos, o bolsonarismo faz a exibição de escabrosidades que testam os limites das elites políticas de direita. Pode ser uma defesa apaixonada da tortura, uma manifestação sombria de apreço pela ditadura, a sabotagem à vacinação, uma cruzada pela destruição institucional ou um extravio de joias milionárias vendidas como muamba.

Com a ressalva de um punhado de deserções, a fidelidade e o entusiasmo da direita por Jair Bolsonaro se mostraram mais do que firmes. Sobreviveram, inclusive, a uma derrota nas urnas atribuída a seu radicalismo. Por devoção genuína a esses princípios ou pragmatismo puro, os principais líderes políticos desse campo ficaram ao lado de um ex-presidente que nunca escondeu quem era.

Terrorismo militar e a direita tosca– Vinicius Torres Freire

Folha de S. Paulo

Gangue do Punhal Verde Amarelo era inepta, mas esse é o padrão de ataque à democracia

O plano de golpe dos militares bolsonaristas foi "fanfarronada", disse o senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), ex-vice de Jair Bolsonaro e general de Exército. Bravata, coisa de quem fantasia ter força. O plano "Punhal Verde Amarelo", de matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes seria "sem pé nem cabeça".

Mourão acertou, sem querer. Tosco é o termo benigno para descrever o grupo. Um general de Brigada, Mario Fernandes, alto funcionário do Planalto, era líder operacional do bando e de parte da malta do 8 de Janeiro. Perambulava na noite do palácio para imprimir um "plano infalível" de golpe, como gênio burocrata do mal de filme "D" (não tinha fax?). Coronéis e majores parecem semiletrados, de baixa qualificação profissional e moral, gente vulgar, boca-suja, violenta e paranoica.

Parece, portanto, o governo Bolsonaro. Tosco e daninho.

O que será de Bolsonaro - Luís Francisco Carvalho Filho

Folha de S. Paulo

Sistema judicial brasileiro é inepto, falho, preguiçoso

É com otimismo e curiosidade que se recebe a notícia do indiciamento de Bolsonaro e do seu entorno militar.

A demora é sinal de alerta. A anatomia da tentativa de golpe está exposta faz tempo. É só somar um fato aos outros. A revelação recente do plano de assassinar o presidente eleito, o vice e o presidente do TSE, por exemplo, acrescenta detalhes chocantes e sórdidos ao roteiro bolsonarista, mas não é essencial para a configuração dos delitos ou para a arquitetura da acusação.

Pouco mais de um ano depois do ataque do Hamas, o Tribunal Penal Internacional, moroso por natureza e sujeito a consideráveis pressões jurídicas e diplomáticas, emitiu ordem de prisão contra o primeiro-ministro de Israel Binyamin Netanyahu por crimes de guerra.

Jair Bolsonaro articulou uma série de eventos temerários para despertar a intervenção militar e um golpe de Estado com roupagem supostamente "constitucional" —o mais grave delito que se pode cometer. Faz quase dois anos, deixaram ele livre e solto, como interlocutor legítimo e não como delinquente atrevido e ameaçador.