Por Joelmir Tavares / Valor Econômico
Para o professor de filosofia Marcos Nobre,
papel global do Brasil e ameaça à democracia serão temas inevitáveis na corrida
eleitoral
A ofensiva do presidente dos Estados Unidos,
Donald Trump, sobre o Brasil e o papel a ser assumido pelo país diante da
tentativa de reconfiguração global tornarão inevitável que a política externa
seja debatida na eleição presidencial de 2026, afirma Marcos Nobre, professor
titular de filosofia política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
diretor do Centro para Imaginação Crítica, sediado no Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (Cebrap).
Nobre vê Jair Bolsonaro pressionado a
capitular e ungir como sucessor o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas
(Republicanos), considerado pelo analista o nome mais competitivo contra Luiz
Inácio Lula da Silva. Mas projeta um cenário em que a vaga de vice na chapa
seja destinada a alguém da família Bolsonaro, como esforço para garantir um
salvo-conduto para o ex-presidente, após o julgamento por tentativa de golpe.
Autor de livros como “Limites da Democracia”
(2022), o professor diz que o Brasil sofre de uma permanente ameaça golpista e
que nem a eventual prisão do ex-presidente e de outros militares encerraria a
necessidade de alerta. “Achar que a democracia está estabelecida é o tipo de
ilusão que não deveríamos ter”, afirma.
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: Que aspecto da conjuntura política atual, com o
cenário doméstico influenciado por ações dos EUA, mais chamam a sua atenção?
Marcos Nobre: São duas
questões inéditas e conectadas pelas atitudes do presidente americano: qual vai
ser a posição do Brasil na nova ordem global e de que maneira a reconfiguração
mundial afeta a política interna, em especial o julgamento em que o Brasil põe
militares e acusados de golpismo do banco dos réus.
Pela primeira vez, política externa se tornou
um tema de debate público e eleitoral importante no Brasil. Se os Estados
Unidos movimentam tropas e navios rumo à Venezuela, país que faz fronteira com
o Brasil, isso deve nos preocupar muito, só para dar um exemplo além do
tarifaço.
Ao mesmo tempo, o julgamento no Supremo
Tribunal Federal (STF) mostra a diferença fundamental entre a atitude dos EUA e
a brasileira. Tornamos o Bolsonaro inelegível, e o Judiciário americano não fez
isso com Trump. Quando forças políticas ou sociais ameaçam a democracia, ela
tem que ser defendida de modo vigoroso. Não dá para fazer uma defesa em
abstrato.
Valor: Quão sólido é o patamar atual da democracia no
Brasil?
Nobre: O fato de
o Brasil estar conseguindo fazer isso neste momento não garante nada. O projeto
golpista é permanente no Brasil, basta olhar a história. E não se encerra com a
eventual responsabilização dos acusados. Não sabemos qual vai ser o resultado
das eleições de 2026.
Valor: O senhor se alinha à visão de que é permitido
ao Judiciário adotar medidas excepcionais para lidar com tempos excepcionais?
Nobre: Excepcional não
pode ser medida de exceção. Não pode deixar de existir o devido processo legal
e o controle jurisdicional. Sobre a liberdade de expressão, não há nenhum tipo
de excepcionalidade. Está sendo aplicada a legislação existente. A extrema
direita usa a liberdade de expressão para destrui-la.
Valor: Como o senhor avalia o argumento de
bolsonaristas de que a anistia traria pacificação nacional?
Nobre: Não existe
anistia, em regime democrático, para crimes cometidos contra a democracia.
Todas as vezes que isso aconteceu na história do Brasil foi simplesmente a
incubação do golpe seguinte. Existe anistia para regimes autoritários, que
prescindem do devido processo legal.
“Coitadizar” pessoas que participaram de
tentativa de golpe de Estado é criminoso. Não eram “pobres inocentes” no 8 de
janeiro. E o mais hipócrita da parte da família Bolsonaro é que sempre atacaram
a anistia de 1979 [a crimes políticos cometidos na ditadura militar], como
sendo perdão a criminosos terroristas.
Valor: Voltando a Trump, o que está embutido nas
decisões dele que afetam outros países, a seu ver?
Nobre: Trump, com as
suas medidas, reconfigurou a ordem global. Ele retirou o véu de uma ordem que
já não estava mais funcionando, a do multilateralismo e de acordos como o de
Paris.
A tendência mais forte no momento é que se
formem três blocos neoimperiais: um com um polo nos Estados Unidos, outro na
China e talvez um na Europa. Seria importante a União Europeia se estabelecer e
servir como uma espécie de tampão entre os dois outros blocos, o que talvez
evite guerras generalizadas.
Valor: E qual deve ser o papel do Brasil nessa nova
ordem?
Nobre: O Brasil deve
construir coalizões com outros países do Sul Global, e coalizões não alinhadas.
Até agora, está tentando buscar uma posição não alinhada em relação aos três
blocos, mas não vi ainda uma organização de países, vital para melhores
condições de negociação. A brutalidade das ações do Trump é justamente isolar
os países.
Como vimos nas gravações, a disputa interna
na família Bolsonaro é muito violenta”
Valor: Não seria conflitante com essa posição de não
alinhamento o papel preponderante do Brasil no Brics, algo que está também no
pano de fundo das medidas de Trump?
Nobre: O Brasil deve
manter o seu papel em todos os fóruns de que participa, não só no Brics. O
ataque do Trump não tem nada que ver com Bolsonaro. Bolsonaro é só uma camada
superficial.
O que importa para o Trump é nos manter
dentro da armadilha neoextrativista, em que nós fornecemos toda matéria-prima
de baixo valor agregado para os poderes neoimperiais e compramos dos EUA todos
os serviços, principalmente os das big techs. Além disso, quer conservar a
hegemonia do sistema de pagamentos internacional. A preocupação dele é muito
mais com o Pix do que com o dólar, porque ele sabe que ninguém pode substituir
o dólar do dia para a noite.
Valor: Dadas as conexões longevas do deputado Eduardo
Bolsonaro com líderes da direita mundial, a articulação dele nos EUA não teria
sido subestimada no Brasil?
Nobre: Ele deu um
pretexto ao Trump, que apenas dá a impressão de que está cedendo ao lobby do
deputado. Não, ele [Trump] está simplesmente decidindo o que ele queria
decidir.
Como vimos nas gravações [da Polícia
Federal], a disputa interna na família Bolsonaro é muito violenta. Fazer coisas
como xingar o próprio pai mostra o grau de delírio em que se encontra Eduardo
Bolsonaro, talvez por acreditar que será candidato a presidente. É algo
incompreensível, mas eles têm compulsão a produzir provas contra eles mesmos.
Quando se fala de arbitrariedade do Supremo e absurdos desse tipo, é preciso
questionar qual foi a operação de busca que não resultou na apreensão de provas
contra os investigadas. Nenhuma. Ou seja, todas essas ações foram
fundamentadas.
Valor: Como a fragmentação interna na família e no
campo de oposição deve desembocar na eleição?
Nobre: O campo da
“direita sem medo”, que é aquela direita tradicional que não tem medo de se
aliar à extrema direita, mesmo com todos os riscos disso para a democracia, não
tem outra candidatura realmente competitiva a não ser a de Tarcísio de Freitas.
Tarcísio vai compor com a família Bolsonaro,
da mesma maneira que o prefeito Ricardo Nunes [na eleição municipal de São
Paulo], que inicialmente resistiu à indicação do vice, o coronel Ricardo Mello
Araújo, mas depois aceitou. A chantagem vai ser para ter um Bolsonaro na chapa.
Qual? Só tem o [senador] Flávio. [A ex-primeira-dama] Michelle e Eduardo foram
muito ventilados justamente para poupar o Flávio da exposição precoce.
Valor: Por que Tarcísio é forte?
Nobre: Tem uma
penetração importante no bolsonarismo, em todos os seus aspectos: militar,
religioso, econômico, moral. Além disso, ele é favorecido por uma questão
regional e pela presença no mundo digital. É diferente do Ratinho Jr., que está
pontuando bem nas pesquisas, mas não é uma figura nacional.
Valor: E se o cenário for o de uma candidatura da
família Bolsonaro e outras à direita?
Nobre: Não vale a pena
para eles a divisão. Desafiar o Tarcísio pode significar perder tudo. Para Jair
Bolsonaro, a presença do Flávio na chapa é uma garantia de que tudo será
tentado para indultá-lo, lhe dar uma graça ou tentar a anistia pelo Congresso.
Valor: Segundo a última pesquisa Genial/Quaest, Lula
retornou aos patamares de popularidade de dezembro, insuficientes para a
reeleição. Ele chega ao pleito competitivo?
Nobre: Não tenho a
menor dúvida. A questão é se o campo progressista vai ou não levar a sério o
fato de que do outro lado há uma candidatura competitiva e aprender as lições
do primeiro turno de 2022. Se começar aquela mitologia de que o Lula é
imbatível e vai ganhar no primeiro turno, aí é grave a situação.
Uma campanha só com base na defesa da democracia
não vai ganhar a eleição. Ela tem que mostrar alguma coisa a mais.
Valor: O senhor vê como um dos eixos de sucesso do
bolsonarismo a existência de um “partido digital”. A esquerda avançou nisso?
Nobre: Melhorou, mas é
incipiente e incapaz de combater a brutalidade do partido digital bolsonarista.
Lula faz um governo de minoria. O governo nem sequer foi capaz de garantir a
presidência e a relatoria da CPMI do INSS, que pode ser uma origem de muito
desgaste agora.
Valor: Qual o balanço de Lula 3?
Nobre: Reconstruir a capacidade de operação do Estado após a destruição de quatro anos de Bolsonaro foi um processo longo. Acontece que as pessoas votaram no Lula também para que ele desse uma imagem de futuro e questionam o que virá pela frente. Reconstrução parece uma coisa que vai para trás. O que é novo, além do feito extraordinário de aprovar a reforma tributária, é a isenção do Imposto de Renda e a taxação dos super-ricos. Essa pauta não foi colocada antes, nos governos do PT.
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