segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Após Trump, política externa pauta debate presidencial

Por Joelmir Tavares / Valor Econômico

Para o professor de filosofia Marcos Nobre, papel global do Brasil e ameaça à democracia serão temas inevitáveis na corrida eleitoral

A ofensiva do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre o Brasil e o papel a ser assumido pelo país diante da tentativa de reconfiguração global tornarão inevitável que a política externa seja debatida na eleição presidencial de 2026, afirma Marcos Nobre, professor titular de filosofia política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do Centro para Imaginação Crítica, sediado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Nobre vê Jair Bolsonaro pressionado a capitular e ungir como sucessor o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), considerado pelo analista o nome mais competitivo contra Luiz Inácio Lula da Silva. Mas projeta um cenário em que a vaga de vice na chapa seja destinada a alguém da família Bolsonaro, como esforço para garantir um salvo-conduto para o ex-presidente, após o julgamento por tentativa de golpe.

Autor de livros como “Limites da Democracia” (2022), o professor diz que o Brasil sofre de uma permanente ameaça golpista e que nem a eventual prisão do ex-presidente e de outros militares encerraria a necessidade de alerta. “Achar que a democracia está estabelecida é o tipo de ilusão que não deveríamos ter”, afirma.

A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: Que aspecto da conjuntura política atual, com o cenário doméstico influenciado por ações dos EUA, mais chamam a sua atenção?

Marcos Nobre: São duas questões inéditas e conectadas pelas atitudes do presidente americano: qual vai ser a posição do Brasil na nova ordem global e de que maneira a reconfiguração mundial afeta a política interna, em especial o julgamento em que o Brasil põe militares e acusados de golpismo do banco dos réus.

Pela primeira vez, política externa se tornou um tema de debate público e eleitoral importante no Brasil. Se os Estados Unidos movimentam tropas e navios rumo à Venezuela, país que faz fronteira com o Brasil, isso deve nos preocupar muito, só para dar um exemplo além do tarifaço.

Ao mesmo tempo, o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) mostra a diferença fundamental entre a atitude dos EUA e a brasileira. Tornamos o Bolsonaro inelegível, e o Judiciário americano não fez isso com Trump. Quando forças políticas ou sociais ameaçam a democracia, ela tem que ser defendida de modo vigoroso. Não dá para fazer uma defesa em abstrato.

Valor: Quão sólido é o patamar atual da democracia no Brasil?

Nobre: O  fato de o Brasil estar conseguindo fazer isso neste momento não garante nada. O projeto golpista é permanente no Brasil, basta olhar a história. E não se encerra com a eventual responsabilização dos acusados. Não sabemos qual vai ser o resultado das eleições de 2026.

Valor: O senhor se alinha à visão de que é permitido ao Judiciário adotar medidas excepcionais para lidar com tempos excepcionais?

Nobre: Excepcional não pode ser medida de exceção. Não pode deixar de existir o devido processo legal e o controle jurisdicional. Sobre a liberdade de expressão, não há nenhum tipo de excepcionalidade. Está sendo aplicada a legislação existente. A extrema direita usa a liberdade de expressão para destrui-la.

Valor: Como o senhor avalia o argumento de bolsonaristas de que a anistia traria pacificação nacional?

Nobre: Não existe anistia, em regime democrático, para crimes cometidos contra a democracia. Todas as vezes que isso aconteceu na história do Brasil foi simplesmente a incubação do golpe seguinte. Existe anistia para regimes autoritários, que prescindem do devido processo legal.

“Coitadizar” pessoas que participaram de tentativa de golpe de Estado é criminoso. Não eram “pobres inocentes” no 8 de janeiro. E o mais hipócrita da parte da família Bolsonaro é que sempre atacaram a anistia de 1979 [a crimes políticos cometidos na ditadura militar], como sendo perdão a criminosos terroristas.

Valor: Voltando a Trump, o que está embutido nas decisões dele que afetam outros países, a seu ver?

Nobre: Trump, com as suas medidas, reconfigurou a ordem global. Ele retirou o véu de uma ordem que já não estava mais funcionando, a do multilateralismo e de acordos como o de Paris.

A tendência mais forte no momento é que se formem três blocos neoimperiais: um com um polo nos Estados Unidos, outro na China e talvez um na Europa. Seria importante a União Europeia se estabelecer e servir como uma espécie de tampão entre os dois outros blocos, o que talvez evite guerras generalizadas.

Valor: E qual deve ser o papel do Brasil nessa nova ordem?

Nobre: O Brasil deve construir coalizões com outros países do Sul Global, e coalizões não alinhadas. Até agora, está tentando buscar uma posição não alinhada em relação aos três blocos, mas não vi ainda uma organização de países, vital para melhores condições de negociação. A brutalidade das ações do Trump é justamente isolar os países.

Como vimos nas gravações, a disputa interna na família Bolsonaro é muito violenta”

Valor: Não seria conflitante com essa posição de não alinhamento o papel preponderante do Brasil no Brics, algo que está também no pano de fundo das medidas de Trump?

Nobre: O Brasil deve manter o seu papel em todos os fóruns de que participa, não só no Brics. O ataque do Trump não tem nada que ver com Bolsonaro. Bolsonaro é só uma camada superficial.

O que importa para o Trump é nos manter dentro da armadilha neoextrativista, em que nós fornecemos toda matéria-prima de baixo valor agregado para os poderes neoimperiais e compramos dos EUA todos os serviços, principalmente os das big techs. Além disso, quer conservar a hegemonia do sistema de pagamentos internacional. A preocupação dele é muito mais com o Pix do que com o dólar, porque ele sabe que ninguém pode substituir o dólar do dia para a noite.

Valor: Dadas as conexões longevas do deputado Eduardo Bolsonaro com líderes da direita mundial, a articulação dele nos EUA não teria sido subestimada no Brasil?

Nobre: Ele deu um pretexto ao Trump, que apenas dá a impressão de que está cedendo ao lobby do deputado. Não, ele [Trump] está simplesmente decidindo o que ele queria decidir.

Como vimos nas gravações [da Polícia Federal], a disputa interna na família Bolsonaro é muito violenta. Fazer coisas como xingar o próprio pai mostra o grau de delírio em que se encontra Eduardo Bolsonaro, talvez por acreditar que será candidato a presidente. É algo incompreensível, mas eles têm compulsão a produzir provas contra eles mesmos. Quando se fala de arbitrariedade do Supremo e absurdos desse tipo, é preciso questionar qual foi a operação de busca que não resultou na apreensão de provas contra os investigadas. Nenhuma. Ou seja, todas essas ações foram fundamentadas.

Valor: Como a fragmentação interna na família e no campo de oposição deve desembocar na eleição?

Nobre: O campo da “direita sem medo”, que é aquela direita tradicional que não tem medo de se aliar à extrema direita, mesmo com todos os riscos disso para a democracia, não tem outra candidatura realmente competitiva a não ser a de Tarcísio de Freitas.

Tarcísio vai compor com a família Bolsonaro, da mesma maneira que o prefeito Ricardo Nunes [na eleição municipal de São Paulo], que inicialmente resistiu à indicação do vice, o coronel Ricardo Mello Araújo, mas depois aceitou. A chantagem vai ser para ter um Bolsonaro na chapa. Qual? Só tem o [senador] Flávio. [A ex-primeira-dama] Michelle e Eduardo foram muito ventilados justamente para poupar o Flávio da exposição precoce.

Valor: Por que Tarcísio é forte?

Nobre: Tem uma penetração importante no bolsonarismo, em todos os seus aspectos: militar, religioso, econômico, moral. Além disso, ele é favorecido por uma questão regional e pela presença no mundo digital. É diferente do Ratinho Jr., que está pontuando bem nas pesquisas, mas não é uma figura nacional.

Valor: E se o cenário for o de uma candidatura da família Bolsonaro e outras à direita?

Nobre: Não vale a pena para eles a divisão. Desafiar o Tarcísio pode significar perder tudo. Para Jair Bolsonaro, a presença do Flávio na chapa é uma garantia de que tudo será tentado para indultá-lo, lhe dar uma graça ou tentar a anistia pelo Congresso.

Valor: Segundo a última pesquisa Genial/Quaest, Lula retornou aos patamares de popularidade de dezembro, insuficientes para a reeleição. Ele chega ao pleito competitivo?

Nobre: Não tenho a menor dúvida. A questão é se o campo progressista vai ou não levar a sério o fato de que do outro lado há uma candidatura competitiva e aprender as lições do primeiro turno de 2022. Se começar aquela mitologia de que o Lula é imbatível e vai ganhar no primeiro turno, aí é grave a situação.

Uma campanha só com base na defesa da democracia não vai ganhar a eleição. Ela tem que mostrar alguma coisa a mais.

Valor: O senhor vê como um dos eixos de sucesso do bolsonarismo a existência de um “partido digital”. A esquerda avançou nisso?

Nobre: Melhorou, mas é incipiente e incapaz de combater a brutalidade do partido digital bolsonarista. Lula faz um governo de minoria. O governo nem sequer foi capaz de garantir a presidência e a relatoria da CPMI do INSS, que pode ser uma origem de muito desgaste agora.

Valor: Qual o balanço de Lula 3?

Nobre: Reconstruir a capacidade de operação do Estado após a destruição de quatro anos de Bolsonaro foi um processo longo. Acontece que as pessoas votaram no Lula também para que ele desse uma imagem de futuro e questionam o que virá pela frente. Reconstrução parece uma coisa que vai para trás. O que é novo, além do feito extraordinário de aprovar a reforma tributária, é a isenção do Imposto de Renda e a taxação dos super-ricos. Essa pauta não foi colocada antes, nos governos do PT.

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