Folha de S. Paulo
Autorização para processar e julgar
legisladores viola princípio de separação dos Poderes
Inafastabilidade do controle jurisdicional é garantia processual do cidadão
Batizada pelos deputados de "PEC das Prerrogativas", a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/21, aprovada em dois turnos pela Câmara dos Deputados na última quarta-feira (17), com ampla maioria de votos, recebeu da imprensa o apelido de PEC da Blindagem —exatamente por exigir autorização da Câmara dos Deputados ou do Senado para que o Supremo Tribunal Federal (STF) possa processar e julgar deputados e senadores pela prática de eventuais crimes. Dita medida legislativa padece de dupla inconstitucionalidade.
A nossa vigente Constituição consagrou a
doutrina da separação
de Poderes de Montesquieu, como forma de evitar que o poder fique
concentrado em um único centro, ao mesmo tempo em que deve funcionar como um
sistema de freios e contrapesos capaz de garantir a necessária limitação do
poder conformadora do conceito de Estado de Direito. Somado ao elemento
democrático legitimador a priori do poder, esse mecanismo configura o
específico modelo de organização política aqui adotado, a saber: o Estado
democrático de Direito.
Como princípio estruturante do ordenamento
político-jurídico da República, a separação de Poderes vem protegida pela Lei
Maior como cláusula pétrea: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda
tendente a abolir: III - a separação dos Poderes (CF art. 60, § 4º, III).
Impossível, portanto, sua disposição por parte do poder político. Somente por
isso a tal PEC da Blindagem já poderia ser considerada inconstitucional.
A Constituição, porém, vai além e explicita
de forma a não deixar margem para dúvida a competência por ela conferida ao
Poder Judiciário, afirmando, ademais, a sua indisponibilidade por parte do
legislador infraconstitucional: "a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito" (CF art. 5º, XXXV).
Como se vê, cabe ao Poder Judiciário o
exercício da função jurisdicional, a qual consiste em verificar e decidir,
quando provocado, acerca da violação ou ameaça a direito, sem que ninguém, nem
mesmo o legislador democrático, possa lhe impedir de fazê-lo.
Qualquer tentativa nesse sentido significa
atentar contra o funcionamento de um dos Poderes da República, o que poderia
configurar até mesmo, em última análise, tentativa de abolição do Estado
democrático de Direito via Parlamento.
Contudo, a Carta não protege somente a
competência do Poder Judiciário e o exercício de sua função precípua: a inafastabilidade
do controle jurisdicional configura uma garantia processual
fundamental do cidadão, consistente no direito de acesso à jurisdição diante de
violação ou ameaça a direito. Trata-se da garantia constitucional do direito de
ação conferido a cada cidadão individualmente considerado ou em contexto
grupal.
Nesse sentido, tenha-se em mente que as
condutas humanas tipificadas hipoteticamente como crime, uma vez praticadas por
alguém, atingem não apenas e imediatamente a pessoa da vítima, mas toda a
sociedade.
Como consequência, os indivíduos que vivem
sob sua égide têm o direito de buscar a punição do infrator pelo crime
cometido, o que se dá por meio da própria sociedade política organizada, isto
é, do Estado, através de um órgão autônomo e independente, que é o Ministério
Público. Também essa garantia fundamental acha-se protegida como cláusula
pétrea: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV - os direitos e garantias individuais (CF art. 60, § 4º, IV).
Está, pois, subtraída ao poder dispositivo do
legislador. Resta evidenciado, portanto, que a PEC da Blindagem é duplamente
inconstitucional e, se aprovada pelo Senado e posteriormente promulgada, deve
ser assim declarada pela Suprema Corte, uma vez provocada.
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