O Globo
Diabo. Demônio. Satanás. Os três nomes do
coisa-ruim foram invocados por deputados na noite de quarta-feira. Faltou
citarem Tinhoso, Asmodeu, Lúcifer, Capiroto, Cramunhão, Belzebu...
Numa semana cheia de assuntos urgentes, a
Câmara parou para debater o projeto que cria a bancada cristã. A ideia foi
apresentada pelos líderes das frentes católica e evangélica. Eles se uniram
para tentar emplacar uma nova instância de poder subordinada à fé.
A proposta significa um retrocesso em múltiplas dimensões: atropela a laicidade do Estado, discrimina adeptos de outras religiões, põe a Bíblia à frente da Constituição.
No texto, os deputados Gilberto Nascimento e
Luiz Gastão afirmam que os cristãos são 80% da população brasileira e “desejam
ver representados, no Parlamento, seus princípios éticos e espirituais”. Eles
acrescentam que a bancada garantirá “maior articulação e visibilidade às pautas
que defendem”, como se as igrejas já não tivessem força para promover seus
interesses em Brasília.
O projeto reivindica a criação de uma bancada
oficial, com direito a votar nas reuniões de líderes e a pedir a palavra
durante as sessões. Na prática, o grupo funcionaria como um partido político,
porém com delegação divina e não do eleitor.
Apesar de usarem o nome de Deus, os articuladores
da proposta cultivam ambições bem terrenas. Querem mais poder para impor suas
pautas e bloquear projetos que contrariem a pregação de padres e pastores.
“Com a bancada cristã, o movimento
conservador se organiza. O movimento conservador ganha força neste plenário”,
celebrou o dublê de deputado e pastor Otoni de Paula. O bolsonarista Bibo Nunes
tachou os críticos da ideia de “comunistas” que “não acreditam em Deus”. “Criem
a bancada do demônio”, provocou.
Os autores do projeto garantem que a bancada
cristã “não tem caráter excludente”. Mas não explicam por que judeus,
muçulmanos, espíritas, umbandistas e agnósticos não teriam direito a uma
representação semelhante na Câmara. Os deputados também dizem se inspirar nas
bancadas negra e feminina. Conversa fiada. Negros e mulheres são historicamente
subrepresentados no Congresso, o que nunca aconteceu com os cristãos.
O debate de quarta deu uma amostra do que vem
por aí. A deputada Bia Kicis balançou o espantalho do fechamento de igrejas e
da perseguição a religiosos. O deputado Reinhold Stephanes Júnior chamou o PSOL
de “partido satanás” e disse que a sigla “defende valores que só o diabo
defende”.
Mais cedo, um misto de culto e reunião
política escancarou as intenções da turma. O bispo Marcelo Crivella entoou um
louvor em defesa da anistia aos golpistas, incluindo o ex-presidente Jair
Bolsonaro. “O batom na estátua não apaga a esperança”, cantarolou.
Com apoio de Hugo Motta, o projeto que cria a
bancada cristã teve a urgência aprovada por 398 votos a 30. Ao ser alertado de
que o texto é inconstitucional, o presidente da Câmara se esquivou: disse que o
mérito só será examinado depois.

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