Passou seus últimos anos escrevendo, com
amargura e esperança, sobre várias coisas. Razão (e fé, por que não?) da sua
esperança seria a exuberância promissora que via na vida popular brasileira, em
movimentos e organizações civis da nossa cultura e cidadania. Como razão
moderadamente cética de sua amargura, a carência de vocação pública dos
políticos sistêmicos da democracia do Brasil atual, aos quais, mais de uma vez,
referiu-se (sem deixar nunca de reparar em exceções), como “liliputianos”. É
essa segunda dimensão de seu modo de ver a política recente que evoco para
escrever este artigo.
A reputação de autor não dispensava Werneck de uma renitente, teimosa, vontade própria de ator. Quando usava o adjetivo metafórico que mencionei, ele parecia ser ao mesmo tempo Swift e Gulliver. A constante busca do ator emancipatório que marcou o seu trabalho intelectual levava-o a retratar sinteticamente a atitude política dos políticos reais do Brasil atual num patamar bem abaixo, em termos de motivações públicas, daquele em que estaria Gulliver, o personagem famoso de Swift, se acaso vivesse realmente entre nós, com sua estatura comparada às dos atores reais. Além da distância esperada, objetivamente inevitável, entre romance e realidade, haveria o flagrante de um declínio, em comparação com atores reais de outros contextos. Declínio cuja explicação poderia estar na conduta.
Swift, o escritor do romance, viajou nas
nuances do seu personagem, cuja grandeza em Liliput, ilha de pequenos
habitantes, é pequenez em Brobdingnag, ilha de gigantes. Ilhas antagônicas,
ambas imaginárias. Traços e virtualidades exóticas, que a literatura imagina,
sem precisar dissolver ou resolver.
Para Werneck, crítico da política pela práxis da ciência social, o “ponto” era não tanto a relatividade das estaturas de atores, mas a da vida social e política, vista na comparação de interlocuções e interações em várias ilhas. Realidades seriam melhor compreendidas por comparação do que por identificação ou extrapolação. Caberia à arte da política discernir o que são projeções da imaginação solta e o que são desejos possíveis de realizar. Atuar politicamente no Brasil, ou em qualquer lugar, é viajar por várias ilhas e entre elas tecer o fio da vida, um liame de valores em comum. Trazer, ao terreno onde o poder circula, a esperança da razão e da fé na exuberância do social exorciza, dentro do possível, a amargura. O liame da grande política estimula atores de várias estaturas, modelando-os com desafios que ela transporta ao cotidiano da pequena política. As estaturas crescem com esses desafios, estacionam se os desafios são raros, ou diminuem com o cansaço velhaco resultante da sua ausência.
Política ilhada e política conectiva
O introito veio para comentar algo que se
passa, neste momento, entre Minas Gerais e Brasília. Envolve o destino político
imediato do senador Rodrigo Pacheco, que foi presidente do Senado entre os anos
de 2021 e 2024. Antes de chegar ao endereço do assunto, acionemos um pouco de
memória.
Com o fim da fase crítica da pandemia, a
política também precisava de vacina. Sob pressão do assédio extremista à
democracia - orquestrado, desde 2019, dentro do palácio de governo - travou-se
uma luta áspera entre um risco de metástase e uma hipótese de cura. O desfecho
das eleições de 2022 trouxe desafios de convalescença e recomeço. Mas o
tratamento político estagnou, nos dois anos seguintes. A política brasileira
ilhou-se e estagnou num ponto onde se passou a preparar 2026 como revival de
2022. Colhemos agora, em 2025, o cansaço cético de uma velhice política, na
qual desdobrou-se a estagnação.
O papel institucional e político do Senado
durante a tormenta pós-pandemia não foi pequeno. Aquela Casa, sob o comando
conectivo de Rodrigo Pacheco, moderou a erosão da relação republicana entre
Executivo e Legislativo, que prosperava na outra Casa, dirigida por Artur Lira.
Ao contrário deste último (que foi reeleito presidente da Câmara, em 2023, após
a posse de Lula, pela aclamação de praticamente todas as bancadas partidárias
ali atuantes), Pacheco, naquele momento, reelegeu-se vencendo uma militante
oposição bolsonarista que se reuniu em torno da candidatura do senador Rogério
Marinho. Ali não houve conciliação possível com uma direita vitaminada pelas
urnas e disposta ao confronto. A razão disso é de uma obviedade esquecida,
apesar do pouco tempo passado. É que nos dois anos anteriores - os iniciais da
gestão de Pacheco - ali não houvera flerte populista com os arroubos despóticos
do Executivo. Sem abandonar uma postura moderada, a política do Senado fez a
resistência institucional sem percorrer o caminho pantanoso da oscilação entre
governismo e oposição. A conexão ampla era um obstáculo que precisaria ser
removido para que uma partitura golpista pudesse ecoar.
A pedra no caminho funcionou contra o golpe,
mesmo tendo eficácia limitada contra o apetite patrimonial pedestre que a
performance da cúpula da Câmara atiçava através de espaços ocupados no
Executivo. Este, barrado seu intuito original, teve que priorizar um plano
eleitoral e o fez terceirizando o governo. Era pedir demais o Senado ficar
imune à tentação e aprofundar o contraponto. O desarme do golpe não estenderia
de modo automático, contra outros males da República, o efeito daquela vacina.
Conciliou com a tradição. A volta de Alcolumbre à presidência do Senado, com
apoio de Pacheco, revelou esse limite. Porém, a frente imunizante formada no
Senado foi imprescindível ao alívio democrático.
Setores progressistas desvalorizam essa
memória complexa e positiva. Faltam matizes em suas críticas ao Congresso.
Pregam, com razão, prioridade às eleições ao Senado, em 2026. Razão frágil se
for apenas reativa ao objetivo bolsonarista de concentrar esforços ali, após a
condenação judicial de seu chefe.
Uma prioridade estratégica em diálogo tenso
com a pequena política
Uma eventual tentativa das forças
democráticas de adotarem a prioridade às eleições ao Senado com disposição para
um duelo polarizado, subordinado à prioridade maior de reeleger o presidente da
República é puro voluntarismo, além de estreiteza política. Ainda que a imagem
do presidente se recupere a ponto de garantir a reeleição (e ele merece o
reconhecimento de que tem operado bem nessa direção, não desperdiçando a
fortuna que lhe sorri) a inclinação conservadora do eleitorado é fato já bem
mensurado. Nada é imóvel e há espaço para a vontade política, a médio prazo.
Mas a curto prazo inexiste sinal de que esse eleitorado inflexionará à
esquerda, mesmo ao centro, em eleições legislativas.
É fato que eleições ao Senado ocorrem em
sistema majoritário de apuração de votos, o qual é sensível a polarizações. Mas
elas se dão, objetivamente, no plano dos estados. Embora o fator nacional
influa, a lógica polarizadora principal é a da disputa pelo poder estadual, que
organiza a formação das alianças e de chapas majoritárias que delas derivam.
Arranjos estaduais moldam o preparo do cardápio de candidaturas e, via de
regra, os governadores são peças-chave nesses arranjos. A força relativa de
partidos nos municípios é fator relevante e afeta os movimentos dos
governadores. Mas de quantos governadores dispõe a esquerda? Em quantos estados
ela tem quadros competitivos em eleições majoritárias? Em quantos o número de
seus prefeitos permite-lhe um protagonismo? As respostas a essas três perguntas
indicam que não pode ser “de esquerda” grande parte do plantel de candidatos
capazes de não só serem confiáveis, no exercício do mandato, se se tratar de garantir
que o Senado não seja arrastado a aventuras golpistas, mas de, além disso,
vencerem a eleição.
Por outro lado, estarão em jogo duas vagas ao
Senado em cada estado. Isso cria a expectativa de que o lulopetismo possa
eleger vários senadores, o que alimenta uma aposta em radicais polarizações,
pelas quais cada “lado” possa ficar com uma das vagas. Na hipótese dessa lógica
dar certo nas urnas, a projeção do cenário do Senado, na próxima legislatura,
seria uma ultrapolarização em que o campo lulopetista teria a condição de
segunda força e arrastaria, na sua cauda, parlamentares dispersos de centro e
mesmo mais à direita, desde que adversários da extrema-direita. Apostar nisso é
estratégia oposta à de alcançar uma relativa pacificação política como condição
para uma competição política mais plural, a médio prazo. O cenário imaginado,
ao menos até 2030, seria o prolongamento do tipo de confronto que se deu em
2018, 2022 e que estaria já contratado, para 2026.
Já pela via da moderação política, a ascensão
ao Senado de quadros aptos a criar vacinas contra o golpismo extremista passa
por ajustamento a circunstâncias políticas estaduais e por recrutar esses
quadros entre democratas de centro e de centro-direita. Aí o sentido não seria
formar, no Senado, um “polo anti-bolsonarista” superior, por adição e força de
gravidade, a um polo antilulista e antipetista. O sentido seria propiciar
maioria democrática ampla, para isolar a extrema-direita e impedi-la de
polarizar, de fato. Mais ou menos o obtido no Senado após as gestões de Rodrigo
Pacheco. A governabilidade, até aqui, do Lula 3, deve muito ao influxo residual
daquela articulação política.
Rodrigo Pacheco como caso exemplar
O caso do senador Rodrigo Pacheco faz de
Minas Gerais um estado que teria já meio caminho andado na arquitetura dessa
cobertura vacinal da política por alianças que levem em conta a preservação do
Senado como fator moderador, que democratas gregos e troianos dizem ser
prioridade.
Nesse sentido, seria de esperar que a
reeleição de Pacheco interessasse muito não só a eleitores mineiros, mas a
operadores da política democrática, em Minas e em todo o país. Se presente o
interesse convergente, a ele se juntaria o histórico eleitoral recente do
personagem. A não-confirmação prática dessa “razão razoável” remete-nos à
alusão werneckiana às aventuras de Gulliver na ilha de Liliput.
As sinalizações que nos chegam até aqui, pela
imprensa especializada nacional, são de que a candidatura do senador à
reeleição estaria descartada, não por terceiros, mas por ele próprio. Estranho
é não se fixar uma razão explicativa para essa suposta decisão. Mais estranho
ainda é não haver comentários de partidos ou políticos (mineiros ou não),
aventando a pertinência de uma reavaliação. Em vez disso, cogita-se que ele
“preferiria” ir para o STF (se não houvesse no caminho um Messias), mas estaria
avaliando o convite do presidente Lula para que seja candidato a governador.
Interessa ao argumento deste artigo o que têm dito (ou deixado dizer), atores
relevantes para o caso em questão.
Guilherme Kassab, presidente nacional do PSD,
partido do senador, não inclui a reeleição de Pacheco entre prioridades, nas
entrevistas em que é perguntado sobre a política nacional, ou mesmo a mineira.
Refere-se, no máximo, ao que poderia ser uma pretensão legitima (caso o senador
decidisse por ela). Coloca a hipótese num plano abaixo do da candidatura de
outro quadro partidário, Alexandre Silveira, ministro de Lula. Sobre o governo
do Estado vinha manifestando inclinação a apoiar a candidatura do também
senador Cleitinho, um jovem político eleito como um outsider, com viés
fortemente populista, pelo Republicanos, partido do governador Tarcísio de
Freitas. Mas na semana passada Kassab anunciou a filiação ao partido do atual
vice governador Mateus Simões, migrante do NOVO. Consta que Simões alimenta
expectativa de candidatar-se ao governo, com apoio do governador Zema, embora
tenha baixo desempenho em pesquisas (6% pelo Big Data, há duas semanas), ao
contrário de Cleitinho, que as lidera. Sua ida para o PSD permite especular que
se busca palanque estadual para a virtual candidatura presidencial de Ratinho
Jr, o plano B de Kassab, para não deixar o partido (hoje ampliado com perfil
consistente de centro democrático, distinto do centrão) dividir-se diante da
chance de condicionamento bolsonarista forte da hipotética candidatura de
Tarcísio. Nessa conta o nome de Pacheco não aparece.
Quem lembra dele é Lula, o que conta pontos
para o critério (ou ao menos o faro) político do presidente em não apostar suas
principais fichas num estado como Minas num outsider qualquer. Mas lembra de
Pacheco para tentar fazê-lo candidato ao governo, não para a reeleição. A
missão de disputar uma das vagas mineiras no Senado, o PT parece destinar à
prefeita de Contagem, quadro histórico do partido.
A disposição de Lula não ameniza as
incertezas sobre o futuro político do ex-presidente do Senado. Ao lado do
interesse presidencial na sua candidatura, noticia-se também um “plano B” do
presidente e/ou do PT mineiro para as eleições ao governo do Estado. Chama-se
Alexandre Kalil, ex-prefeito de Belo Horizonte. Tendo disputado o governo em
2022 pelo partido de Kassab, ele acaba de visar passaporte ao continente da
esquerda, filiando-se ao PDT. É o segundo colocado numa sondagem do Big Data,
bem abaixo de Cleitinho e um pouco acima de Pacheco. Logo, o convite do
presidente não exclui que haja um segundo palanque pela sua reeleição, com um
viés outsider, inseparável da persona política de Kalil.
É politicamente explicável. Se Lula quisesse
ou pudesse comprometer-se com uma relação exclusiva com Pacheco daria um tiro
no pé. Na mesma sondagem, num cenário sem o nome do ex-prefeito de BH, suas
intenções de voto migram bem mais para Cleitinho do que para Pacheco.
Populismos afinam-se no chão da realidade eleitoral mesmo que populistas rivais
não queiram. Uma análise realista não pode supor Lula desdenhando o apoio de
Kalil. Precisará dele, para vencer o pleito nacional em Minas.
O mesmo realismo deve informar o senador
Rodrigo Pacheco sobre as dificuldades eleitorais maiores que enfrentará se
topar uma candidatura ao governo do que teria na busca da reeleição. Se não
topar, a explicação não pode ser por aí. Poderá estar no desinteresse pessoal,
mas as circunstâncias citadas acima sugerem também um bloqueio, no plano das
injunções políticas, incluindo as de seu partido.
Em consequência disso, a cogitação da
candidatura de Pacheco ao governo estadual levaria a uma mudança de partido. A
simultaneidade de duas decisões difíceis não é trivial para um político que
conserva um perfil muito distinto do de um outsider. A pergunta que cabe aqui
é: valerá a pena?
Se é altamente duvidosa a resposta se se
pensar apenas na carreira política do senador, haveria mais luz sobre ela se o
olhar for alçado para além de Minas e enquadrar os interesses eleitorais de
Pacheco, de Lula, do PT e do PSD, o futuro de Minas e do país numa análise mais
abrangente, que contemple, inclusive, a importância estratégica da eleição ao
Senado para a qualidade e a sustentabilidade da democracia brasileira. Com a
questão assim iluminada, a resposta seria não, não vale a pena.
A realidade de injunções da pequena política
parece dispensar essas luzes. A pequena política tem razões que a razão
republicana desconhece. Queixas não cabem aqui. Razões da pequena política são
legítimas e também têm seu valor. E por elas, ao que parece, os eleitores mineiros
não serão chamados a decidir se Pacheco ficará no Senado. É a política como ela
é. Imprescindível, como é.
Há, porém, outra pergunta, menos propensa a
ser respondida com resignação. É realista democratas abrirem mão de quadros
moderadores no atual momento da política nacional e murá-los em disputas por
executivos estaduais com improvável êxito, ainda que o estado tenha o porte de
Minas Gerais?
Continuar essa conversa aqui seria falar
apenas do futuro de um ator. A conversa necessária é mais abrangente. É sobre
um script que ganha vida na realidade e busca um ator.
Vontade e realidade
O Brasil precisa virar a página da década
perdida no maniqueísmo político. Requer moderação republicana, bem escasso nas
prateleiras da elite política. Política personalista cria ilhas individualistas
numa sociedade moderna indisposta com a política. Trunca o processo democrático
de competição e participação. Denuncia e usa, alternadamente, o
patrimonialismo. Evoca sucupiras fora de tempo.
Deixemos de “entretantos” e vamos aos
“finalmente”: os estados onde a escalação para o Senado excluir quadros de
política preventiva contra golpismos e populismos são lugares de garimpo de
políticos dispostos a correr riscos e praticar política grande na disputa
majoritária nacional. Sim, é a volta do script da terceira via, que a sucção
bipolar engoliu a ponto da figura política que o protagonizou em 2022 não estar
disponível hoje para perseverar. Obviamente não é para vencer as eleições. É
para publicizar a mensagem da moderação e não deixar que o primeiro turno
transcorra apenas nos desvãos de uma polarização estéril e perigosa, enquanto a
disputa pelo Legislativo segue cânones de velhos hábitos. E para a votação do
terceiro excluído alcançar dois dígitos.
Como sabemos, pela experiência de 2022, uma
candidatura assim não precisa ameaçar arranjos políticos estaduais dos partidos
porventura envolvidos. Nem precisa antecipar suas opções no segundo turno. São
as duas condições para transitar. E para partidos como o PSD, o MDB e o PSDB
pode ser um modo da disputa presidencial ser alento, também, aos interesses de
reforçar suas bancadas no Legislativo, o que dependerá da candidatura ter um
discurso político.
Apesar de reconhecer as óbvias dificuldades,
é preciso reconhecer também que tudo é incerto, mas que há vida política além
dos polos e além do chamado centrão. Como ocorreu em 2022. Não há razão para
pensar que o espaço hoje é menor que o daquele momento. Pelo contrário.
Hoje, felizmente, não há mais perigo de
golpe. O bolsonarismo, mesmo com bancada aguerrida, não tem mais os recursos de
poder do tempo em que seu chefe estava nele. Isolou-se mais, com a condenação
judicial e as incursões de Eduardo Bolsonaro nos EUA. O lulismo, por outro
lado, tem no Congresso trânsito menor do que em 2022. A recuperação da imagem
do presidente deixa-a, até aqui, em nível próximo ao daquele momento. São
fatores favoráveis a uma articulação de um centro "nem, nem". E já há
esforços programáticos nessa direção - como o do MDB - que buscam fazer o “nem,
nem” ir além da negação dos polos. Falta uma encarnação.
Estudar incertezas da política potencializa desejos de mudança. O cansaço, detectado por especialistas, de parte do eleitorado com a linguagem que emula sucupiras é efeito parasita da polarização sem causa pública. Embora ilhas dificultem conexões, não se consegue inaugurar o cemitério da vida política, que segue na estrada, podendo converter cansaço em esperança.

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