sexta-feira, 21 de novembro de 2025

A saída é o federalismo cooperativo, por Fernando Luiz Abrucio*

Valor Econômico

É preciso ter articulação institucionalizada, constante, com planejamento conjunto e aprendizado mútuo entre os entes para se combater o crime organizado

A trajetória do projeto de lei antifacção na Câmara Federal foi uma estrada pavimentada por erros. A escolha politizada do nome do relator parece ser o maior deles, mas talvez tenha sido só o primeiro equívoco. Algo pior ocorreu do ponto de vista da política pública. O deputado Derrite escolheu inicialmente um modelo que dificultava a cooperação entre estados e União, quando o crime organizado só pode ser combatido juntando esforços. Depois ele tentou matizar isso nas seis versões de uma peça legislativa frágil e apressada. Ao final, a Polícia Federal continuou enfraquecida e nada de inovador foi criado para ampliar as parcerias federativas. Seguindo essa linha, as facções só podem agradecer aos deputados.

Os equívocos da Câmara provavelmente vão ser corrigidos pelo Senado. A escolha do senador Alessandro Vieira para relator já demonstra a completa diferença de critérios de seleção. Enquanto o deputado responsável pelo projeto o subordinou à discussão da eleição presidencial de 2026, Vieira tem optado por um caminho diferente, não se filiando automaticamente nem ao governo nem à oposição. Mais do que isso: já como presidente da CPI do Crime Organizado tem priorizado a discussão técnica e a conversa com especialistas - Derrite não ouviu nenhum importante estudioso do assunto. Vieira tende a produzir uma peça legislativa mais consistente, sem respostas rápidas e populistas, gastando o tempo necessário para pensar no país, e não nas torcidas partidárias do jogo eleitoral.

A esperança agora é que a nova etapa congressual melhore um projeto fundamental, porque o crime organizado espalhou-se por todo o território brasileiro e inclusive chegou à política brasileira - talvez esteja aí a razão de vários deputados terem votado num projeto que enfraquece a Polícia Federal. É verdade que a legislação será votada novamente pela Câmara, mas se os senadores seguirem a linha de seriedade de Alessandro Vieira, novamente eles ganharão o jogo da opinião pública e, tal como na PEC da Blindagem, os deputados terão dificuldades de explicar para a sociedade a opção pelo projeto do deputado Derrite.

Os senadores poderão realizar um trabalho ainda mais completo se lembrarem o sentido de sua função: o Senado é a Casa da Federação. Por conta disso, um de seus papéis mais importantes é fortalecer a cooperação entre os entes federativos, garantindo assim que o modelo colaborativo fortalecerá cada estado ou município, com um destaque para o combate das desigualdades territoriais. Combater o crime organizado exige coordenação de esforços e uma lógica intergovernamental cooperativa. Qualquer outra saída, que signifique mera centralização ou atuação isolada dos governos estaduais, será um fracasso.

A linha de Derrite segue o eterno dia da marmota, como defini na última coluna (7 de novembro) as últimas décadas da política da segurança pública e o discurso populista que hegemoniza o debate político. Ações hollywoodianas de ataque às comunidades são feitas, há um entusiasmo por intervenções de mera força e pouco planejamento, o crime organizado continua dominando o pedaço e expandindo suas ações e, completando o ciclo, o entusiasmo social inicial se reduz. Mas passado um tempo se propõe a mesma fórmula, e pouco se avança numa governança colaborativa entre entes federativos e órgãos públicos, solução estrutural para o problema.

O Senado não pode perder a oportunidade de virar a chave. Até porque logo chegará à Casa o projeto sobre o Sistema Único de Segurança Pública, hoje na Câmara - o nome melhor seria Sistema Nacional (ou Integrado) de Segurança Pública, pois é preciso enfatizar que a saída é a cooperação federativa. Há um grande risco de os deputados continuarem na linha Derrite, defendendo um modelo fragmentado de atuação, uma visão excessivamente defensiva e isolacionista dos estados e, ao final, não incentivarem a cooperação dos governos estaduais com órgãos federais autônomos, como a Receita e a PF.

Senadores devem defender seus estados, mas são essencialmente defensores da Federação como projeto de nação. Em outras palavras, não devem ser confederacionistas nem estimular visões secessionistas. Além de casa da integração federativa, o Senado sempre foi conhecido, desde o Império, por ser composto por políticos que podem pensar mais no longo prazo do país - algo facilitado por seus mandatos maiores - e que têm maior experiência política, um caminho que pode gerar uma instituição moderadora e mais parcimoniosa em suas decisões.

Seguindo esse raciocínio, os senadores podem usar o seu lugar institucional para fortalecer uma visão federativa que foi central para os sucessos do país a partir da redemocratização. Os avanços da saúde se deveram muito à implantação do Sistema Único da Saúde (SUS), cuja governança se orienta pela cooperação entre os entes federativos por meio de fóruns intergovernamentais - as chamadas comissões tripartite e bipartite. Foi esse desenho que garantiu a expansão da atenção básica a todos os municípios brasileiros. O SUS evita ainda uma centralização indevida. Desse modo, reduziu o desastre da política federal bolsonarista durante a pandemia da covid-19 - morreram cerca de 700 mil pessoas, mas poderia ter sido o dobro disso.

Há igualmente sucessos em outras áreas. O Sistema Nacional de Recursos Hídricos, com suas articulações federativas definidas pelos comitês de bacia, tem tido um papel muito importante por conta dos períodos recentes de escassez hídrica, os quais, infelizmente, podem se tornar mais frequentes se não reduzirmos os impactos das mudanças climáticas. A efetividade do Bolsa Família depende muito da qualidade da articulação federal com os municípios, tanto no que tange ao preenchimento do Cadastro Único como em relação ao acompanhamento das condicionalidades ou à articulação com os serviços.

A situação oposta, vinculada à fragilidade dos laços federativos, também existe e prova, pelo seu fracasso, a importância da cooperação intergovernamental. O Brasil não conseguirá combater a mudança climática sem que o governo federal e os estaduais ajudem a construir capacidades estatais municipais. Na mesma linha, sem parcerias territoriais será muito difícil combater flagelos como as queimadas e o desmatamento. Ou ainda, há poucas chances de melhorar o transporte nos grandes centros sem a colaboração do estado com os municípios dessa região, com apoio financeiro do governo federal.

Recentemente, o próprio Senado aprovou a lei que instituiu o Sistema Nacional de Educação. Mesmo sendo uma demanda de décadas, o chamado SNE ficou por muito tempo em discussão na Câmara e só conseguiu prosperar quando foi tirada da esfera da politização, especialmente de deputados mais ligados ao bolsonarismo. Os senadores foram muito mais ágeis em aprovar a proposta, percebendo o ganho da cooperação federativa para a política educacional, criando os mesmos espaços de diálogo e aprendizado intergovernamental que existem em outras áreas.

Três exemplos educacionais mostram o ganho de se ter um sistema federativo de construção cooperativa. No eixo da educação, a política da primeira infância tem uma provisão municipal, mas, sem os apoios federal e estadual, a maioria dos municípios não terá as creches na quantidade e qualidade necessárias - e, se não investirmos nas crianças nessa tenra idade, o potencial de desenvolvimento do país será bem menor. A maioria dos estudantes do fundamental 1 estuda em escolas municipais, mas, quando passam de fase, predominantemente estudam em escolas estaduais. Como não há uma articulação federativa nessa transição educacional, o alunado que estava avançando em seu desempenho deixa de fazê-lo na etapa seguinte. Por fim, o crescimento do ensino médio profissional e tecnológico é tarefa dos governos estaduais, mas sem recursos federais e articulação com os governos locais esse processo será muito desigual pelo país afora.

O exemplo de outras áreas revela à segurança pública que seu caminho deve passar pela cooperação federativa. Não uma falsa e politizada aliança, como a feita por governadores do Sul e Sudeste que não inclui - nem desejava incluir - os estados do Nordeste. Também não pode ser apenas para apagar incêndio, como as intervenções federais no formato GLO, tão ilusórias quanto o discurso isolacionista das governadorias da oposição. É preciso articulação institucionalizada, constante, bem articulada, com planejamento conjunto e aprendizado mútuo entre os entes para se combater um fenômeno complexo e nacional como o crime organizado.

O Senado pode mudar o rumo completamente equivocado do projeto Derrite se, para além da correção dos populismos presentes nessa proposta, construir uma nova base federativa à segurança pública brasileira. Uma transformação inovadora como essa valerá para governantes de qualquer partido e servirá aos cidadãos sem pedir seu título de eleitor, por anos a fio. A violência que aflige a todos os brasileiros, particularmente aos mais vulneráveis que são reféns do crime organizado, só será debelada por um projeto integrado de país, uma ponte intergovernamental que evite as ilhas insensatas de centralização ou descentralização.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

Nenhum comentário: