sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Não é só o crime organizado que aterroriza a população, por José de Souza Martins

Valor Econômico

Tudo indica que a massa das vítimas da criminalidade desorganizada e artesanal não tem defesas para se proteger ou para reagir

As ocorrências trágicas do Rio de Janeiro, em dias passados, com seus numerosos mortos, expõem indícios da gravíssima situação da ordem social, mas também da ordem política, no Brasil.

O país está mergulhado em profundo estado de anomia, regulado por normas sociais que não funcionam e por normas antissociais que funcionam ao contrário do que se necessita para ter ordem.

É equívoco e ilusão pensar que se trata de um embate entre polícia e criminosos do crime organizado. Há outras personagens nesse cenário. Ao dar uma visibilidade meramente repressiva ao seu trabalho, as polícias estão deixando de lado o crime desorganizado. O que se manifesta nas ações criminosas que aterrorizam a população na vida cotidiana, sem letalidade. Para essa vítima, é essa modalidade de crime que mais preocupa.

Já não se trata do criminoso pé de chinelo, do ladrão de galinha, do batedor de carteira, o autor do conto do vigário. Os delinquentes de comédia. Como os que eram atores, sobretudo quando atuavam no sentido de induzir os curiosos, que na rua cercavam o vendedor de qualquer bagulho, a comprá-lo para remover verruga ou tratar de unha encravada.

O pequeno criminoso evoluiu, aperfeiçoou-se, domina computador, internet, técnicas de cometimento silencioso de violência. Não é mais apenas o criminoso que age perto da vítima, mas também o que age à distância. O que usa celular ou o computador, que por esse meio entra na casa dos outros, acessa sua biografia, sua conta bancária, suas disponibilidades e suas fragilidades.

Somos um povo caracterizado por desencontros culturais de imensos abismos de conhecimento decorrentes de modos de vida diversificados e distantes do que é dominante.

Todos os mecanismos de informação e de proteção contra o crime estão dominados por uma visão seletiva de classe média da realidade social. Tudo indica que a massa das vítimas da criminalidade desorganizada e artesanal não tem defesas para se proteger ou para reagir nesses casos.

Gentes habituadas a viver em sociabilidade de grupos fechados, de interação face a face, com conhecidos e parentes, ficam fora do alcance de medidas que supostamente devem proteger também a elas. Com a pós-modernidade passaram a viver, simultânea e residualmente, em grupos abertos com anônimos e desconhecidos que manejam técnicas teatrais de sociabilidade e dominação.

É claro que o crime organizado, como mostrou o caso destes dias, no Rio, é de sofisticadas empresas de criminalidade. Os criminosos são funcionários do crime, com mentalidade de empreendedor, tecnologia, equipamentos e armas próprios de organizações policiais e militares, instituições do Estado. Portanto, é compreensível o tamanho e o impacto da repressão. O crime organizado declarou guerra ao Brasil. E na guerra como na guerra.

Justamente por isso, fica difícil compreender a conspiração dos governadores de direita no sentido de agir como pátria separada na organização de uma confederação policial para enfrentar o crime organizado. Trata-se de um esboço de secessão, uma atitude separatista e antinacional.

Vítima do crime organizado é o Brasil inteiro. Não há recanto do país que não o tenha presente e ativo. Os primeiros dados revelados sobre a identidade e o perfil dos mortos de agora indicam que vários eram originários de outros estados, que não estão na conspiração repressiva de direita.

O poder nacional sobrepõe-se ao das unidades da federação. O governo federal é que tem as condições para coordenar as medidas de articulação da defesa da população inteira, como lembrou em entrevista à Globo News o sempre lúcido ex-ministro da Defesa Raul Jungman.

Mais ainda, falta um Ministério da Segurança, como insiste Benedito Mariano, outro conhecido especialista no assunto.

Um ministério que enfrentasse de vez, na escala correta, em todos os âmbitos, do local ao nacional, a violência e a criminalidade. Que superasse de vez a vigilância e a repressão do varejo oligárquico dos régulos de província. Um ministério que incluísse a criminalidade cotidiana, organizada e não organizada, que protegesse contra a guerra toda a população. Que a protegesse, também, contra preconceitos e discriminações que criminalizam o que crime não é. Um ministério que abrangesse cientificamente atividades pedagógicas de prevenção e combate ao crime, qualquer que seja ele.

Não se pode deixar de investigar a benevolência e o favorecimento do governo anterior em relação ao acesso a armas e munições. Quanto e o que daquelas armas e instrumentos de violência vistas nas reportagens das ocorrências do Rio são provenientes dessas facilitações? A segurança aumentou com a facilitação do acesso às armas? Para quem?

 

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