O Estado de S. Paulo
A questão decisiva é se será também mais humano, equitativo e efetivo. Isso dependerá das escolhas que fizermos hoje
Vivemos um ponto de inflexão na história da medicina. Em poucas décadas, a convergência entre biotecnologia, inteligência artificial (IA), novos materiais, robótica, entre outras tecnologias, deslocou o centro de gravidade do cuidado de um ato isolado e prescritivo para um ambiente de cuidado tecnológico contínuo, preditivo e conectado. Novas tecnologias, como biópsia líquida e imagem molecular, possibilitam diagnósticos mais precisos e permitem que testes avançados sejam realizados fora de grandes centros hospitalares, chegando a Unidades de Saúde da Família e comunidades remotas.
Paralelamente, inovações terapêuticas como
edição genômica e imunoterapia personalizada, hoje concentradas em centros
especializados, têm potencial futuro para serem integradas progressivamente a
contextos descentralizados, ampliando significativamente o acesso.
Entretanto, as mesmas forças que aceleram
diagnósticos, personalizam terapias e ampliam o acesso, também podem
intensificar desigualdades, burocratizar o encontro clínico e fragilizar os
vínculos sociais. O desafio, portanto, é decidir que medicina queremos produzir
com essas novas tecnologias e sob quais regras, critérios, competências e
valores.
Ferramentas de IA já conseguem resumir
prontuários, transcrever consultas e sugerir hipóteses diagnósticas; a
biotecnologia avança com plataformas vacinais, terapias celulares e edição
gênica; sensores e implantes inteligentes transformam dados fisiológicos em
sinais para tomada de decisão; a cirurgia robótica e a reabilitação assistida
redefinem precisão e recuperação.
Mas nenhum algoritmo substitui o juízo
clínico, a responsabilidade profissional ou a relação terapêutica. Como nos
lembra Eric Topol, a promessa dessa nova medicina seria justamente a de usar a
tecnologia para devolver tempo e atenção ao paciente, liberando o médico do
fardo administrativo para que ofereça suporte empático e humanizado, sem
terceirizar a tomada de decisão.
Mas para que a transformação tecnológica
resulte numa saúde melhor e mais equânime, três condições são essenciais.
Primeiro, dispor de uma formação profissional orientada a dados, ciência e
humanidade, capaz de incorporar novas competências sem perder o núcleo da
clínica, envolvendo a formação contínua de profissionais de saúde, pacientes e
cuidadores e abrangendo o uso de dados, digitalização e novas tecnologias,
preferencialmente de âmbito nacional. Segundo, dispormos de uma governança
ética, regulatória e organizacional que assegure qualidade, transparência,
segurança para profissionais de saúde e pacientes e equidade ao acesso aos
cuidados de saúde. E, terceiro, os sistemas de saúde devem colocar a tecnologia
a serviço da coordenação do cuidado, da ampliação do acesso, do cuidado
humanizado e da participação do paciente em todo o processo.
Nenhuma tecnologia substitui a comunicação
clínica avançada, baseada na ética e na reflexão sobre o encontro singular
entre paciente e médico. Os chamados grupos Balint – espaços protegidos em que
as equipes de saúde discutem não apenas um caso singular, mas o médico no
contexto e com todas as implicações daquele caso, são instrumentos potentes
para cuidar do cuidador e sustentar a qualidade relacional em ambientes cada
vez mais mediados por telas.
Nada substitui a orientação ética que funda a
profissão. A técnica é condição necessária, mas não suficiente. Num mundo de
interfaces e modelos estatísticos, o que mantém a medicina reconhecível como
medicina é a responsabilidade por alguém concreto, o cuidado, a escuta, a
prudência e a decisão compartilhada. Lembrando Hipócrates, reitero que “é mais
importante conhecer o doente que tem a doença, do que a doença que o doente
tem”.
Se Eric Topol nos convida a encarar a
tecnologia como meio de aprofundar a humanidade da prática, e não de
esvaziá-la, Michael Balint nos recorda que o médico – com sua presença, seu
modo de olhar e falar, sua capacidade de suportar a incerteza – é parte
constitutiva do tratamento, e, décadas atrás, já nos havia advertido que, na
relação médico paciente, a “droga” mais receitada é o próprio terapeuta. Se a
incorporação tecnológica não conservar essa centralidade, estaremos apenas
sofisticando meios para repetir velhos erros.
O futuro da medicina será tecnológico por
definição. A questão decisiva é se será também mais humano, equitativo e efetivo.
Isso dependerá das escolhas que fizermos hoje: de como educamos nossos
profissionais, de como regulamos, avaliamos e garantimos as inovações, de como
organizamos o cuidado e de como protegemos os vínculos que sustentam o processo
de cuidar e curar.
A tecnologia pode ser atalho para a pressa e
o deslumbramento – ou a alavanca para um cuidado mais competente, mais justo e
mais próximo. O caminho que escolhermos dirá muito sobre a sociedade que
desejamos construir.

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