domingo, 25 de janeiro de 2009

Obama, direitos civis e raça

Renato Lessa
Prof. do IUPERJ e UFF
DEU NO JORNAL DO BRASIL

A vitória de Barack Hussein Obama nas últimas eleições presidenciais norte-americanas é um acontecimento aberto a muitas interpretações. Na verdade, todos os eventos históricos ­ para desespero da cultura científica positivista ­ o são. O suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), um dos mais célebres historiadores no século 19, tão marcado pela busca de leis científicas certas e rigorosas, já afirmava que, em se tratando de narrativa histórica, a perspectiva do narrador faz enorme diferença. Não há objetividade, mas esforço de objetivação. Dificilmente um evento será narrado e interpretado do mesmo modo por dois historiadores dignos do métier.

O que faz da eleição de Obama um evento distinto é, para além de sua abertura a múltiplas interpretações, a amplitude dos impactos a ele associados, na história norte-americana e mundial. Não importa que os próximos anos sejam marcados pela inevitável fatura que o realismo cobrará dos utopistas. Tal futorologia negativa é, no entanto, inócua: a vitória de Obama já produziu efeitos importantes nas configurações políticas de seu país e, dada a posição por ele ocupada, em escala planetária.

Um dos pontos possíveis a destacar é o da presença na memória e na política norte-americanas das marcas da Guerra Civil (de 1861 a 1865). Os mapas eleitorais mostram que as regiões nas quais o republicano John McCain venceu correspondem aproximadamente aos antigos estados confederados e escravistas, que se opuseram a Abraham Lincoln e a sua política de combate à escravidão, nos anos 60 do século 19.

Outro mapa mais 'fino' revela em que áreas do país o eleitor manifestou-se mais democrata ou mais republicano do que nas eleições anteriores: a mancha vermelha dos republicanos concentra-se no núcleo duro dos estados confederados: Texas, Alabama, Louisiana, Mississipi, Georgia. O país tornou-se mais conservador em seu núcleo duro confederado.

Nas demais áreas, houve crescimento do eleitorado democrata, mesmo em distritos nos quais o partido foi derrotado. São os ecos nostálgicos do supremacismo racial, tão caros aos conservadores que Saxby Chambliss, senador republicano pela Georgia, declarou, ao observar a participação na votação antecipada de grande número de eleitores negros: "Os outros sujeitos estão votando."

A Guerra Civil

Por outro lado, se tomarmos a Guerra Civil como referência, um longo processo de democratização se torna visível. Tal percepção ajuda a compreender a magnitude da vitória de Obama. Com o fim da Guerra Civil, uma série de emendas constitucionais redesenhou o país: a 13 a emenda (1865) suprimiu a escravidão, a 14 a (1868) garantiu a todos os cidadãos igual proteção legal e a 15 a (1870) proibiu a utilização de critérios raciais para acesso a direitos políticos.

Tais emendas marcaram, na história norte-americana, o início de um amplo processo de democratização, aprofundado em 1920 com a 19 a emenda, que estendeu às mulheres o direito de voto. O passo decisivo, contudo, foi dado em 1964 e em 1965, durante o governo Lyndon Johnson (de 1963 a 1968), com o Ato dos Direitos Civis e o Ato dos Direitos Eleitorais. O primeiro eliminou as chamadas 'leis Jim Crow', pelas quais municípios e estados impunham a segregação racial em espaços públicos. O segundo expandiu a participação eleitoral de negros e brancos pobres, ao eliminar os humilhantes e discricionários testes de alfabetização exigidos para o alistamento.

Sem esses antecedentes a vitória de Obama seria impensável. É certo que questões e acontecimentos mais imediatos, como os associados ao desempenho do governo Bush e ao impacto da crise financeira, tiveram seu papel. No entanto, é sempre importante indagar nos eventos históricos a respeito da presença de fatores e processos de longa duração.

O tema do racismo, no entanto, não deve ser exagerado. Afinal, Barack Obama jamais se apresentou como 'candidato dos negros' e recusou-se a adotar uma plataforma racialista, calcada na percepção do país como dividido em raças opostas. Com efeito, um dos traços mais notáveis e inovadores de sua campanha foi a visão da incompatibilidade entre a democracia e a crença de que somos racialmente distintos.

"O MST foi domesticado por Lula"

DEU NO JORNAL DO BRASIL

O deputado e ex-ministro Raul Jungmann diz que movimento se deixou cooptar por dinheiro

Ex-ministro do Desenvolvimento Agrário no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o deputado Raul Jungmann (PPS-PE) afirma que os dirigentes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se deixaram cooptar em troca de liberação de recursos e cargos em autarquias federais, como as superintendências do Instituto nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). – No governo Lula o MST ficou domesticado, dócil e a reforma agrária perdeu o poder de pressão que havia com Fernando Henrique – disse o deputado. Segundo ele, há suspeitas de irregularidades na distribuição de verbas.

– O TCU (Tribunal de Contas da União) está investigando uma série de processos relacionados à liberação de verbas ao movimento. Muitas estatais e autarquias distribuíram dinheiro sem qualquer controle público – acusa o deputado. Segundo ele, o Ministério do Desenvolvimento Agrário colocou pessoas indicadas pelo movimento para comandar superintendências regionais e unidades avançadas do Incra em várias regiões do país.

– O Incra e o MDA foram aparelhados e o governo abriu os cofres do Tesouro ao movimento através dos quase todos os Ministérios, autarquias e estatais. Lideranças intermediárias e superiores do MST foram cooptadas. Eles têm cargos comissionados e viraram chapa-branca – afirma.

Um dos principais adversários políticos do MST, o ex-ministro reconhece que o movimento tem o mérito de ter colocado a reforma agrária na agenda do governo na gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, pressionando para que fosse possível assentar 650 mil famílias de trabalhadores rurais e distribuir, durante os dois mandatos do PSDB, cerca de 22 milhões de hectares de terra. – Mas eles também têm o demérito de ter retirado a reforma agrária da agenda do governo Lula – diz Jungmann. O deputado lembra que a a "ferocidade das invasões" era tão intensa que os sem-terra chegaram a tumultuar o governo Fernando Henrique. Invadiram a fazenda particular do próprio presidente, em Buritis (MG) e, em outra ocasião, o gabinete de Jungmann, em Brasília, sem contas as centenas de propriedades invadidas e os conflitos provocados no campo.

– O MST perdeu o fator de coesão e luta ao se render ao governo Lula. Não são mais os revolucionários que enfrentavam o governo Fernando Henrique. O movimento é governista – diz Jungmann, que concentra suas críticas no principal dirigente do MST, o economista João Pedro Stédile. – O Stédile era um revolucionário e se transformou num barnabé. O dirigente de fato do movimento é o Luiz Dulci (ministro da Secretaria Geral da Presidência) que chama o movimento para conversar sempre que fazem ameaças e libera mais dinheiro – afirma.

O ex-ministro diz que o MST perdeu o rumo e a razão de ser porque seus objetivos eram políticos e a meta era, se possível, derrubar o governo Fernando Henrique. – O movimento tem objetivos políticos. Se a finalidade fosse a reforma agrária, seu desempenho no governo Lula seria mais agressivo que no de FHC. Haveria mais pressões. Mas ocorre justamente o contrário – observa o deputado. Segundo ele, a explicação é porque ao se envolver como parceiro na campanha que elegeu o governo do PT, os dirigentes sem-terra assumiram um papel de bom comportamento e dentro dos limites definidos pelo Palácio do Planalto.

Jungmann acha que o suposto distanciamento do MST em relação do governo Lula, anunciado no encontro por ocasião dos 25 anos, em Sarandi, é falácia. – É coisa pra inglês ver porque trata-se de cria e criador – afirma. Ele diz que os sem-terra estão sem alternativa política, mas se preparam para retomar as invasões e manifestações com mais intensidade caso em 2010 seja eleito um governante do PSDB. – Eles voltarão cuspindo fogo – diz.

A hora das escolhas

Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Os sinais de que o governo Lula vive novas contradições, outra correlação de forças e a frustração das tarefas não-realizadas são visíveis

Um dos textos interessantes que conheço sobre o governo Lula é o breve ensaio O estado novo do PT, do cientista político Luiz Werneck Viana, um estudioso da Era Vargas, cujo fim já foi anunciado algumas vezes e continua aí, firme e forte. Escrito em junho de 2007, pode ser lido integralmente no site Gramsci e o Brasil (www.acessa.com/gramsci) e instiga a reflexão sobre o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Compromisso

Em linhas gerais, Werneck afirma que o presidente Lula construiu um engenhoso governo de compromisso. O programa do PT não diferia muito da esquerda tradicional, mas a opção de Lula e seus jacobinos ao assumir o poder foi aceitar as contingências e rechaçar veleidades revolucionárias de amplos setores do partido. Pôs-se em linha de continuidade com a política econômico-financeira do governo anterior, mas inovou na política. Primeiro, transformou o Estado “num condomínio aberto a todas as classes e principais grupos de interesse”. Segundo, “derivou para uma agenda nacional-desenvolvimentista”, hoje pilotada pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, cuja maior expressão é o chamado Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Esse “condomínio” compatibilizou as relações entre o agronegócio e os trabalhadores rurais, entre as centrais sindicais e os grandes grupos empresariais, todos com assento na Esplanada. Debateu a “grande política” e seus interesses no interior do próprio governo. Tal processo apontado por Werneck, do meu ponto de vista, lançou o Congresso no atoleiro da “pequena política”. O Executivo legisla por “medidas provisórias”, atalha consensos que deveriam ser mediados pelo Legislativo e arbitra dissensos que caberiam ao Judiciário decidir.

“Na dialética sem síntese da tradição política brasileira”, o comando da máquina pública e as políticas sociais de “transformações moleculares” possibilitaram a conciliação de interesses contraditórios e o congelamento das mudanças sociais, como na questão agrária, por exemplo. Mas o choque entre seus atores é visível: “A esquerda tem como alvo principal a administração do Banco Central, caixa-preta da política econômico-financeira, a direita encontrou o seu na presença do PMDB na coalizão política que sustenta o governo, sem o qual ele perde força no Congresso e na sociedade”, dispara Werneck. Essa constatação dispensa comentários sobre sua atualidade.

Encruzilhada

O Estado de compromisso que incorporou e equilibra interesses tão antagônicos na sociedade é um lugar de permanente tensão, cuja coesão depende essencialmente do prestígio popular do presidente Lula. Por isso, as ações de governo dependem tanto da intervenção carismática de Lula. Pela mesma razão, com o tempo, cada classe, fração social ou grupamento de interesse aprendeu que, para vencer ou se preservar dentro da máquina do Estado, precisa buscar apoio na sociedade.

Essa construção, para Werneck, tem prazo de validade: o fim do mandato presidencial em 2010.

Com essa data no horizonte, os antagonismos “começam a procurar formas próprias de expressão, em um cenário de partidos em ruínas e instituições políticas, como o Parlamento, desacreditadas pela população”. Esse é o ponto a que queria chegar. Werneck previu o choque no interior do “condomínio” em razão da sucessão de 2010, mas num contexto diferente do que estamos vivendo, sob o impacto da renovação política dos Estados Unidos, representada por Barack Obama na Presidência, e de uma crise que ninguém sabe quando acaba.

Por causa da crise, o governo de compromisso, antes mesmo do choque entre as forças de sua coalizão política, está sendo obrigado a arbitrar conflitos de interesses entre seus agentes econômicos e sociais. O presidente Lula, por exemplo, não esconde a irritação com as demissões na mineração, na siderurgia, nas montadoras, nas usinas de álcool, setores fortemente beneficiados por seu governo, sem falar na contenção do crédito pelo mercado financeiro.

Flexibilização da legislação trabalhista, redução de salários e outras propostas na ordem do dia ameaçam os direitos e a renda dos trabalhadores. Chegou o momento de escolhas muito difíceis, que podem levar o condomínio de roldão. Os sinais de que o governo Lula vive novas contradições, outra correlação de forças e a frustração das tarefas não-realizadas são visíveis. A deriva à esquerda e à direita começou.

Caroço no angu

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A reação dos aliados do governador Aécio Neves à incorporação de Geraldo Alckmin ao governo José Serra é definida por auxiliares do governador como "pouco profissional".

Até mesmo a ironia de Aécio ao dizer que se sentia "homenageado" com a nomeação de Alckmin para secretário de Desenvolvimento foi vista como desproporcional.

Por mais razão, concluem os paulistas, o lance aconteceu na hora certa. O motivo da irritação dos mineiros - explicitada, contrariando o dogma político regional - se o grupo de Serra sabe qual é não diz.

Manifesta apenas a suspeita de que Alckmin e Aécio Neves teriam alguma combinação "mais profunda" que foi interrompida com a ida do ex-governador para a secretaria e, por consequência, sua integração ao grupo que arquiteta a candidatura Serra para presidente em 2010.

Ninguém no Palácio dos Bandeirantes acredita que o governador de Minas Gerais pudesse de fato imaginar que Alckmin simplesmente desse as costas ao partido em São Paulo e aderisse à candidatura de Aécio, seja nas prévias ou mesmo na convenção para a escolha do candidato.

Por isso é que, diante do evidente susto e da assumida exasperação dos mineiros, levanta-se a dúvida sobre os termos das tratativas entre Aécio e Alckmin. Entre as suposições está a de que talvez os dois estivessem conversando sobre uma possível mudança de partido ou criação de nova legenda.

Se é fato ou ficção, no tocante a Alckmin o "para trás" é dado como vencido. Sobre o "para a frente", a posição do governo estadual é a seguinte: Serra mostrou que comanda o partido em São Paulo, lidera o processo de construção da candidatura a presidente e tem duas opções para a eleição paulista: uma eleitoralmente mais viável e outra politicamente mais palatável.

Geraldo Alckmin tem votos e Aloysio Nunes Ferreira atrai PMDB e DEM, antipáticos a Alckmin. A composição de grupos não é considerada difícil porque, pelo combinado, quem não disputar o governo teria vaga assegurada no ministério, se Serra for eleito.

Nos acertos de gabinete leva-se em conta que ele só será candidato mesmo com uma boa margem de segurança de vitória, o que significa ótima situação nas pesquisas, unidade no partido e alianças partidárias consistentes.

Em relação a Aécio, nota-se a presença da tensão, pois é lógico que os aliados do governador paulista prefeririam os mineiros silenciosos e ambíguos.

Para eles seria muito melhor que o assunto não fosse levado para o campo da disputa interna em torno da sucessão presidencial. Até porque na cabeça de José Serra não há disputa, embora diga a fim de não se agastar com Aécio e pôr em risco os votos do segundo colégio eleitoral do País.

Para o Palácio dos Bandeirantes - onde evidentemente não se reconhece isso - muito mais conveniente um Aécio paralisado pela jogada de Serra.

Quando reage e finca o pé na porta, tira do gesto na pretendida naturalidade de uma nomeação administrativa feita para propiciar apenas uma leitura positiva e isso, é claro, incomoda.

Alma mineira


Ex-governador de Minas Gerais, ex-senador, Francelino Pereira envia mensagem sobre o lance da nomeação de Geraldo Alckmin que, na opinião dele, foi um desastre.

"E por quer uma articulação saudada por todos como genial me parece tão desastrosa?

"O governador de São Paulo perdeu a oportunidade de fazer uma jogada de mestre, convidando o governador mineiro para estar ao seu lado no momento do anúncio. Esse simples gesto garantiria ao governador paulista, ao invés da reação e da cristalização da antipatia dos apoiadores de Aécio, uma avaliação positiva unânime.

"O tempo e a energia que o governador paulista parece dedicar às tentativas de enfraquecer o governador Aécio seriam mais bem empregados na busca de um caminho de aproximação.

"Uma frase muito repetida em Minas diz: desconfie da força de quem precisa demonstrar que é forte. Paradoxalmente, Serra não precisa de um Aécio mais fraco, pois pode vir a depender - e muito - dele. É hora de o governador Serra definir se sua prioridade é viabilizar-se como candidato ou vencer as eleições de 2010.

"Os que conhecem a alma mineira - acredite, ela existe - sabem que equívocos assim podem acabar tornando irreversível a candidatura do governador Aécio.

"Mesmo porque, independente da vontade pessoal do governador, os mineiros jamais perdoariam um candidato que parecesse ter tirado de Minas a oportunidade de terminar a caminhada dramaticamente interrompida de Tancredo em direção ao Planalto."

Argumentos assim, se ouvirão a mancheias daqui em diante.

Diretas e indiretas

Mais saudável seria o ambiente da comemoração dos 25 anos das Diretas-Já, não fossem as constantes indiretas em defesa da mudança do curso institucional, aí incluídas todas as propostas de alteração do tempo de mandatos.

Apoio ao voto obrigatório e à democracia é recorde

DIRETAS-JÁ / 25 ANOS DEPOIS
Fernando Barros Mello e José Alberto Bombig
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Em 25 de janeiro de 1984, 300 mil pessoas foram a comício histórico na praça da Sé

Para estudiosos, dados da pesquisa Datafolha indicam consolidação da democracia após cinco eleições com voto direto para presidente

Transcorridos 25 anos do ápice do movimento pelas Diretas-Já, pesquisa Datafolha revela que a aprovação do brasileiro à democracia atingiu seu mais alto patamar. Simultaneamente, é a primeira vez desde que o instituto iniciou a série de levantamentos que a maior parte da população defende a obrigatoriedade do voto.

De acordo com o Datafolha, 53% são favoráveis ao voto obrigatório, contra 42% de 1994, a primeira vez que o instituto pesquisou o tema.

Outro recorde é o apoio à democracia. O levantamento revela que 61% acham que ela é a melhor forma de governo. A série histórica começou em 1989, quando os brasileiros voltaram a votar para presidente. O índice era de 43% e oscilaria para 42% três anos depois, sua menor marca, no fim da gestão de Fernando Collor de Mello.

Para estudiosos e personalidades, os números revelam a consolidação da democracia, mas ainda existem riscos ao sistema e é preciso aperfeiçoar o controle do financiamento de campanhas, alvo de grandes escândalos após 1984, quando, há exatos 25 anos, no 430º aniversário de São Paulo, uma multidão estimada em 300 mil pessoas lotou a praça da Sé pelo direito de votar para presidente.

"A população se deu conta de que a democracia política pode gerar democracia social", diz o historiador José Murilo de Carvalho, autor de "Cidadania no Brasil - O Longo Caminho".O diretor do Datafolha, Mauro Paulino, aponta a relação entre os índices de popularidade do presidente Lula e os resultados do levantamento. "A defesa da democracia ou da ditadura quase sempre costuma seguir a avaliação do governante."

Outro aspecto destacado por Paulino é a relação com o momento econômico: "Em geral, quando o bolso vai bem, a avaliação que se faz do governante também tende a ser melhor".

Em dezembro do ano passado, no início da atual crise econômica mundial, o mesmo Datafolha apontou que 70% dos brasileiros consideravam o governo Lula ótimo ou bom.

Para este mais recente levantamento, o Datafolha ouviu 3.486 brasileiros, entre os dias 25 e 28 de novembro de 2008, em 180 municípios. A margem de erro máxima da pesquisa é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.

São mais favoráveis ao voto obrigatório as mulheres (57%), os mais jovens (59%), os que possuem ensino fundamental (58%) e aqueles que têm renda de até dois salários mínimos (60%), os que não são economicamente ativos (57%) e os que avaliam o governo Lula como ótimo ou bom (57%).

Para o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, não há uma relação direta entre apoio ao voto obrigatório e aumento do apreço à democracia. Segundo ele, no atual estágio, a sociedade pode debater se a medida deve ser mantida.

"Mas acho que o voto obrigatório no Brasil ajudou nessa revolução cívica", diz.A maior evolução no apoio à democracia está entre os que possuem ensino fundamental (de 49% para 56%) e entre os que têm renda de até cinco salários mínimos (de 53% para 61%).

"Os pobres estão percebendo que o voto pode alterar positivamente a política pública e não apenas gerar vantagens individuais", diz Carvalho.

Para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o bem-estar econômico ajuda. "A população sentiu que através da democracia foi possível melhorar a vida. O que não quer dizer que havendo dificuldade econômica todos vão contra a democracia", afirma FHC.

Autor de "História do Voto no Brasil", o cientista político Jairo Nicolau diz que o principal desafio no futuro é a questão do financiamento e da falta de transparência nas contas. "O desafio que afeta a democracia é o controle de gastos, o papel do dinheiro na política. E há uma visão reducionista de que a única alternativa seria o financiamento público exclusivo", afirma Nicolau.

Nos últimos anos, grandes escândalos tiveram vinculação direta ou indireta com o financiamento das campanhas, entre eles o impeachment de Collor e o mensalão, em 2005, quando o presidente Lula insinuou que o caixa dois eleitoral ocorre "sistematicamente".

Para 60%, situação é melhor que na ditadura

ECONOMIA
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

No âmbito político, o número é semelhante: 64% pensam que o Brasil vive momento melhor que na ditadura. Por outro lado, mais gente atribui os problemas econômicos e sociais do país aos governos civis (46%) do que aos militares (24%). A pesquisa mostra que os brasileiros têm pouco conhecimento histórico sobre a ditadura militar: 82% não sabem quando se deu o golpe, e apenas 11% mencionam o ano correto (1964). De forma espontânea, o Datafolha perguntou se os entrevistados sabem dizer quais foram os presidentes militares. Os mais citados foram Figueiredo (17%) e Geisel (11%).

Qual democracia?

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

"Nunca concordei com a análise de que a população não gosta da democracia"
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
ex-presidente da República

"A mobilização pelas Diretas foi a busca por um caminho mais justo e nosso"
SÓCRATES
ex-jogador e ativo participante do movimento Diretas-Já

Ayres Britto agora afirma defender voto obrigatório

DIRETAS-JÁ / 25 ANOS DEPOIS
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Eleição é mais participativa quando voto não é facultativo, diz presidente do TSE

Ministro diz que a eleição é um processo de educação política e que obrigação de votar depende da evolução democrática e econômica

O presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ministro Carlos Ayres Britto, diz que mudou recentemente de opinião e que agora apoia o voto obrigatório, ao menos no atual estágio da democracia. Acredita que os brasileiros estão "se autoqualificando no plano da compreensão da democracia". "Democracia é como concurso público e licitação. Tem seus defeitos, mas ninguém experimentou no mundo nada comparável", resume. (FBM)

FOLHA - O que o sr. acha do voto obrigatório?

CARLOS AYRES BRITTO - Sempre que solicitado, vinha me pronunciando pelo voto facultativo. Nos países de democracia consolidada e economia desenvolvida prepondera o voto facultativo. Sobretudo após um debate recente, fiquei convencido de que a questão do voto depende de cada povo e do estágio de evolução democrática. Cada eleição popular opera empiricamente como um processo de educação política. A eleição é tanto mais popularmente participativa quanto obrigatório o voto. Nesse estágio da nossa evolução democrática e econômica cada eleição cumpre um pouco esse papel. O voto facultativo significaria uma desmobilização física, provavelmente com maior repercussão nos setores mais economicamente necessitados e com menos educação formal.

FOLHA - O apoio ao voto obrigatório é maior entre os de menor renda.

AYRES BRITTO - Não será porque as próprias pessoas sabem que a oportunidade de se educar politicamente é maior a cada eleição? A cada eleição você conhece as biografias, ideias, propostas e se instaura um clima difusamente político.

FOLHA - A população acha cada vez mais que a democracia é a melhor forma de governo. O sr. vê uma ligação entre voto obrigatório e apoio à democracia?

AYRES BRITTO - Não há outro modo democraticamente legítimo de se chegar a um cargo de representação política, senão mediante eleição. As pessoas podem até não saber disso teoricamente, mas cada vez mais instintivamente. Elas estão se autoqualificando no plano da compreensão da democracia. A democracia é esse grande patrimônio imaterial que termina sendo uma espécie de mãe de todas as grandes virtudes coletivas. Quando você pensa em legitimidade, eleição, voto direto secreto, transparência, pensa em democracia.

FOLHA - Quais são os desafios atuais da democracia?

AYRES BRITTO - Democracia é como concurso público e licitação. Tem defeitos, mas ninguém experimentou no mundo nada comparável. Um dos desafios é caminhar de braços dados com a imprensa livre. A democracia amplia os quadrantes de atuação da imprensa livre e esta amplia os quadrantes de compreensão da democracia.

Voto foi obrigatório em Portugal e na Espanha

MUNDO
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

"As Ordenações Filipinas, que regiam as eleições nos impérios espanhol e português, proibiam os candidatos de fazer campanha, obrigavam os eleitos a aceitarem o cargo e puniam com exílio na África quem fraudasse as eleições", diz o historiador José Murilo de Carvalho. O Brasil incorporou essa tradição no Império. Há hoje ao menos nove propostas de emenda constitucional que tratam da alteração do voto para facultativo.

Império já fixava multa a eleitor faltoso

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DEU NA FOLHA DE S. PAULO


O voto obrigatório começou a surgir no Brasil em 1846, quando a lei 387 impôs multas aos eleitores que faltassem às reuniões dos colégios eleitorais ou não participassem da escolha dos vereadores. Mas foi só o Código Eleitoral de 1932 que determinou a obrigatoriedade do voto.

Hoje o voto compulsório é usado em 37 países, dos quais 16 na América Latina -entre os quais Argentina, México e Venezuela. São poucos os países desenvolvidos que adotam esse mecanismo -como a Bélgica e a Austrália.

A discussão sobre o fim do voto obrigatório no Brasil é antiga. Um estudo do professor Zachary Elkins publicado em 2000 ("Quem iria votar? Conhecendo as consequências do voto obrigatório no Brasil") sugere que a adoção do voto facultativo reduziria a participação dos eleitores menos escolarizados, que acompanham menos o processo político. Uma prova disso é a participação dos analfabetos, que não são obrigados a se alistar como eleitores: eles somam 10% da população, mas 6% do eleitorado.

A consequência disso seria um pequeno decréscimo na votação dos partidos de esquerda, como o PT. Elkins calcula que, se a medida estivesse em vigor na eleição de 1994, FHC ganharia mais três pontos de vantagem sobre Lula.

Brasileiro é contra intervenções do governo

DIRETAS-JÁ / 25 ANOS DEPOIS
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

69% dos brasileiros dizem que União não pode proibir existência de partido político, segundo Datafolha

O brasileiro se posiciona contra intervenções do governo na vida das pessoas e de instituições da sociedade civil e tem posicionamento ainda mais radical em relação a atos de proibição e censura. É o que mostra o Datafolha. Para 55%, o governo não poderia intervir em sindicatos, enquanto 62% acham que governo não deve ter direito de proibir greve e 69% defendem que governo não pode proibir a existência de partido político, qualquer que seja ele.

Entre os que discordam da possibilidade da proibição da existência de um partido, destacam-se os jovens de 16 a 24 anos (61%), os que possuem ensino médio (62%), superior (67%), aqueles cuja renda familiar é superior a 10 salários mínimos (72%), os simpatizantes do PT (61%), PSDB (64%) e os que moram no sudeste (61%).

A oposição é mais forte quando se tratam de liberdades relacionadas à política e à imprensa. São 73% os que creem que o governo não deve ter o direito de censurar a mídia. Já 74% acreditam que o governo não deve poder fechar o Congresso.

"Os dados são bastante positivos para o aspecto da democracia chamado, por alguns estudiosos, de liberdades negativas, ou seja, o poder da população sobre o que ela não quer que o Estado faça, algo como uma restrição à ideia de poder autoritário", diz o professor de ciência política da USP Cícero Romão Resende de Araújo, especialista em teoria de democracia e moralidade política.

O professor diz, no entanto, que outro aspecto da democracia está mais fragilizado na atualidade, o das liberdades positivas ou aquilo que a sociedade quer que o Estado faça.

"Você precisa de uma sociedade política forte, independente da administração do Estado e de interesses corporativos, das vontades do chamado "soft power" do dinheiro. Mas hoje pode haver uma impressão de que os partidos são extensões de corporações e que o Parlamento é uma espécie de Federação das corporações."

Como exemplo dessa fragilidade, ele cita a baixa aprovação ao Congresso. Segundo a mais recente pesquisa Datafolha, ele obteve sua melhor marca, mas com apenas 19% de ótimo ou bom. Já 31% dos entrevistados disseram considerar ruim ou péssimo o desempenho dos deputados e senadores.

Para Araújo, as Diretas-Já marcaram o ponto alto de encontro entre a sociedade civil e uma sociedade política forjada nos últimos anos da ditadura.

Qual democracia?

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

"A democracia é o regime mais condizente com a dignidade da pessoa"
DOM DIMAS LARA BARBOSA
secretário-geral da CNBB

"A consciência plasmada nas Diretas é responsável por tudo de avanço que a Constituição de 1988 consagrou"
MAURÍCIO AZÊDO
presidente da ABI

Apenas 35% sabem dizer o que foram as Diretas-Já

DIRETAS-JÁ / 25 ANOS DEPOIS
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Jovens ostentam o maior grau de desconhecimento histórico sobre o movimento

Geração que tem hoje entre 35 e 44 anos é que exibe o maior percentual dos que dizem ter ouvido falar do movimento pelo voto: 70%

A maior parte da população (57%) diz ter ouvido falar das Diretas-Já. Mas, mesmo dentro desse grupo de brasileiros, apenas 35% sabem dizer exatamente o que foi o movimento, ao declararem que foi a luta pelo voto direto, pelo direito de votar ou de escolher o presidente/governante.

Outras respostas também se aproximaram do tema. Para 5% dos entrevistados, foi um "movimento pela democracia e contra a ditadura". A resposta "campanha para acabar com o governo militar" atingiu 2%. Por outro lado, ainda dentro do universo dos que declararam já ter ouvido falar das Diretas, 39% não souberam responder o que foi, e 5% disseram que foi o movimento pelo impeachment do presidente Collor.

"O interessante é que o maior desconhecimento está entre os mais jovens, que hoje, poderíamos dizer, são beneficiários das conquistas das Diretas, justamente o direito ao voto", diz Mauro Paulino, diretor do Datafolha. Mas os mais jovens também estão entre os que têm maior apreço pela democracia. "Não ter ouvido falar do movimento não significa alienação dos mais jovens", diz Paulino.

Entre os entrevistados de 16 a 24 anos, 60% disseram nunca ter ouvido falar das Diretas, enquanto que entre os que têm entre 25 e 34 anos a resposta atingiu 44%. Por outro lado, 70% dos entrevistados na faixa dos 35 e 44 anos disseram ter ouvido falar do movimento. "É a geração que viveu as Diretas", diz Paulino. Entre aqueles que têm entre 45 e 59 anos, 65% disseram ter ouvido falar.

A emenda que propunha eleições diretas para presidente da República foi apresentada em março de 1983 pelo deputado Dante de Oliveira. Lançada nacionalmente em janeiro do ano seguinte, a campanha Diretas-Já ganhou impulso com o comício da praça da Sé, há exatos 25 anos.

Comandado pelo locutor Osmar Santos, o evento reuniu políticos que tomariam caminhos distintos a partir dali. Estiveram no palanque nomes como o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso (senador à época), Ulysses Guimarães (deputado), Franco Montoro (governador de SP) e Leonel Brizola (governador do Rio).

Anhangabaú e Sé deixaram a cena política

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Palcos das grandes manifestações de 1984 pelas Diretas, o vale do Anhangabaú e a praça da Sé, ambos no centro de São Paulo, foram pouco a pouco perdendo importância na vida política da cidade.

Na eleição para a prefeitura da capital em 2008, por exemplo, nenhum dos três principais candidatos -Gilberto Kassab (DEM), Marta Suplicy (PT) e Geraldo Alckmin (PSDB)- realizou comícios nesses locais. A festa pela vitória de Kassab, no segundo turno, foi feita em frente ao Teatro Municipal.

Para o arquiteto Pablo Hereñu, autor da tese de dissertação "O Vale Como Barreira", a reforma iniciada pelo prefeito Jânio Quadros e concluída em 1991, por Luiza Erundina, afastou o povo do Anhangabaú, que, em 1984 abrigou o maior comício das Diretas, com cerca de 1 milhão de pessoas.

"O espaço físico hoje dificulta grandes aglomerações, pelo desenho dos canteiros", diz. Segundo ele, as mudanças implementadas na praça da Sé também ajudaram a tirá-la do epicentro político.

"Atualmente, a única grande manifestação política, que é a Parada Gay, acontece na Paulista, por exemplo", diz.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso relembra o comício do dia 25 de janeiro de 1984 na praça da Sé:

"O [Franco] Montoro [então governador, morto em 1999], quando queria uma coisa, ele queria muito. Então, nós resolvemos nos mobilizar e fazer o comício. Dia 25 de janeiro é também o dia da fundação da USP e eu, senador, estava com o Montoro em uma solenidade lá. Foi então que o José Gregori [ex-ministro da Justiça] telefonou para a gente da Sé dizendo: "Venham para cá porque está enchendo muito e os alto-falantes não alcançam a população". Todos ficaram amedrontados porque começou a chover gente. Foi completamente surpreendente. Daí por diante pegou fogo", diz FHC. (FM E JAB)

Serra e Dilma veem no país democracia "consolidada"

DIRETAS-JÁ / 25 ANOS DEPOIS
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Tucano e petista lutaram contra a ditadura militar

Dois dos nomes sempre lembrados para a sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que estiveram na resistência à ditadura, o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), e a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), dizem que a democracia está "consolidada".Serra chegou a ser exilado no Chile, no Uruguai e na Bolívia, e Dilma militou em movimentos da luta armada. Ambos mantêm relacionamento cordial até hoje em larga medida por conta de seus passados políticos.

Os dois apontam a necessidade de avanços nos próximos anos. "Avançamos em termos de liberdades democráticas, mas falta ainda maior amadurecimento institucional. Não vejo grandes ameaças a ela. Mas isso não significa que mantê-la não pressuponha atenção e empenho permanentes para combater os desvios na origem", diz Serra, para quem uma democracia está consolidada "quando a maioria das pessoas considera impossível pensar em outra forma de funcionamento do sistema político e social". "É o nosso caso hoje."

Ele é contra o voto obrigatório: "Sou a favor do voto facultativo, mas sei que é uma tese que dificilmente prevalecerá, encontra muita resistência".

Para Dilma, as Diretas-Já "foram uma forma de a sociedade dizer que este país é grande e plural demais para que fique sob regime de força".

Dilma afirma que, desde então, o Brasil criou uma democracia "robusta", inclusive em momentos de crise. A ministra vê a necessidade de aumentar a participação da população na política. "O governo tem buscado essa relação direta com a sociedade. Veja os encontros com grupos de negros, da sociedade civil, de gays e tantos outros."

Para Serra, que esteve nas Diretas-Já, um dos argumentos de sustentação da ditadura foi o de que o regime era a "receita" para o desenvolvimento econômico, o que também foi dito após a redemocratização.

"Mas, mesmo depois da volta da democracia, tivemos mais de dez anos de superinflação, com crescimento médio lento, até hoje. Na verdade, é um equívoco essa visão economicista do regime político."

Outro ponto destacado por Dilma é a necessidade de fortalecer os partidos. "É claro que é preciso pensar na questão das oligarquias partidárias, mas uma reforma política precisa pensar no fortalecimento dos partidos", diz ela, para quem o PT tem uma história importante nesse aspecto. (Fernando Bar Ros de Mello e José Alberto Bombig)

Modelo distorcido

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. O diagnóstico feito pelo presidente Barack Obama em seu discurso de posse, de que a economia dos Estados Unidos "está gravemente enfraquecida" em consequência da "cobiça e da irresponsabilidade de alguns, mas também de nosso fracasso coletivo em fazer escolhas difíceis e preparar o país para uma nova era", pode ser traduzido por alguns números que mostram que a distribuição de renda na maior economia do mundo está piorando desde a década de 1970, situação que se agravou na era Bush que se encerra. Ao mesmo tempo, nunca o país produziu tantos milionários. Desde 1995, o número de milionários dobrou nos Estados Unidos, atingindo mais de oito milhões de pessoas ou grupos familiares.

Os 20% mais ricos detêm metade da renda nacional, enquanto cabem aos 20% mais pobres apenas 3,4% desse mesmo total. Os Estados Unidos hoje são o país que tem a pior distribuição de renda entre os integrantes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne 30 das maiores economias do mundo democrático: os 10% mais ricos da população têm uma renda média anual, calculada pela paridade do poder de compra, de US$87.257 enquanto os 10% mais pobres têm renda de US$5.819.

Embora a renda média mensal de US$4.017 seja a maior dos últimos cinco anos, as distorções são grandes. O grupo dos 1% mais ricos ganha 63 vezes mais que o dos 20% mais pobres. O grupo de "extrema pobreza", com pessoas que ganham até US$5 mil anuais cresceu 26% desde o ano 2000 e, mais grave, cresce mais do que o grupo de pobres.

Apesar de, na média, os americanos de maneira geral terem melhorado economicamente, a desigualdade também cresceu. Um levantamento feito pelo presidente do Banco Central dos Estados Unidos, Ben Bernanke, mostra que, desde 1947, a hora do trabalhador americano aumentou mais de 200%. No mesmo período, a renda per capita aumentou 270%, e o consumo per capita outros 280%.

No entanto, reconheceu Bernanke, a desigualdade da distribuição de renda cresceu nas últimas três décadas. Em termos reais, o ganho médio da população cresceu cerca de 11% entre 1979 e 2006, mas, no mesmo período, o rendimento dos 10% mais pobres cresceu apenas 4%, e o dos 10% mais ricos cresceu 34%.

As razões para essa disparidade seriam o progresso tecnológico favorecendo o trabalho qualificado; o aumento de importações de bens intensivos em trabalho não-qualificado; a imigração de trabalhadores de baixa qualificação; e o enfraquecimento dos sindicatos. O fato é que a parcela da renda nacional para lucros corporativos cresceu mais que a renda do salário.

Ao fazer seu diagnóstico da situação da economia, o presidente Barack Obama ressaltou que "o sucesso de nossa economia sempre dependeu não apenas do tamanho de nosso Produto Interno Bruto, mas do alcance de nossa prosperidade", retomando princípios básicos da sociedade americana: oportunidade o mais igual possível para todos; resultados da economia não podem ser distribuídos igualmente, mas devem ser correspondentes à contribuição de cada pessoa; e cidadãos têm que ter um mínimo de garantia contra adversidades econômicas, especialmente as que surgem em consequência de eventos fora do controle dos cidadãos.

Obama destacou a importância do trabalho - "Nossa jornada nunca foi de tomar atalhos ou de nos conformar com menos. Não foi um caminho para os fracos de espírito, para os que preferem o lazer ao trabalho, ou buscam apenas os prazeres da riqueza e da fama" - e definiu os valores que, para ele, fazem o sucesso - "trabalho duro e honestidade, coragem e justiça, tolerância e curiosidade, lealdade e patriotismo" - como "coisas antigas, (...) coisas verdadeiras".

Quando falou mais diretamente na crise do mercado financeiro, Obama admitiu que seu "poder de gerar riqueza e expandir a liberdade é inigualável", mas alertou que "sem um olhar vigilante, o mercado pode sair do controle - e que uma nação não pode prosperar por muito tempo quando favorece apenas os prósperos".

O jornalista do "Wall Street Journal" Robert Frank, que detectou o surgimento nos Estados Unidos de uma classe dos super-ricos, resultante dos anos de euforia econômica, registrou em seu livro "Richistão", um país fictício que abrigaria os novos ricos, que "nunca antes tantos americanos ficaram tão ricos tão rapidamente".

Por volta de 2004, por exemplo, os 1% mais ricos acumulavam US$1,35 trilhões por ano, mais do que a renda nacional da França, da Itália ou do Canadá. Outro dado exemplar dessa fase de euforia e distorção: em 1985, existiam 13 bilionários nos Estados Unidos. Em 2006, eles eram 400 e, a partir de 2007, para entrar na lista dos 400 bilionários americanos da "Forbes", o mínimo é US$1,3 bilhão, o que significa que há mais pessoas ganhando entre US$1 e 3 bilhões. Fora os que não se identificam, que seriam cerca de mil pessoas.

A quebra do megainvestidor Bernard Madoff, num golpe avaliado em US$50 bilhões, levou a crise econômica para dentro do "Richistão", e até as condições em que se permitiu que ele permanecesse em prisão domiciliar em seu apartamento luxuoso do Upper East Side de Manhattan demonstram as regalias permitidas aos muito ricos: pagou uma fiança de US$10 milhões e custeia todo o sistema de segurança a que está submetido, desde os guardas até o monitoramento de televisão e a pulseira eletrônica de vigilância a distância.

O baque nos muito ricos já se faz sentir, embora de maneira seletiva. Nos últimos dias, várias reportagens mostram que os aluguéis de jatos particulares foram drasticamente reduzidos - os muito ricos estão viajando mais de primeira classe -, os lugares mais caros nos teatros e óperas estão sendo trocados por outros, menos visíveis, os melhores restaurantes continuam cheios, mas os vinhos mais caros já não são pedidos com tanta facilidade.

Wall Streel Vodu

Paul Krugman
DEU NO ZERO HORA (RS)

A velha política econômica vodu a crença na magia do corte de impostos foi banida do discurso civilizado. O culto ao supply-side (redução de impostos dos mais ricos como instrumento de estímulo à economia) encolheu a tal ponto que agora engloba apenas excêntricos, charlatães e republicanos.

Mas reportagens recentes sugerem que muitos influentes, incluindo integrantes do Federal Reserve, reguladores do sistema bancário e, possivelmente, membros da recém-iniciada administração Obama, têm se convertido a um novo vodu: a crença de que, ao executar elaborados rituais financeiros, podem garantir sobrevida a bancos mortos.

Para explicar a questão, permitam-me descrever a situação de um banco hipotético que chamarei de Gothamgroup, ou Gotham, para abreviar. No papel, o Gotham tem US$ 2 trilhões em ativos e US$ 1,9 trilhão em dívidas, o que representa um patrimônio líquido de US$ 100 bilhões. Mas uma parcela substancial desses ativos – digamos, US$ 400 bilhões – é composta por títulos lastreados em hipotecas e outro tipo de lixo tóxico. Se o banco tentasse vender esses ativos, não ganharia mais de US$ 200 bilhões.

Logo, o Gotham é um banco-zumbi: continua operando, mas na realidade já está acabado. Seus papéis não estão totalmente sem valor – tem valor de mercado de US$ 20 bilhões – mas essa cifra é baseada na esperança de que os acionistas serão socorridos por um pacote de socorro do governo.

Por que o governo resgataria o Gotham? Porque o banco desempenha um papel central no sistema financeiro. Quando se permitiu que o Lehman Brothers falisse, o mercado financeiro congelou, e por algumas semanas a economia mundial tremeu à beira do colapso. Como não queremos que isso se repita, o Gotham tem de ser mantido em operação. Mas como isso pode ser feito?

Bem, o governo poderia simplesmente dar ao banco duas centenas de bilhões de dólares, o suficiente para volte a ser solvente. Mas, isso seria, é claro, um imenso presente aos atuais acionistas do Gotham – e também acabaria encorajando excessivas posições de risco no futuro. Mesmo assim, é a possibilidade de um presente desses que agora segura a cotação das ações do banco.

Uma abordagem melhor seria fazer o que o governo fez em relação às poupanças e empréstimos zumbis no final dos anos 80: se apropriou dos bancos mortos, eliminando os acionistas. Então, transferiu os ativos podres para uma instituição especial, o Resolution Trust Corp. Quitou débitos até que os bancos tivessem solvência novamente. Depois, vendeu as instituições sanadas para novos donos.

O atual zunzunzum sugere, contudo, que os responsáveis pela política econômica não estão dispostos a adotar essa abordagem. Em vez disso, eles estariam rumando para uma abordagem conciliatória: a de mover o lixo tóxico dos balanços dos bancos privados para uma instituição pública “ruim” ou “agregadora”, que poderia lembrar o Resolution Trust Corp. , mas sem que haja antes a apropriação.

Sheila Bair, presidente do Federal Deposit Insurance Corp. (agência federal dos EUA que tem a meta de garantir os depósitos bancários), recentemente tentou descrever o modo como isso funcionaria: “O banco agregador compraria os ativos por um valor justo.” Mas o que significa valor justo?

No meu exemplo, o Gothamgroup está insolvente porque os alegados US$ 400 bilhões de lixo tóxico que constam nos seus balanços valem na verdade US$ 200 bilhões. A única maneira de uma compra desse lixo tóxico por parte do governo tornar o Gotham solvente seria se pagasse muito mais do que os compradores da iniciativa privada estão dispostos a investir. Agora, talvez os investidores privados não queiram pagar o que esse lixo tóxico realmente vale.

– Nós não temos, atualmente, uma cotação racional para algumas dessas categorias de ativos – afirma Sheila.

Mas será que o governo deveria estar nesse negócio de declarar que sabe mais do que o mercado sobre o real valor desses ativos? E é provável que pagar o “valor justo”, seja isso o que for, servirá realmente para tornar o Gotham novamente solvente?

Suspeito de que os responsáveis pela execução das políticas estão se preparando para uma tentativa de engodo, possivelmente sem se dar conta disso: a adoção de medidas que se parecem com aquela faxina nas poupanças e empréstimos, mas que na prática equivalem a dar aos acionistas de bancos, às custas dos contribuintes, imensos presentes disfarçados de compra de ativos podres por “valor justo”.

Por que todo esse contorcionismo? A resposta parece ser que Washington continua tendo um medo mortal de um palavrão: nacionalização. A verdade é que o Gothamgroup e suas instituições-irmãs já são repartições do Estado, dependentes de auxílio do contribuinte. Mas ninguém quer adotar a solução óbvia: uma explícita, ainda que temporária, incorporação por parte do governo. Por isso, a popularidade do novo vodu, que postula, como eu disse, que elaborados rituais financeiros podem reanimar bancos mortos.

Infelizmente, o preço a pagar por esse retrocesso supersticioso pode ser alto. Espero estar enganado, mas suspeito que os contribuintes estão prestes a receber mais um negócio doloroso – e que devemos ter em breve outro plano de resgate financeiro que falha no seu intento.

New York Times News Service Paul Krugman é economista, Prêmio Nobel de Economia 2008, professor e colunista do The New York Times

Tradução: Eduardo Nunes

Exportações desabam na crise

Bruno Villas Bôas e Martha Beck
DEU EM O GLOBO

Brasil perde US$8,3 bilhões em apenas três meses

O desaquecimento do comércio mundial após o agravamento da crise econômica fez as exportações brasileiras perderem US$8,3 bilhões em apenas três meses, entre outubro e dezembro do ano passado. O tombo nas vendas externas reflete a menor procura por produtos no mercado internacional e a forte queda nos preços das commodities - efeitos da recessão nos países mais ricos e da desaceleração dos emergentes, como a China. A constatação é da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB, que representa 300 empresas responsáveis por 90% da balança comercial brasileira), com base em estudo feito a pedido do GLOBO. Pelo valor médio diário das exportações no ano passado, seria como se o país tivesse suspendido seus embarques durante dez dias desde a piora da crise, em meados de setembro.

Pelos cálculos da AEB, os setores exportadores mais prejudicados foram mineração e metálicos (deixou de exportar US$3,349 bilhões no último trimestre de 2008), petróleo e derivados (US$2,454 bilhões), agronegócio (US$1,891 bilhão) e manufaturados em geral (US$651 milhões). Segundo José Augusto de Castro, vice-presidente da associação, as perdas surpreenderam o mercado, já que a retração era aguardada só a partir deste ano:

- Existe historicamente uma defasagem de três meses entre o início das crises e seus efeitos sobre a balança comercial. Mas essa crise é tão grave que nos atingiu muito antes. Contratos já foram renegociados ou suspensos, preços e volumes caíram. Muitos diziam que os emergentes não seriam atingidos. Mas não é o que estamos vendo.

"Não teremos só retração, mas competição brutal dos asiáticos"

O governo brasileiro reconheceu os prejuízos causados pela crise, mas defendeu que a queda foi menor. Segundo o Ministério do Desenvolvimento, as perdas somaram US$7,1 bilhões entre outubro e dezembro, valor que considera tanto a turbulência da crise quanto os problemas climáticos que afetaram a produção agrícola do Sul do país. Os prejuízos com as chuvas seriam de US$2 bilhões, segundo o governo, valor que a AEB considerou superestimado.

- A safra estava praticamente toda colhida quando ocorreram as fortes chuvas, e o preço dos produtos agrícolas teve uma variação muito pequena - afirma Castro.

As exportações de commodities foram as mais abaladas na crise. Só em minério de ferro a perda foi de US$1,58 bilhão, com menos 22 milhões de toneladas embarcadas. As vendas para a China, maior consumidor, caíram 10,86% em novembro e 1,7% em dezembro. No grupo petróleo e derivados, o petróleo bruto exportado pela Petrobras respondeu por US$1,98 bilhão do impacto total. Segundo Castro, o motivo foi a queda dos preços internacionais, de US$688,7 para US$320,2 a tonelada. O Brasil exporta o produto principalmente para os EUA.

Segundo o vice-presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), Nelson Pereira dos Reis, a turbulência foi maior em dezembro, quando foram embarcados 9% menos frente o mesmo mês de 2007. A redução ocorreu também com a menor procura na União Europeia (UE) e no Mercosul, onde as indústrias têm mais estoques.

- Uma das maiores quedas veio do consumo da indústria automobilística. Os bens duráveis estão neste momento mais problemáticos e afetaram o nosso desempenho, que era crescente - afirma Reis.

Mas as perdas foram generalizadas, e nenhum setor saiu ileso. No agronegócio, os prejuízos foram maiores em carnes suína (US$172 milhões), bovina (US$541 milhões) e de frango (US$469 milhões). Embora as exportações de alimentos processados tenham crescido 25% no ano, o economista da Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), Denis Ribeiro, lembra que o setor perdeu espaço no último trimestre. Ele representava 29,3% da pauta de exportações em outubro, 27% em novembro e 25% em dezembro. Segundo Ribeiro, vários contratos estão sendo revistos.

Os manufaturados também foram prejudicados, embora em menor escala. Houve perdas em autopeças (US$ 227 milhões), tratores (US$50 milhões), celulares (US$142 milhões) e veículos de carga (US$88 milhões). O setor de vestuário, que geralmente exporta mais em períodos de alta do dólar, perdeu US$31 milhões.

O diretor superintendente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), Fernando Pimentel, diz que a valorização do dólar foi acompanhada de uma queda sensível nas vendas, eliminando a possibilidade de crescimento:

- Não teremos só retração, mas uma competição brutal dos asiáticos, que estão com estoques altos e vão derrubar seus preços. Janeiro será mais difícil - avalia.

No pior cenário, perdas em 2009 podem chegar a US$40 bi Segundo o secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Welber Barral, a balança comercial de janeiro vai mostrar o pior resultado dos últimos anos. Até agora, o déficit chega a US$390 milhões - algo que não ocorre desde março de 2001 em qualquer mês.

- Janeiro de 2009 será o pior (janeiro) dos piores - diz Barral, lembrando que além da crise, sempre há redução nas vendas no início do ano.

O secretário diz que, em função da volatilidade do câmbio, muitos exportadores não fecharam contratos em setembro e outubro, o que vai aparecer nas vendas de janeiro e fevereiro. Mas ressalta que o quadro deve melhorar no segundo trimestre.

Um estudo do Ministério do Desenvolvimento preparou cinco cenários para as exportações em 2009. No pior deles, haveria queda de US$40 bilhões neste ano (fechando em US$158 bilhões). Na melhor das hipóteses, as exportações chegariam a US$202 bilhões, ou seja, US$4 bilhões a mais que no ano passado.

O ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues acrescenta que, além do desaquecimento da economia global, a escassez de crédito deixou os produtores sem capital. Ele afirma que a situação vai se agravar este ano, quando o total das exportações desse setor pode cair US$20 bilhões: - O saldo comercial do agronegócio é sempre positivo, mas esse ano pode haver um déficit.

Para o economista da Tendências André Sacconato, o efeito da crise nas exportações foi forte no fim de 2008, mas o quadro deve melhorar no meio do ano. Ele afirma que o momento é de incerteza, o que inibe o consumo, mas, com as ações que vêm sendo adotadas pelos governos para estimular a atividade, poderá haver uma retomada das vendas brasileiras ao exterior, mesmo que em menor patamar.

- O quadro atual não mostra o que vai ser o ano. A gente acredita numa retomada - diz Sacconato.

Porto do Rio já registra redução de 55% no movimento de automóveis

Bruno Villas Bôas e Martha Beck
DEU EM O GLOBO


Em Santos, prevê-se recuo de 1,6% em embarques e desembarques este ano

RIO e BRASÍLIA. Termômetro do comércio exterior brasileiro, os portos foram afetados pelo agravamento da crise econômica mundial, com a queda generalizada nos volumes de cargas embarcadas e desembarcadas - sejam granéis sólidos, líquidos, contêineres ou automóveis. É o caso do Porto do Rio de Janeiro, que registrou uma redução de 55% na movimentação de carros já em novembro do ano passado, frente a outubro.

Segundo a Companhia Docas do Rio de Janeiro (CDRJ), o terminal Multicar, do Porto do Rio, movimentou 12.284 automóveis em outubro, volume que caiu para 5.528 unidades em novembro. Apesar disso, o pátio do terminal continua cheio. Isso porque as montadoras Mercedes-Benz e PSA Peugeot Citroën, que importam de suas fábricas na Argentina, não têm mais onde estocar os carros após a forte queda nas vendas no Brasil.

- Estávamos com uma demanda muito aquecida nas exportações e importações, comandada por carros, produtos siderúrgicos e ferro-gusa. Mas veio a crise e sentimos uma queda grande em diferentes cargas, incluindo contêineres - afirma Adácio Carvalho, superintendente do porto.

A Companhia Docas de São Paulo (Codesp) - que administra o Porto de Santos, responsável por 26% do comércio exterior brasileiro - ainda não fechou os números de 2008. Mas estima recuo de 2,1% nos embarques e desembarques, após forte desaceleração nas commodities nos últimos meses. O volume de embarques a granel de vários líquidos e alimentos pode ter caído em um quarto. Para 2009, prevê retração de 1,6%.

Portos vão embarcar mais em 2009, afirma ministro

Mesmo produtos manufaturados, transportados em contêineres, começam a registrar desaquecimento. Segundo a Associação Brasileira de Terminais de Contêineres de Uso Público (Abratec), os terminais do país devem apresentar este mês uma queda de 5% na movimentação, entre exportações e importações. Segundo o presidente da Abratec, Sérgio Salomão, a queda será generalizada entre as cargas embarcadas nos contêineres.

Exemplo dessa queda vem do setor moveleiro. O presidente da Associação Brasileira das Indústrias do Mobiliário (Abimóvel), José Luiz Fernandez, afirma que as exportações do setor foram muito prejudicadas pela turbulência no mercado no segundo semestre de 2008. O segmento esperava crescimento de 3% nas vendas para outros países, mas a crise mudou o quadro, e o ano terminou com queda de 1,7%. As exportações de 2008 ficaram em R$990 milhões, contra R$1 bilhão em 2007.

- Até outubro, tudo vinha bem. Mas a crise prejudicou o mercado americano, principal destino dos móveis brasileiros - explica Fernandez, lembrando que os Estados Unidos são destino de 50% da produção moveleira brasileira.

Apesar dos sinais de retração, o governo federal trabalha com cenário de crescimento na movimentação de carga nos portos este ano. O ministro Pedro Brito, da Secretaria Especial de Portos (SEP), disse que devem ser movimentadas cerca de 820 milhões de toneladas, alta de 2,5% sobre as 800 milhões de toneladas estimadas do ano passado.

- Por causa do esfriamento do comércio mundial, o crescimento do volume de carga será um pouco menor em 2009. Mas o dado mais importante é que os investimentos programados não estão subordinados a efeitos de crise - garante o ministro.

Maiores exportadoras de serviços do país, as grandes construtoras encontrarão dificuldades este ano para desenvolver novos empreendimentos no exterior. A avaliação é de Luiz Fernando Santos Reis, presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada (Sinicon), que representa gigantes como Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão e Andrade Gutierrez. Segundo ele, a razão é a escassez de crédito no mercado internacional, necessário para financiar projetos, principalmente em países emergentes.

- Com o problema de liquidez hoje no mercado de crédito, essas empresas devem sofrer. Até porque essas oportunidades não são em países desenvolvidos, mas emergentes, onde a posição de liquidez é mais complexa - afirma Reis. - As empresas continuarão procurando, mas terão mais dificuldade.

No Brasil, renda da classe média terá uma perda maior

Liana Melo e Camila Nobrega
DEU EM O GLOBO

Para especialistas, inflação em baixa não conseguirá neutralizar redução do poder aquisitivo com desemprego

Ainda que a crise não tenha chegado com força total no mercado de trabalho, já começa a se criar um consenso entre os especialistas sobre a tese de que o desemprego em 2009 será maior que o do ano passado (7,9%), o que provocará um encolhimento da renda média do brasileiro. Para eles, os segmentos sociais mais atingidos serão os setores de classe média baixa até aquelas categorias profissionais que ganham até R$4 mil por mês. Os extremos da pirâmide social também serão afetados, mas de forma diametralmente oposta: enquanto os mais ricos tendem a perder riqueza; os mais pobres, sobretudo os beneficiados com transferências governamentais, tendem a ser menos prejudicados.

O economista José Márcio Camargo, da PUC-Rio e da Opus Consultoria Empresarial, avalia que a renda no país sofrerá os efeitos de duas forças contrárias em 2009: de um lado, o desemprego em alta, e de outro, a inflação em baixa. Isto significa que é praticamente impossível se repetir, este ano, o fenômeno de 2008, quando os salários, segundo o IBGE, tiveram um aumento real de 3,4%. Apesar da crise financeira que se agravou no fim do ano, 2008 chegou ao fim com resultados recordes no que diz respeito à soma dos rendimentos médios mensais pagos aos trabalhadores: R$330,6 bilhões contra R$306,5 bilhões, de 2007.

- Os salários vão cair em termos reais em 2009 e o mercado de trabalho, que vinha num ritmo acelerado em 2008, tende a se desaquecer este ano - avalia Camargo, preferindo, no entanto, não fazer previsões sobre quando o valor real do salário começará a perseguir um viés de queda.

Inflação baixa protegerá salário dos mais pobres

O professor do Instituto de Economia da Unicamp Cláudio Dedeca, especialista na área de trabalho e salários, aposta que o aumento já previsto do salário mínimo tende a proteger "movimentos de renda na base do mercado de trabalho". O aumento do salário mínimo previsto para este ano é de 11,6%, o que significa que o rendimento vai pular dos atuais R$415 para R$465, em março próximo. Em 2010, o mínimo será pago em fevereiro e a partir de 2011, sempre no mês de janeiro.

- O recuo da inflação será fundamental para proteger a renda dos mais pobres - comentou Dedeca, convencido de que a queda da inflação não terá força suficiente para proteger os trabalhadores de uma perda de poder aquisitivo.

Já para os empregados da indústria, o ano 2009 não será nada fácil. Desde o fim do ano passado, os empresários passaram a adotar uma postura mais rígida nas negociações e esta tendência de endurecimento deve se manter, e, até piorar, este ano. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, anunciou, recentemente, o fechamento de 654.946 vagas em dezembro último, o que representou o pior saldo - diferença entre contratações e demissões - para meses de dezembro, desde o início da série histórica, em 1992. O resultado é quase o dobro do resultado de igual período de 2007.

O engenheiro metalúrgico Arnaldo Félix, de 48 anos, está desempregado desde outubro último.
Ele trabalhava há três anos na Valesul Alumínio, em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, mas foi demitido após a decisão da Vale de reduzir em 60% a produção da empresa. Imediatamente após o susto, Félix começou a procurar emprego, só que ainda não conseguiu nada. Lá se vão três meses da demissão e ele sequer deu entrada no pedido de seguro-desemprego. É que Félix tinha esperança de ficar desempregado por pouco tempo, já que é um trabalhador especializado:

- Eu ocupava um cargo de gerência e achava que poderia conseguir uma recolocação rápida no mercado de trabalho. Infelizmente, ainda estou procurando e não sei se conseguirei uma vaga com o mesmo patamar salarial.

O diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clemente Ganz Lúcio, concorda que o comportamento do mercado de trabalho já está mudando, sobretudo porque as empresas já começaram a reagir, algumas até preventivamente, contra futuras perdas, devido à crise financeira.

Dieese: um quarto do mercado formal encolheu

Demissões como as de Félix e a de Cipriano Batalha, que trabalhava numa empresa de pintura industrial, estão contribuindo para incrementar as estatísticas oficiais, que, segundo o Dieese, já mostram redução de um quarto do mercado formal de trabalho. Lúcio diz que a expectativa era a criação de 2,1 milhões de empregos com carteira em 2008, mas foi aberto apenas 1,4 milhão de vagas.

- Eu não esperava ser demitido. A empresa justificou as demissões alegando a crise financeira. Agora, preciso arranjar outro lugar para trabalhar - comentou Batalha, que, há dois anos trabalhava como pintor em plataformas de petróleo, em Macaé.

A atendente de telemarketing Tamara da Silva conta que, além dela, cerca de cem pessoas foram demitidas na empresa onde trabalhava no Rio. Tamara acredita que, em breve, estará empregada de novo:

- Vou começar a procurar, e pretendo arrumar algo melhor este ano.

Só com palavras não se criam empregos

José Serra
DEU EM O GLOBO

Nada mais fora de lugar, no mundo de hoje, do que o ar de paisagem em relação à economia real.

O choque de realidade veio em janeiro, com os dados sobre um colapso do emprego no Brasil: 655 mil postos de trabalho foram fechados no mês passado. O emprego já estava desabando quando a ata da reunião de dezembro do Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central, concluiu que os juros deveriam cair. Seus integrantes, contudo, decidiram não fazer nada porque não havia acordo! Apenas em janeiro, depois do desastre, o Copom baixou em um ponto percentual a Selic, a taxa de juros básica da economia. Melhor do que nada, e cabe aplaudir a decisão. Mas é muito pouco, muito tarde.

A política monetária do Banco Central mantém o Brasil na liderança mundial dos juros reais e tem desperdiçado boas oportunidades para corrigir, sem maiores traumas, uma das grandes distorções da economia brasileira. Perdeu-se tempo, o que ajudou a empurrar a economia para uma forte recessão.

As previsões de que o Brasil cresceria 2% em 2009 não esclarecem que isso significa, no mínimo, estagnação do PIB ao longo do ano, ou crescimento negativo per capita. Os 2% seriam um fenômeno estatístico: se o PIB de janeiro deste ano permanecesse no mesmo nível ao longo do ano, ainda assim a média do PIB de 2009 seria mais alta do que a de 2008.

Ninguém pode ter certeza se essas previsões vão se confirmar. Há fatores que atuam no sentido contrário. Muitas empresas pararam a produção para vender o que têm estocado. Esgotados os estoques, voltariam a produzir mais. A desvalorização do real estimulará as exportações, embora não a curto prazo, pois, além das defasagens naturais, há retração do mercado externo. Ademais, o Banco Central não tem sabido como diminuir a volatilidade do câmbio. O efeito mais rápido da desvalorização será o estímulo à substituição de importações, começando pelo turismo. Em contrapartida, temos a falta de crédito e teremos o avanço das práticas desleais de comércio, China à frente, em relação às quais a economia e as instituições brasileiras são especialmente vulneráveis.

Na melhor das hipóteses, em todo caso, 2009 não será um ano economicamente brilhante, até porque o panorama internacional vai continuar adverso. As exportações, os investimentos privados e o consumo das famílias, comprometido pelo desemprego, não puxarão o crescimento.
A contribuição do consumo do governo federal será maior, por causa da expansão dos últimos dois anos. Mas essa não é a melhor forma de gastar durante uma crise, além de perigosa para o futuro, pois tais gastos tornam-se permanentes. O investimento público poderá ser um fator relevante, incluído aí o de estados e municípios.

Os governos estaduais e municipais respondem por mais de 70% dos investimentos públicos no Brasil, excluídas as empresas estatais. Submetidos à Lei de Responsabilidade Fiscal, contiveram mais seus gastos de consumo do que o governo federal. E fazem investimentos menores e de execução mais rápida. Por isso, uma medida contracíclica altamente positiva seria aumentar a capacidade de endividamento de estados e municípios para investir.

É tarefa do presidente da República estimular as expectativas quanto à economia, porque confiança é fator crítico. Se a Presidência espalhasse pessimismo, poderia até soar realista para um empresário ou um analista, mas ajudaria a piorar a crise. Palavras, porém, não bastam.

Ações são imprescindíveis: contribuir para o aumento rápido dos investimentos de estados e municípios, zelar pela execução dos investimentos federais, segurar de forma efetiva os gastos de custeio, adotar medidas de defesa contra práticas desleais de comércio e levar o Banco Central, órgão do governo, a atuar com mais responsabilidade, agilidade e competência nas áreas monetária e cambial.

Um bom ponto de partida é reconhecer que a autoridade monetária errou, nos últimos anos, quando manteve juros altos demais e supervalorizou o câmbio. Mesmo antes da crise, já havia um crescente déficit em conta-corrente do balanço de pagamentos e um superávit comercial em queda - que agora em janeiro virou déficit - apesar dos elevados preços e da demanda por nossas exportações. Aquela política macroeconômica forçou o setor exportador a apostar num processo de alto risco: antecipar cada vez mais, mediante crédito externo, as receitas de exportação, convertendo-as em reais, faturando os juros mais altos do mundo e ainda pagando os empréstimos recomprando dólares a um preço mais baixo. Ou seja, o BC tem grande parcela de responsabilidade nos problemas das empresas exportadoras, diante da súbita contração do crédito externo e da desvalorização do real.

Num contexto de juros internos altos e redundantes, de forte queda dos juros internacionais, de contração de demanda externa e interna, e até de deflação de preços de commodities de importação e exportação, os juros do Banco Central poderiam ter sido reduzidos desde o início da crise, rápida e significativamente. Não existem condições mais propícias do que essas, ainda mais quando simultâneas. Mas o Banco Central só vai tratar de juros daqui a 45 dias, como se vivêssemos uma época de normalidade.

Um dos argumentos para justificar essa inércia é que o grande problema não é a Selic, mas as elevadíssimas taxas de juros dos bancos. Não faz sentido. Primeiro, porque o BC deveria, sim, empenhar-se mais do que o fez para que os bancos diminuíssem seus spreads. Segundo, a Selic, bem ou mal, dá o piso à pirâmide de juros da economia. Terceiro, a mais alta taxa de juros da dívida pública do mundo induz os bancos a emprestar menos e mais caro. Quarto, e este é um argumento fundamental, porque o custo fiscal da Selic é gigantesco: cada ponto de juros vale mais de R$11 bilhões.

Uma análise econômica mais sólida e atitudes mais seguras do BC aumentariam a confiança, tão enfraquecida, dos agentes econômicos. Só palavras, otimismo e boas intenções não vão nos ajudar a sair da crise.

JOSÉ SERRA é governador de São Paulo.

Ex-sindicalista, Lula diz que eles ''têm de cobrar mesmo''

Vera Rosa
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Quase 31 anos depois de comandar a primeira greve que desafiou o regime militar, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não se cansa de dizer a quem conversa com ele sobre a crise financeira que, na sua época de sindicalista, tudo era mais difícil. Ainda assim, não esconde a preocupação com o crescente desemprego e incentiva antigos companheiros a pressionar o próprio governo, em busca de saídas para aliviar a crise.

"Vocês têm que cobrar mesmo!", admitiu Lula no encontro com dirigentes de centrais sindicais, há uma semana, no Palácio do Planalto. Na tentativa de animar os colegas, o presidente lembrou, porém, que o movimento sindical passou um bom período negociando ótimos reajustes, antes da crise . "No meu tempo, a gente brigava só para repor a inflação."

Lula fala desse tempo como se ainda estivesse no palanque, quando helicópteros do Exército sobrevoavam o Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo. Nesses momentos sua fisionomia se descontrai: dono de memória privilegiada, ele conta histórias com dia, mês e ano e dá risadas. Sabe até hoje de cor nome e apelido de todos os que com ele conviveram, de Ratinho a Bagaço. "Éramos um bando de desaforados", afirma.

Foi na greve da Scania, em maio de 1978, que o torneiro mecânico Lula - então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema - projetou o novo sindicalismo. Irritado com o que chamava de "quirelinha" de reajuste - em geral concedida por decreto presidencial -, Lula propôs que os operários se rebelassem. A paralisação, que começou na Scania, alastrou-se para outras fábricas, culminando, no ano seguinte, com uma greve geral.

"Tive a sorte de nascer no momento mais rico do movimento sindical", diz o presidente. Impressionado com a onda de demissões, Lula agora age para evitar que empresários usem a crise para insistir na flexibilização de direitos trabalhistas.

Em várias reuniões na semana passada, ele prometeu anunciar um pacote de medidas para manter o emprego e o consumo. Haverá desonerações de impostos para os setores mais afetados pela crise e incentivo à venda de carros usados.

"Na minha época, o cara que trabalhava na indústria automobilística estava no céu", recorda Lula, ao demonstrar preocupação com a turbulência que hoje atinge as montadoras. "Era uma categoria valorizada e é exatamente por isso que foi a primeira a fazer greve."

Ex-diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, o deputado Devanir Ribeiro (PT-SP) descreve com saudade aqueles anos bicudos. "Vivíamos um momento quase primitivo", conta Devanir, que conviveu com Lula no sindicato até a intervenção de 1980. "Brigávamos até por papel higiênico. Era mais difícil fazer acordo. Hoje há muita tecnologia, mas não tem tanto emprego."

Sem querer mexer no vespeiro da redução da jornada com corte de salário, o Planalto vai reativar fóruns de negociação entre governo, trabalhadores e empresários. Os grupos seguirão o formato das antigas câmaras setoriais, mas Lula detesta esse rótulo. Motivo: não quer que as reuniões pareçam cópia do modelo adotado na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Coisas da política.

Crise global e desemprego em alta revigoram o movimento sindical

Paula Pacheco
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Centrais sindicais organizaram protestos, mobilizaram trabalhadores e foram ao presidente pedir queda dos juros

Fazia tempo que as centrais sindicais não tinham tanto espaço. Com o corte drástico de empregos, os presidentes das entidades ganharam voz nas negociações com governadores, presidentes de federações de indústrias, empresários, ministros e até com o presidente da República. Demorou, mas Luiz Inácio Lula da Silva, que fez fama nos anos 70 e 80 no movimento sindical, encontrou antigos e novos companheiros.

O encontro, na segunda-feira, juntou presidentes das seis centrais. Dois dias depois foi a vez de José Maria de Almeida, 51 anos, da Conlutas, falar com Lula. "O governo precisa tomar medidas. Não dá para confiar que a situação começa a melhor em março. Isto não vai acontecer", diz o líder da central mais a esquerda de todas.

A bandeira defendida foi a de pressão governamental sobre os bancos para que baixem os juros. Assim as empresas podem tomar empréstimos a um custo menor e manter os empregos. Em outra ação conjunta, as centrais mobilizaram cerca de 100 mil pessoas na quarta-feira em frente aos nove escritórios do Banco Central com o objetivo de pressionar para a queda da taxa básica de juros.

A nova fase do sindicalismo dá visibilidade a companheiros bem conhecidos, como Paulo Pereira da Silva, o Paulinho da Força Sindical, 52 anos, e a uma geração mais nova, como a de Artur Henrique Silva Santos, de 47 anos, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), a maior do País, com 20 milhões de trabalhadores.

Para Santos, a maior conquista dos últimos tempos foram os sucessivos aumentos do salário mínimo. Com 22 anos de vida sindical, iniciada no Sindicato dos Eletricitários de Campinas (SP), o presidente da CUT diz: "Muita coisa mudou. A esquerda brasileira optou pelo caminho eleitoral, democrático. Mas nós ainda acreditamos no socialismo. Este modelo de capitalismo não leva a nada".

Wagner Gomes, 52 anos, da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (a CTB, surgida de um racha na CUT), afirma que, apesar da proximidade com o governo, não se pode abrir mão da autonomia. "Pode dialogar, mas sem esquecer que você está lá para defender os interesses dos trabalhadores", lembra.

As centrais sindicais brigaram muito pelo reconhecimento oficial, o que só aconteceu no ano passado. Com isso os 20% do total arrecadado com a contribuição sindical (valor descontado da folha de pagamento dos empregados equivalente a um dia de trabalho) que ia para o governo caiu para 10%. A outra metade, por volta de R$ 56 milhões, passou para as mãos das centrais. Sozinha a CUT fica com cerca de 35%, seguida pela Força (12%), União Geral dos Trabalhadores (UGT, com 6,29%), Nova Central (6,27%), Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB, com 5,09%) e Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB, com 5,02%).

Ricardo Patah, 55 anos, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT, dissidência da Força) e do Sindicato dos Comerciários de São Paulo, comenta que o papel dos sindicatos e das centrais hoje é bem diferente dos anos 80. "Os trabalhadores tinham uma verdadeira admiração pelos sindicatos, que ajudaram a acabar com a ditadura. Hoje a questão é mais capitalista e há mais união entre as centrais", opina.

Presidente da Nova Central, José Calixto Ramos, 80 anos, acredita que "nunca houve no movimento sindical um momento de vacas gordas. A luta nunca foi fácil nem nunca será". Para Ramos, quando a economia vai mal é mais difícil mobilizar os trabalhadores. "A possibilidade de demissão apavora quem quer se aproximar do movimento sindical. O próprio Lula admitiu na reunião com as centrais que a crise existe de fato. A situação é delicada e depende da mobilização de patrões, empregados e governo".

Presidente da CGTB (originada na Central Geral dos Trabalhadores), Antonio Neto, 56 anos, está otimista com o crescimento das centrais. "A situação hoje é bem melhor. Antes não tínhamos participação no governo como agora, no Conselhão, no Conselho de Segurança Alimentar e Conselho de Política Industrial", comenta.

Ex-ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto analisa que é um fenômeno mundial a busca por proteção sindical quando a economia vai mal. "Isso não é viver a vida sindical de forma ativa". O especialista concorda com a tentativa de Lula de juntar todos os lados para negociar, mas critica a lentidão do presidente: "Um dia depois de assumir o presidente americano congelou os salários altos do funcionalismo. Que sirva de lição para um momento como este".

Temporário é alvo fácil nas listas de demissões

Paula Pacheco
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Desaceleração deixa 7,7 milhões de trabalhadores na berlinda

Com a desaceleração da atividade econômica, o desemprego avança e ameaça principalmente quem tem contrato temporário ou terceirizado. Como esse tipo de relação trabalhista é frágil, fica mais simples e barato para as empresas a dispensa desses profissionais do que a de funcionários com vínculo tradicional. Todos os 744 demitidos da General Motors de São José dos Campos (SP), por exemplo, eram temporários.

Segundo estimativa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), cerca de 25% dos profissionais com carteira assinada no País têm a chamada relação precarizada com seus empregadores - o que inclui terceirizados, temporários, que são a maioria, além de estagiários e os contratos como pessoa jurídica. Isso significa que cerca de 7,7 milhões de brasileiros estão na berlinda e têm mais chance de perder o posto de trabalho neste momento. Foi o que ocorreu com Fabrício Correia, 29 anos, de Curitiba (PR).

O metalúrgico começou a trabalhar na montadora Volvo em 1º de outubro do ano passado num contrato temporário com validade de seis meses. Dois meses depois, Correia e outros 200 empregados temporários foram informados pela fábrica que o fim do contrato seria antecipado. "Quando a gente entra numa empresa como temporário sonha que o trabalho será reconhecido e a efetivação vai acontecer mais cedo ou mais tarde. Fiz planos, estava muito feliz por trabalhar numa empresa como a Volvo", lamenta o operário.

"Esses são os vínculos mais frágeis, os primeiros a serem rompidos", afirma Roberto Gonzalez, técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento. Aos 26 anos, o pedreiro Francisco Costa coleciona três carteiras de trabalho e já perdeu a conta de quantos empregos teve em dez anos de mercado. Costa lamenta a falta de garantias: "Às vezes levamos o calote dos empreiteiros e não temos a quem reclamar".

Segundo Antônio de Sousa Ramalho, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de São Paulo (Sintracon), os contratos temporários diminuem as garantias legais para os empregados e possibilitam que os empregadores paguem salários abaixo do que é definido em acordo coletivo.

O diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas (SP), Eliezer Mariano da Cunha, é ainda mais crítico. Para ele, ter profissionais terceirizados e temporários é uma forma de as empresas "aumentarem seus lucros e gastarem menos com as obrigações trabalhistas". Na região, montadoras, empresas de autopeças e do setor de eletroeletrônicos optam pelos temporários, segundo Cunha, e já vêm demitindo.

Nem o comércio escapou dos cortes dos temporários. Projeção do Clube Nacional dos Diretores Lojistas indica que, em janeiro, o comércio deve absorver apenas 3% dos temporários contratados para as vendas de fim de ano. Normalmente, a absorção é de 10%.

Pedro Sigliano, gerente da agência de empregos Gelre, diz que normalmente esses trabalhadores ficam nas empresas pelo menos até o fim de janeiro, época de trocas de presentes de Natal e de liquidações. Se a atividade econômica vai bem muitos são efetivados.

Não foi o caso de Lídia Bacelar Costa,de 20 anos. Ela foi chamada como temporária para uma loja do Shopping Center Norte, em São Paulo. Lídia não gostou da experiência. "A diferença de salário para um contratado era de até R$ 500", diz.

Na análise de Denise Motta Dau, secretária nacional de Organização da Central Única dos Trabalhadores (CUT), temporários e terceirizados são os primeiros a perder o emprego. "A empresa em geral os considera um custo variável. Precisou é só cortar", comenta.


BH vira a capital do desemprego

Andrea Vialli
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Em dezembro, 21 mil foram demitidos segundo Caged; em termos relativos, corte é maior que em SP e Porto Alegre

A região metropolitana de Belo Horizonte começou o ano de 2009 com um novo e amargo título: capital nacional do desemprego. A Grande BH foi a que mais perdeu empregos em dezembro - foram 21.059 vagas a menos no mês, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), divulgados na semana passada. É uma queda de 1,64% em relação a dezembro de 2007.

Em termos absolutos, a Grande São Paulo perdeu mais postos de trabalho - 63.241 vagas - mas o impacto do desemprego na capital mineira é maior em termos proporcionais, ao se levar em conta o tamanho da população. Na Grande BH, 0,84% da população economicamente ativa (PEA) perdeu o emprego. Na Região Metropolitana de São Paulo, o desemprego foi de 0,64% e na Grande Porto Alegre, de 0,56% da PEA.

"Belo Horizonte foi a capital que mais contratou ao longo de 2008 e também a que mais rapidamente sentiu os efeitos da crise internacional. Isso levou a um maior número de demissões em dezembro", afirma Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

A queda nas exportações e na demanda interna de setores como mineração, metalurgia e siderurgia - que juntos respondem por 40% do Produto Interno Bruto (PIB) da indústria de Minas Gerais - limou 88.062 vagas de trabalho em todo o Estado em dezembro.

"O bom desempenho da economia mineira até outubro de 2008 era resultado da demanda aquecida por minério de ferro e aço. Agora, mineradoras e siderúrgicas são justamente as indústrias que mais demitem em Minas Gerais", diz Osmani Teixeira de Abreu, presidente do conselho de Relações do Trabalho da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg).

Em novembro, o PIB da indústria mineira encolheu 25% em comparação com outubro, segundo o último balanço divulgado pela Fiemg. Nos próximos dias saem os números de dezembro. "Serão piores", diz Abreu.

Com a fartura de crédito até setembro, a indústria automobilística (13% do PIB da indústria) também vinha contribuindo para o aquecimento da economia de Minas Gerais. Agora, para evitar que o nível de emprego caia ainda mais na região de Betim, município da Grande BH que abriga a Fiat e grande parte de seus fornecedores de autopeças, o sindicato dos metalúrgicos já aceitou discutir a flexibilização de contratos de trabalho com 14 empresas.

INCERTEZA

O mecânico-borracheiro Márcio Antônio Quintão, de 40 anos, recebeu uma péssima notícia no dia 31 de dezembro. Após nove meses de trabalho, ele foi dispensado pela empresa Bailac, uma prestadora de serviços da Vale em Itabira, a 104 quilômetros de Belo Horizonte.

Quintão recebia um salário de R$ 927. Agora, o orçamento da família de quatro pessoas se resume ao salário mínimo que a esposa, Valdete de Morais, de 38 anos, recebe como empregada doméstica. "Eu aceitaria até a redução do salário. O que não posso é ficar sem emprego, isso acaba com a gente."

A suspensão e cancelamento de contratos da mineradora com empreiteiras prestadoras de serviço já levaram à demissão de 1.560 funcionários terceirizados somente em Itabira, segundo o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração do Ferro e Metais Básicos (Metabase) do município e região. Apenas uma empreiteira, a Sales Gama, demitiu 600 trabalhadores. Além de Quintão, outros 53 empregados foram dispensados pela Bailac após o estouro da crise internacional.

De acordo com o economista Hélio Zylberstajn, pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), as empresas que vinham em ritmo acelerado até o terceiro trimestre de 2008 agora terão de se adaptar aos novos tempos, o que significa perda de postos de trabalho. "Essas companhias estavam ajustadas para o crescimento crescente de 2008. Em 2009 isso não vai acontecer."