terça-feira, 12 de maio de 2009

O PENSAMENTO DO DIA

”Os elementos principais do senso comum são fornecidos pelas religiões e, conseqüentemente, a relação entre senso comum e religião é muito mais intima do que a relação entre senso comum e sistemas filosóficos dos intelectuais. Mas também com relação à religião, é necessário distinguir criticamente. Toda religião, inclusive a católica (ou antes, sobretudo a católica, precisamente pelos seus esforços de permanecer “superficialmente” unitária, a fim de não fragmentar-se em igrejas nacionais e em estratificações sociais), é na realidade uma multiplicidade de religiões distintas e freqüentemente contraditórias: há um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequenos burgueses e dos operários urbanos, um catolicismo das mulheres e um catolicismo dos intelectuais, também este variado e desconexo. Sobre o senso comum, entretanto, influem não só as formas mais toscas e menos elaboradas destes vários catolicismos, atualmente existentes, como influíram também e são componentes do atual senso comum as religiões precedentes e as formas precedentes do atual catolicismo, os movimentos heréticos populares, as superstições científicas ligadas às religiões passadas, etc.”


(Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, volume 1, pág. 115 , Civilização Brasileira, 2006.)

Depuração da espécie

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Presidente do PPS, Roberto Freire anda inconformado com a rejeição mais ou menos generalizada à proposta de introduzir o instrumento das listas fechadas no sistema eleitoral brasileiro, em substituição à votação nominal e direta nos candidatos a deputado federal, estadual e vereador.

Ele considera equivocado e, sobretudo, conservador no pior dos sentidos - o da conservação de um sistema que, na visão dele, só tende a piorar cada vez mais a qualidade da representação - o argumento de que as listas apenas reforçariam o poder de mando das cúpulas partidárias, tirando do eleitor a prerrogativa de escolher seu representante no Legislativo.

"Acho que não está havendo uma compreensão correta do assunto, tratado como se o atual sistema não fosse justamente o causador das deformações mais graves: o fisiologismo, a cooptação, a compra de votos. Ele interessa a todos aqueles cujo compromisso limita-se à sobrevivência do próprio mandato."

O eleitor, na visão de Roberto Freire, seria o primeiro e principal beneficiado pela mudança.

"Qualquer partido minimamente sério, com a lista fechada, teria todo o interesse em escolher seus melhores quadros, de mais prestígio e respeitabilidade para representá-lo na eleição, porque, ao contrário do que acontece hoje, a legenda passaria a ter responsabilidade direta sobre o elenco de candidatos. Eles desenhariam o perfil do partido, para melhor ou para pior."

Cita dois exemplos. O primeiro, Delúbio Soares, que tentou e desistiu de ser reintegrado do PT.

"Ele hoje não entraria na lista preparada por nenhum partido com razoável zelo pelo próprio nome. No entanto, teria toda facilidade de se eleger pelo sistema de escolha aberta, porque tem dinheiro, relações influentes na política (nacional e local) e sabe muito bem mobilizar as ferramentas necessárias para obter votos."

O segundo, Sérgio Morais, o deputado que se "lixa para a opinião pública" e acha natural apresentar notas fiscais frias para justificar o uso da verba indenizatória se a prática não é explicitamente proibida por escrito.

"Depois desse episódio, ele também não entraria numa lista fechada de candidatos, a menos que o partido não se importasse de ser identificado pelo eleitor com o deputado que se lixa para ele. Aliás, só disse o que disse porque para se eleger não depende de nada a não ser de sua capacidade individual de se utilizar de recursos e relações pessoais."

Muito bem, mas esses mesmos recursos não poderiam ser utilizados para o candidato obter favores da direção partidária e conseguir integrar o rol dos escolhidos?

"Poderia, claro, só que a imprensa em algum momento descobriria isso. Inclusive porque no sistema de listas fechadas os meios de comunicação teriam uma relação diferente. Começariam a esmiuçar a maneira como as listas seriam montadas."

Hoje, argumenta Roberto Freire, os candidatos são aceitos sem qualquer questionamento. Os partidos buscam quem tem votos ou capacidade de produzi-los, sem se importar com os métodos.

Não vão atrás de pessoas de prestígio e respeitabilidade. Estas, aponta o presidente do PPS, ou são menosprezadas ou querem distância da política. Exatamente para não se misturar com o que há de pior em matéria de conduta.

Com a lista fechada, as legendas seriam mais seletivas na escolha dos candidatos porque o eleitor já conheceria previamente o que cada uma lhe oferece. "Hoje não existe esse compromisso prévio. O eleitorado joga a rede no mar de candidatos dispersos e não tem a menor ideia do resultado da pesca. Dá para imaginar um partido apresentando um rol repleto de candidatos com processos nas costas?"

Contrariamente ao raciocínio de Roberto Freire, pelo comportamento da maioria é, sim, perfeitamente possível imaginar um grupo de dirigentes com o poder de escolher quem será ou não eleito fazendo desse poder uma mercadoria. Na atual conjuntura é algo muito verossímil.

"Sem dúvida. Mas, isso na primeira, ou nas primeiras eleições. Com o tempo, a qualidade da lista passa também a qualificar o partido, pois a sociedade começa a fazer uma avaliação mais programática."

Por essa ótica, se o eleitor não tem de escolher um indivíduo, ele vai escolher de acordo com o partido que lhe ofereça melhores opções, o que levaria as legendas a aprimorar as ofertas de candidatos a fim de obter mais votos e conquistar mais vagas nos Legislativos federal, estaduais e municipais.

Isso, segundo Freire, é o que ocorre nos países de partidos fortes. "Mesmo onde houve ditadura.

No Brasil, acabaram com os partidos por decreto. Em outros países os partidos foram postos na ilegalidade e quando voltou a democracia eles retornaram como antes, pois já tinham identificação arraigada na sociedade."

Um tanto estranho à realidade nacional o pensamento?

"Pode até ser, mas o que não dá mais é para facilitar a vida de quem aposta na continuidade das coisas como estão e perder a oportunidade da crise para mudar."

Limpeza política

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

A prova de que o aparelhamento do Estado com o preenchimento de cargos em estatais com indicados de políticos não é uma política eficiente está na necessidade de enxugar a estrutura da Infraero para que ela possa abrir seu capital e para que alguns aeroportos possam ser privatizados. A decisão do governo de fazer uma limpeza na estatal que controla os aeroportos do país, para torná-la mais atraente para o investidor privado, é a admissão de que ela nunca deveria ter sido tomada por indicações políticas. A falta de estrutura profissionalizante na Infraero e na Agência Nacional de Aviação Civil, que também passa por uma reformulação, certamente teve reflexos no recente caos aéreo, que ainda deixa suas sequelas.

O brigadeiro Cleonilson Nicácio, novo presidente da Infraero, aprovou um estatuto que obriga que as diretorias de administração, operações, finanças, comercial e engenharia sejam preenchidas por funcionários de carreira do quadro da Infraero.

No novo esquema, foram restritos a 12 os "contratos especiais", que já chegaram a ser mais de 200, com salários mensais que podem ir a mais de R$13 mil. Só com o fim desses contratos, a estatal terá uma economia de mais de R$19 milhões ao ano.

E quem estava nessa "boquinha" que foi fechada? Ninguém menos que um irmão e a cunhada do líder do governo Romero Jucá (PMDB-RR), a ex-mulher do líder do PMDB, Henrique Alves (RN), um indicado pelo ex-presidente da Câmara, o petista Arlindo Chinaglia, e outros menos votados.

Ontem, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que é um político do PMDB, mandou um recado depois de ter uma audiência com o presidente Lula: as demissões estão mantidas. E deixou no ar uma ameaça: "Se não for para fazer um trabalho sério, não é o meu ambiente".

Os líderes do PMDB atingidos pela limpeza ética não se envergonharam de terem sido apanhados com a boca na botija, tanto está entranhada a cultura clientelista de indicar parentes e amigos para cargos para os quais não estão minimamente capacitados.

Uma atitude normal dentro do sistema franciscano de fazer política "é dando que se recebe". O senador Romero Jucá, líder dedicado tanto a governos tucanos como petistas, desde que seus interesses sejam atendidos, sentiu-se genuinamente destratado pelo governo a que serve com tanto zelo.

E, na prática, talvez desanimado com tamanha ingratidão, deixou passar diversas alterações no Senado na medida provisória 449, que definiu o perdão de dívidas tributárias e o parcelamento de débitos de empresas.

Na Câmara, o PMDB foi mais explícito e uniu-se ao oposicionista DEM para derrotar o governo que apoia, ampliando o alívio financeiro aos prefeitos.

Foram apenas alguns avisos para lembrar ao governo o poder de fogo que o maior partido do país tem para defender seus interesses.

Ao que parece, a solução será ampliar mais ainda o poder do PMDB dentro do governo, dando-lhe o que é o seu objeto de desejo no momento, um lugar entre os chamados "ministros da casa", isto é, aqueles que têm gabinetes próximos ao presidente Lula no Palácio do Planalto e fazem parte do núcleo político decisório do governo.

Como não é possível cobiçar os cargos da chefe do Gabinete Civil, Dilma Rousseff, nem do ministro da Comunicação, Franklin Martins, e muito menos do secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, o único remanescente do núcleo duro original, o único cargo cobiçável é o do ministro de Relações Institucionais, hoje ocupado pelo PTB.

O deputado José Mucio já demonstrou interesse em ir para o Tribunal de Contas da União, e é provável que se encontre por aí uma saída para contentar o PMDB pelo momento.

Outro cargo que deverá ficar livre em breve é o do secretário-particular Gilberto Carvalho, se ele for mesmo assumir a presidência do PT. Mas esse é um cargo de extrema confiança do presidente Lula, e dificilmente entrará em barganhas políticas.

Um problema para incluir alguém do PMDB nesse restrito grupo de assessores presidenciais é a incerteza quanto o apoio formal do partido à candidatura oficial de Dilma Rousseff.

Como é possível admitir-se nos centros decisórios mais fechados um político cujo partido pode estar na trincheira inimiga dentro de poucos meses?

O fato é que a reestruturação da Infraero, e a privatização de alguns aeroportos importantes do país, como o Galeão/Antonio Carlos Jobim, no Rio de Janeiro, mostram bem que o governo tem um discurso político que freqüentemente é atropelado pela realidade.

A privatização foi demonizada por Lula na campanha eleitoral de 2006 e foi a pá de cal na candidatura franzina do tucano Geraldo Alckmim, mas de lá para cá o governo reeleito já privatizou rodovias, hidrelétricas e agora aeroportos, justamente partes da infra-estrutura que necessitam de investimentos de modernização incapazes de serem feitos pelo governo.

É o raciocínio oposto ao que aconteceu recentemente no Banco do Brasil, onde, após a intervenção do Palácio do Planalto, um presidente ligado ao secretário-particular de Lula e provável futuro presidente nacional do PT, Gilberto Carvalho, foi nomeado a pretexto de reduzir o spread dos financiamentos, e o PT passou a controlar cinco das nove vice-presidências, o PMDB ficou com uma vice-presidência e apenas três são ocupadas por técnicos sem ligações partidárias explícitas.

O governo sabe que essa maneira de gerir um banco é menos eficiente do que a profissionalização, mas vai para o lado que o vento sopra, dependendo da ocasião.

Outras estatais, que continuam sendo fatiadas e entregues aos indicados pelos partidos políticos que formam a heterogênea e insaciável base parlamentar que apoia o governo, deveriam seguir o mesmo critério atual da Infraero, se o governo quisesse que se tornassem máquinas eficientes de políticas públicas.

Entre oligarquias e plutocracias

Cláudio Gonçalves Couto
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Ainda em meio à avalanche de escândalos que lhe tem assolado, o Congresso Nacional retoma (uma vez mais) as discussões em torno da sempre tão conclamada "reforma política". É curioso, aliás, que ela seja tão alardeada, uma vez que "reforma política" é algo que pode assumir incontáveis formatos, de significados completamente díspares. O clamor em torno dela tem mais a ver com uma percepção mais ou menos generalizada de que o sistema político funciona mal do que com convicções precisas acerca de quais os remédios apropriados à cura dos males percebidos.

Isto é ainda mais verdadeiro se o que se busca com uma "reforma política" é a concretização de consensos sobre os desenhos institucionais desejáveis; afinal, tais consensos simplesmente inexistem. Por isto, muitos dos que bradam na mídia pela "reforma política" sequer saberiam responder o que entendem concretamente por ela se fossem instados a fazê-lo. Ou ainda pior, seriam capazes de vociferar em prol de fórmulas prontas do tipo "voto distrital" ou "financiamento público de campanhas", sem medir exatamente as conseqüências que tais medidas teriam sobre nossas instituições. Desta forma, "reforma política" nada mais seria do que uma ilusória palavra-mágica, um abracadabra cuja enunciação serve apenas para vituperar contra a ordem política posta.

Mas o fato é que os verdadeiramente envolvidos com propostas de mudança institucional (legal ou constitucional) que podem, cada uma delas, ser considerada uma pequena reforma do sistema político, estes efetivamente sabem quais as prováveis implicações das mudanças. Digo aqui "prováveis", pois nunca é possível antecipar com certeza completa todas as eventuais conseqüências que mudanças das instituições políticas poderiam vir a ter sobre o sistema.

Tomemos o exemplo da catastrófica (e ilegítima) decisão de reformar as regras eleitorais das eleições nacionais e estaduais que acabou denominada como "verticalização das coligações". Ao legislar a partir dos tribunais (daí sua ilegitimidade) com vistas a nacionalizar os partidos nas eleições federais e estaduais, seus propositores conseguiram o contrário - os partidos médios e pequenos se estadualizaram como forma de manter a flexibilidade aliancista que lhes viabilizou eleitoralmente.

Hoje boa parte da discussão sobre a reforma política tem incidido sobre dois aspectos relacionados de um mesmo problema: a reforma das regras eleitorais. O primeiro desses aspectos diz respeito à proposta de substituir o vigente sistema eleitoral, de listas abertas nas eleições proporcionais (para deputados e vereadores), por um de listas fechadas. O segundo concerne ao financiamento público de campanhas. Por questão de espaço, tratarei aqui apenas do primeiro aspecto.

No atual sistema, o eleitor pode votar tanto num candidato qualquer, como na legenda de um partido, definindo-se o percentual de cadeiras a que cada partido terá direito com base na soma do total de votos dados aos candidatos e à legenda. No sistema alternativo, o eleitor passaria a votar exclusivamente na legenda de um partido, sendo a lista de candidatos definida pelo partido previamente à eleição, de forma ordenada; os partidos continuariam a ter direito a um número de cadeiras correspondente à proporção de votos recebidos - que desta feita não poderiam mais ser dados a pessoas.

Os defensores desse modelo alternativo alegam que ele reforça os partidos e facilita a escolha do eleitor, que em vez de ter de escolher um nome entre os milhares de candidatos que lhe são apresentados, passaria a optar por uma dentre as pouco mais de duas dezenas de legendas existentes. Já os detratores deste modelo apontam que ele reforçaria as oligarquias partidárias, pois a definição da ordem dos candidatos nas listas seria estipulada pelos caciques dos partidos, a despeito das preferências dos eleitores. O sistema de lista aberta, alegam eles, seria mais democrático por permitir ao eleitorado definir a ordem dos eleitos. Deste modo, seria um antídoto contra as oligarquias.

Considerando-se a péssima qualidade de nossa classe parlamentar (o termo elite sequer é apropriado aqui), a idéia de que o sistema atual previne contra oligarquias não parece ter muita sustentação. Ademais, estudo de Jairo Nicolau ("Como controlar o representante? considerações sobre as eleições para a Câmara dos Deputados no Brasil") mostra que apenas 35,5% dos eleitores votam em candidatos que conseguem se eleger. Desta forma, apenas 1/3 do eleitorado teria alguma influência efetiva na ordenação dos eleitos - o resto fica a ver navios. Onde está o poder do eleitor?

Mas vale acrescentar um ponto crucial: o atual sistema eleitoral eleva sobremaneira os custos de campanha, se comparado a sistemas alternativos. É muito caro eleger-se deputado num sistema de lista aberta, concorrendo com um número avassalador de adversários (inclusive de sua própria agremiação) e tendo de percorrer todo um Estado para assegurar a eleição. Se compararmos tal sistema tanto com o de " voto distrital " (em que se concorre dentro de um território bem mais delimitado contra um número também mais reduzido de candidatos), quanto com o de lista fechada (em que a campanha se dá " no atacado " , para o partido como um todo), o modelo adotado no Brasil é apropriado para eleger uma plutocracia - dos que obtêm boas verbas de campanha. E sabendo-se como tais verbas são obtidas, pode-se dizer que esta plutocracia tende a ser não só oligárquica, como também corrupta. Podemos, portanto, escolher: ou continuamos com oligarcas-plutocratas-corruptos, ou arriscarmos ficar com os escolhidos por oligarcas partidários, como faz a grande maioria das democracias que adota a representação proporcional mundo afora.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da PUC-SP e da FGV-SP. O titular da coluna, Raymundo Costa, está em férias

Opinião e público

Carlos Heitor Cony
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

RIO DE JANEIRO - Deputado federal desconhecido irritou a mídia ao declarar que estava se lixando para a opinião pública. No fundo, quis dizer que se lixava para a própria mídia, que segundo ele, não forma nem informa a dita opinião pública.

A reação dos veículos de comunicação foi, como se devia esperar, imediata e truculenta. A declaração do deputado foi considerada um insulto -e, na realidade, a intenção dele deve ter sido essa. Além das intenções, o que sobra é o conteúdo de sua afirmação. Há mesmo uma opinião pública ou apenas uma opinião do público? Não parece, mas são coisas diferentes.

A começar pela raiz da questão. Ao se falar em opinião pública, imagina-se um pensamento ou um sentimento comum sobre determinado assunto ou coisa. A opinião do público é como aquela dona da ópera de Verdi: "è mobile". Além disso, o público é heterogêneo por definição e mal informado por formação.

Até que a mídia não tem culpa nisso tudo. Ela faz o que pode. Não é perfeita nem dá conta do recado integralmente. Às vezes tenta fazer mais do que pode, às vezes se estrepa. O fato é que o público, a mídia, os governantes, os representantes do povo fazem parte de uma coisa complicada e imperfeita que é a sociedade.

É comum e banalíssimo apelar para ela, em nome da qual é cobrado um comportamento cívico e moral mais que perfeito, como se ela, a sociedade, fosse a pedra de toque, o referencial básico para o julgamento dos atos e fatos humanos. Na realidade, o único referencial existente e imutável é o próprio homem, feito do barro e destinado ao pó.

Pessimista profissional, gosto de citar um dos melhores personagens de Shakespeare, o vilão Iago: "men are men". Os homens são homens.

Jeito errado

Panorama Econômico :: Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO

A melhor razão para mudar a forma de remuneração da poupança é dar mais um passo na desindexação da economia. O melhor momento da mudança já passou: era ter feito com antecedência, e não apressadamente, entre uma e outra reunião do Copom. A melhor atitude do governo era não alimentar a especulação. A melhor postura da oposição era entender o seu próprio legado.

Um tema que poderia ser um avanço no lento processo de revisão do "arcabouço institucional brasileiro", como diria o Copom, acabou contaminado pela briga eleitoral de 2010, antecipada pelo próprio governo. Ter taxas fixas de remuneração, como tem a caderneta de poupança, é um entulho de uma época de inflação e juros altos no Brasil, duas anomalias contra as quais o país tem lutado. Para ter previsto esse momento, o governo precisava ter, no Ministério da Fazenda, capacidade de formulação de política econômica, o que não tem há muito tempo.

Os erros agora foram: ter que fazer algo de forma apressada, deixar o assunto ser contaminado pela política, ter dito que faria a mudança antes de estudar a melhor forma de fazê-la e estar apenas preocupado com o risco de os fundos de investimento perderem a competição com a caderneta de poupança.

Durante anos houve o contrário: a poupança tinha remuneração bem menor que os fundos e isso não tirou o sono de nenhuma autoridade de Brasília. Hoje, as taxas de retorno dos dois produtos se aproximam, em parte, pelas altas tarifas de administração cobradas pelos bancos.

Este problema é dos bancos. Eles ganharam, no ano passado, R$17 bilhões de taxas de administração de carteiras, cujo único trabalho que lhes dão é recolher o dinheiro e aplicar em títulos do Tesouro, sem risco algum. O que concerne ao poder público é continuar o aperfeiçoamento do Sistema Financeiro Nacional.

Grandes depósitos de caderneta de poupança deveriam, há muito tempo, ter perdido o benefício fiscal. O não pagamento de Imposto de Renda só faz sentido para as pequenas contas.

Neste caso da poupança todos erraram: governo e oposição. O governo porque foi o primeiro a alimentar a especulação de que alguma coisa iria mudar. O presidente da República e o ministro da Fazenda fizeram isso em diversas declarações, que mais lançavam dúvidas que esclareciam.

A caderneta é um instrumento tradicional de poupança popular; o Brasil é um país que não se recuperou ainda do trauma do Plano Collor. Tantos anos depois, as autoridades podem ter perdido a noção do tamanho do absurdo que foi cometido naquele triste governo. O instrumento de poupança de milhões de pequenos poupadores, que durante décadas foi sempre apresentado como "garantido pelo Governo Federal", enfrentou confisco e congelamento de depósitos.

Por isso, a frase da propaganda política do PPS - "O governo vai mexer na poupança, como fez o governo Collor" - foi irresponsável, porque bateu numa ferida e deixou intranquilos poupadores que têm pouco acesso a informações. O PSDB e o DEM, ao se recusarem a qualquer mudança, demonstram, de novo, que não entenderam o que fizeram. Vale lembrar: a desindexação da economia brasileira foi uma extraordinária mudança feita no país, que permitiu ao Brasil sair do limbo da hiperinflação concentradora de renda para o patamar de país com finanças organizadas. O respeito que o Brasil tem hoje só foi possível porque o Plano Real iniciou o processo de se livrar da terrível herança da indexação deixada pelos militares. Também para refrescar a memória da oposição: o Plano Real foi concebido sob a liderança do então ministro Fernando Henrique Cardoso, que, depois, durante seus oito anos no poder, manteve o processo de livrar o país do peso dos esqueletos e entulhos deixados pelo longo período de alta inflação.

Quando foi estabelecido o patamar mínimo de juros para a poupança, o Brasil tinha inflação alta demais e 6% de rendimento real pareciam nada. Depois, o Brasil manteve juros altos por tanto tempo que a insensibilidade permaneceu. Hoje, o país tem a chance de ter e manter juros reais abaixo de 6% ao ano. Esse avanço não chegou abruptamente. Por isso, a mudança na caderneta de poupança deveria ter sido pensada com antecedência pelo atual governo. Agora, ficam governo e oposição se acusando, e ambos têm razão: os dois lados estão errados. Mudar a poupança não é dar uma "tungada" no poupador. Se for bem feita, pode ser avanço de política econômica; e a mudança não pode ser feita para proteger os fundos de investimento na competição com a caderneta e, sim, para que não haja um patamar que impeça a queda da Selic.

O que paralisa o governo não são as razões nobres - proteger a poupança popular ou manter o financiamento para a dívida pública -, mas o risco de fazer algo impopular que o faça perder votos. O que atiça a oposição não são as razões nobres, mas, sim atingir a popularidade do governo.

É assunto complexo, delicado, técnico, que não viaja bem no ambiente curto-prazista e envenenado de uma campanha política. O que o governo está escolhendo agora, no seu cardápio de opções, é o que o fará perder menos votos, e não o que a economia brasileira precisa para se aperfeiçoar.

O Pacto Republicano segura os empregos?

José Pastore
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Para proteger os empregos nacionais, os países ricos têm usado e abusado de medidas protecionistas.

Nos EUA, as novas obras de infraestrutura e as compras do governo só podem ser feitas com o uso de bens e serviços nacionais, com pequenas exceções. Os bancos que receberam ajuda do governo estão proibidos de contratar profissionais estrangeiros. Na Europa, o cerco aos imigrantes também aperta, enquanto os governos subsidiam a criação de empregos domésticos.

Não defendo o protecionismo para gerar empregos. Ele é perigoso e difícil de ser eliminado. Mas tampouco posso aceitar uma conduta hostil ao emprego, como é o caso do Brasil, que tributa as exportações e os investimentos destinados à geração de postos de trabalho. O presidente Lula vai sair do governo como entrou: não fez as reformas tributária, trabalhista e previdenciária.

As várias comissões instituídas para a reforma dos impostos, as reuniões do Fórum Nacional do Trabalho (criado em 2003) e do Fórum Nacional da Previdência Social (criado em 2007) consumiram milhares de horas de trabalho, sem nenhum resultado prático.

No mês passado, Lula lançou mais um fórum, pomposamente chamado de Pacto Republicano para acelerar a modernização das instituições nacionais.

O Brasil já tentou vários pactos. Em 1985, como candidato, Tancredo Neves prometeu um pacto para fazer convergir os interesses dos empregados e dos empregadores. Lula foi contra, dizendo que Tancredo desejava, na verdade, "calar a boca do trabalhador". O presidente José Sarney buscou fazer o pacto de Tancredo. A CUT e o PT responderam com uma onda generalizada de greves e nunca sentaram à mesa de negociação. O pacto foi um natimorto. Enquanto isso, muitas nações vêm realizando acordos para atenuar os efeitos da crise no campo do trabalho.

A Coreia do Sul, por exemplo, acaba de fazer um acerto voluntário. Com uma vasta parcela da produção exportada, o país era um sério candidato a uma devastação do emprego. Isso não ocorreu e não vai ocorrer. Representantes dos empregados, empregadores, governo e organizações civis reconheceram que, nada fazendo, todos perderiam. Reconheceram ainda que só a solidariedade da parceria poderia salvar a nação.

Com isso em mente, tais representantes aprovaram o "Acordo para Superar a Crise Econômica". As quatro partes decidiram compartilhar sacrifícios. Entre as medidas aprovadas constam:

A retenção das pessoas empregadas, rateando os empregos existentes, expandindo a participação de trabalhadores temporários, estagiários, estendendo o prazo para efetivação, reduzindo jornada, mudando turnos, alocando empregados em várias atividades, estimulando o trabalho em casa, intensificando o treinamento, adotando novas formas de remuneração, reduzindo e até devolvendo (!) salários; redução de outros custos empresariais, antes de extinguir empregos; diminuição dos encargos sociais; redução de impostos para as empresas que mantiverem os empregos; concessão de subsídios para as empresas que retiverem empregados, apesar de precisar dispensá-los; apoio aos desempregados atingidos pelo fechamento de estabelecimentos; apoio de crédito para evitar o fechamento de pequenas e médias empresas; e redução das despesas com educação dos filhos dos empregados (The agreement by labor, management, civic groups and government to overcome the economic crisis, fevereiro de 2009).

As organizações da sociedade civil terão o papel de apoiar as medidas com o povo, fazendo campanhas de esclarecimento e estimulando doações, trabalho voluntário e outras contribuições para viabilizar o acordo. A Coreia do Sul já havia usado a mesma estratégia para superar a grave crise de 1998. De lá para cá, houve vários outros acordos bem-sucedidos. O último é um verdadeiro pacto de emergência, assinado por quem sabe que cada parte, sozinha, não conseguirá deter o que tem. O empresário perderá a empresa. O empregado perderá o emprego. E o governo perderá a governabilidade.

É uma crise para a qual, sem a participação efetiva das partes envolvidas, as instituições básicas da democracia - Executivo, Legislativo e Judiciário -, sozinhas, são impotentes para resolver o problema. Isso vai muito além de um Pacto Republicano. Não seria isso mais urgente no Brasil?

*José Pastore é professor de relações do trabalho da Universidade de São Paulo

Construindo um Brasil justo e democrático

Sérgio Nobre
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Temos orgulho das lutas que fizemos e de tudo o que conquistamos, mas estamos longe ainda do Brasil que sonhamos para nossos filhos

HOJE, 12 de maio, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC completa 50 anos, e quero homenagear os milhares de homens e mulheres que escreveram uma parte importante da história da classe trabalhadora brasileira. São rostos anônimos que enfrentaram os tanques da ditadura, que saíram às portas de fábricas, às ruas e lotaram praças e estádios para exigir liberdade, justiça e melhores condições de vida.

Nas greves de 1978, os trabalhadores do ABC escreveram com seus próprios corpos a palavra democracia no Paço Municipal de São Bernardo, praça que, assim como o estádio da Vila Euclides, transformou-se em palco histórico das lutas da categoria. Como não lembrar das assembleias com mais de 100 mil trabalhadores, o Fundo de Greve, que recebeu a solidariedade do país inteiro, a passeata de mulheres no 1º de Maio de 1980 contra a prisão arbitrária de seus maridos, dirigentes sindicais que exerciam o direito de livre manifestação?

Como não lembrar dos nomes criativos com os quais foram batizadas as greves: "Braços Cruzados", "Máquinas Paradas", "Operação Tartaruga", "Vaca Brava", "Greve Pipoca", "Cachorro Louco", "Mula Sem Cabeça", "Greve Abelha" e muitas outras?

Como não lembrar do "Hoje não tô bom", frase que abria as cartas de João Ferrador, personagem símbolo dos metalúrgicos? Ainda perseveramos no "Tô vendo uma esperança", frase tantas vezes repetida pela Graúna, criação de Henfil, que, com seus personagens, colaborou com a organização de nossas lutas.

Todo esse processo rico e combativo formou uma consciência e, dela, um contingente enorme de militantes e lideranças que hoje estão nas universidades, nas ONGs, nos movimentos populares e nas várias esferas do poder público. Comandam cidades, Estados e o país e têm nas demandas populares a sua causa. As homenagens por esses 50 anos se estendem também aos trabalhadores e trabalhadoras que, dia após dia, produzem riquezas e se diferenciam pela solidariedade adquirida nas mobilizações contra as injustiças e na defesa de seus direitos.

Há que destacar a coragem da categoria, que não se intimidou ao enfrentar as mudanças propostas pelo neoliberalismo, que, nos anos 1990, tinha o objetivo declarado de desregulamentar a economia para permitir a livre ação das forças de mercado. É dessa época a pregação de que o ABC se transformaria na Detroit brasileira, uma região desindustrializada e com graves problemas sociais.

A resposta veio com muita competência na nossa articulação de um fórum tripartite envolvendo sociedade civil (trabalhadores e empresários) e Estado na busca de soluções. Trata-se da experiência da Câmara Setorial da Indústria Automotiva, que rompeu a tradição de uma política industrial definida só pelo Estado ou construída nos bastidores por empresários.

Temos muito orgulho das lutas que fizemos e de tudo o que conquistamos. No entanto, estamos longe ainda do Brasil que sonhamos para os nossos filhos. Completar o processo de implantação da democracia no Brasil é a maior ambição do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Para nós, no entanto, democracia não pode ser entendida apenas como o direito ao voto. Vai além. É também o direito de se organizar sindicalmente no local de trabalho. Isso significa opinar e participar das decisões que afetam a vida do trabalhador em temas como condições de trabalho, emprego, produção, salário, formação profissional, escolaridade e, por que não, da própria gestão das empresas.

A CUT (Central Única dos Trabalhadores), central a que somos filiados, nasceu com o objetivo de mudar a estrutura sindical brasileira. Pouco avançamos nesse terreno. Perdura ainda o famigerado imposto sindical, que serve apenas para manter sindicatos sem representatividade.

Existem mais de 14 mil entidades sindicais no país, a maioria sem nenhum poder de mobilização e de compreensão do seu papel nos dias de hoje.

Essa estrutura não pode continuar a existir, sob pena de não conseguir responder às novas demandas que o mundo globalizado apresenta à classe trabalhadora. Foi o que aconteceu agora, com a enxurrada de demissões provocadas pela crise internacional.

Apesar de o país vir de um período de cinco anos consecutivos de crescimento do PIB, recordes de produção e faturamento, as empresas se sentiram à vontade para demitir trabalhadores arbitrariamente. Não foi por acaso que as poucas resistências ao desemprego vieram de sindicatos que não se acomodaram, não vivem de imposto sindical e construíram representatividade nas suas respectivas categorias.

Nossa missão histórica não estará cumprida enquanto essa estrutura estiver em pé, tampouco será completada a democracia que sonhamos. Parabéns a todos os que escreveram essa história e aos que ainda a constroem.

Sérgio Nobre, 44, é presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

Tempos interessantes

Marcos Nobre
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


FAZ ALGUM tempo que não se ouve falar da frase infeliz de Lula sobre a crise no Brasil ser "marolinha". Talvez por ter o governo se saído muito bem na emergência. Foi rápido, eficiente e focado. Pareceria mesquinhez continuar a criticar Lula por esse erro. Não que a competência do governo Lula em reagir à crise deva ter efeitos eleitorais relevantes. É tarefa das mais difíceis convencer alguém de que se evitou o pior quando não se sabe o que ele seria, já que o pior não aconteceu. Mas serviu pelo menos para zerar o jogo eleitoral de 2010: o país não quebrou.

Como não quebrou em 2003.

Claro que são situações muito diferentes. Não se pode igualar uma crise essencialmente interna a uma ameaça de depressão econômica em nível mundial. Mas a comparação pode ser muito instrutiva sobre o que mudou no país nesse período.

A resposta à crise em 2003 foi mais ortodoxa do que os manuais de economia mais ortodoxos. A resposta de 2008 rompeu pela primeira vez com o terrorismo econômico que se instalou desde a estabilização econômica da era FHC: pode-se baixar substancialmente a taxa de juros sem que o mundo acabe.

E é só pelos cantos que alguém se arrisca hoje a dizer que as políticas agressivas de dispêndio público do governo para sustentar crédito, emprego, renda e atividade econômica são equivocadas. Falar isso um ano atrás seria um crime de lesa-mercado.

Outras lendas ainda mais antigas e duradouras foram desfeitas. Quem falasse em fortalecimento do mercado interno era considerado um sobrevivente dos anos 1960, um dinossauro econômico.

Só que a demanda interna foi até agora fator decisivo para impedir um retrocesso maior do crescimento. Mais que isso: as políticas de aumentos reais do salário mínimo, de benefícios especiais da Previdência e os programas de transferência de renda tiveram papel relevante no menor declínio da atividade econômica. Ficou transparente o caráter ideológico da defesa de que crescimento econômico só se dá em oposição a distribuição de renda, uma tese de longa duração no Brasil.

Apesar de toda a lama da política, algo mudou. Se não houver uma reviravolta ideológica nos próximos tempos, um velho pacto de dominação vai balançar. A elite econômica e política aceitou tanto a ditadura como a democracia desde que o Estado sustentasse a injustiça distributiva a seu favor. Não apenas com injustiça fiscal, mas, principalmente, com inflação, ou, depois de 1994, com altas taxas de juros. Vão ter de inventar outra. Serão tempos interessantes. Há algo de bom na crise, afinal.

“A diferença é que o PSDB age às claras”

Sérgio Montenegro Filho
ENTREVISTA » SÉRGIO GUERRA
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Decidido a amenizar o clima conturbado que envolve os partidos da antiga União por Pernambuco (PMDB, DEM,PSDB e PPS), provocado pelas manifestações de simpatia de alguns prefeitos tucanos e democratas à reeleição do governador Eduardo Campos (PSB), o presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra, resolveu abrir o verbo. Acusado nos bastidores da oposição de assumir uma posição “dúbia”, ele confirma sua relação de amizade com o governador e diz que continuará apoiando projetos de interesse do Estado. Mas garante que em 2010 o PSDB estará fechado com o nome definido pela oposição. Embora admita que haverá algumas dissidências de tucanos que mantêm relação antiga com Eduardo, não vê nisso ameaça à unidade oposicionista. Por último, manda um recado duro aos aliados. “Vamos continuar agindo como agimos. A diferença é que o PSDB faz as coisas às claras. Nós não temos dono”.

JC – Dirigentes de partidos aliados ao PSDB têm enxergado uma postura dúbia do senhor com relação ao governo Eduardo Campos. Qual a real posição dos tucanos diante do palanque socialista?

SÉRGIO GUERRA – Desde que sou político algumas pessoas insistem nesse cenário de postura dúbia. A idéia que desenvolvi na vida pública é a de que é preciso separar os objetivos permanentes dos conjunturais. Fui líder da oposição no meu primeiro mandato de deputado estadual. Fiz uma feroz oposição ao governo Roberto Magalhães, com uma bancada heterogênea do PMDB, que na época reunia todos os partidos. Certo dia, uma mensagem do governador sobre Suape foi para a Assembleia. Alguns companheiros tinham posição negativa, mas eu, como líder, apoiei o projeto, que foi aprovado por ser de interesse vital de Suape.

JC – Depois, o senhor se elegeu deputado federal e trabalhou no governo Arraes. A relação mudou?

GUERRA – Não. Mantive a determinação de fortalecer a base econômica local, com projetos que melhorassem a situação de Pernambuco. Por quase dez anos eu coordenei a bancada federal, e era notoriamente defensor do projeto Suape, inclusive no Orçamento da União. Quando Joaquim Francisco assumiu o governo, meu lado era outro, mas muitas vezes ele me procurou para pedir ajuda na Câmara Federal e eu ajudei. O mesmo aconteceu no governo do meu amigo Jarbas Vasconcelos. E no governo atual, de Eduardo Campos, eu, como senador, continuei apoiando todos os projetos de Pernambuco. Liberação de recursos fundamentais para o Estado tiveram minha participação: Transnordestina, estaleiro. Até com o polo de poliéster, sobre o qual tenho algumas divergências, eu colaborei. Poderia citar vários outros episódios como esses em que atuei, nos quais sempre separei o que é permanente do que é conjuntural.

JC – O que o senhor chama de questão conjuntural?

GUERRA – Eu era pré-candidato a governador em 2006. Tinha pesquisas que mostravam um equilíbrio entre meu nome e o de Mendonça Filho (DEM). Jarbas disse que achava mais justo que Mendonça fosse o candidato, e no outro dia, sem resistência, apoiamos Mendonça, enfrentando vários companheiros que tinham preferência por Eduardo Campos. Só dois ou três prefeitos do PSDB insistiram em votar nele porque tinham uma relação antiga e permanente. Mas o partido apoiou Mendonça, indicou inclusive o vice. Aí veio a disputa no Recife em 2008, e nós apoiamos o candidato de Jarbas (Raul Henry). Poderíamos ter apoiado novamente Mendonça. Nós apoiamos dezenas de campanhas no interior que não eram do PSDB, mas da União por Pernambuco, do PMDB e do DEM, que estavam concentrando forças na capital. Nós enfrentamos o governo de Eduardo na área metropolitana quase toda.

JC – Então o senhor condena as críticas dos aliados?

GUERRA – As pessoas precisam compreender que no Nordeste nós podemos nos dividir sobre questões eleitorais, conjunturais, até mesmo ideológicas. Mas não sobre questões de interesse do Estado. Foi isso que fiz a vida inteira e não vou deixar de fazer, porque é produto do meu mandato de senador. Não vou chegar em Pernambuco e dizer que quero me reeleger senador só porque virei presidente nacional do PSDB, ou porque apareço muito nos meios de comunicação. Preciso dizer ao povo que fiz isso e aquilo, e para isso preciso colaborar com prefeituras e com o governo do Estado, como sempre fiz e continuarei a fazer.

JC – O senhor, então, está decidido mesmo a tentar a reeleição ao Senado?

GUERRA – Dos três citados às eleições majoritárias pela União por Pernambuco, eu sou o único que assume a candidatura. Jarbas ainda não se desenvolveu como candidato, nem Marco Maciel. Eu, sim, confirmo a intenção de me candidatar.

JC – E quanto à relação pessoal com Eduardo Campos? Seus aliados estariam, então, misturando com a relação política?

GUERRA – Esclareço com a maior tranquilidade. Primeiro, sempre admirei o avô de Eduardo. Na minha primeira campanha de senador (2002) eu estava com sérias dificuldades eleitorais e fui dar uma entrevista a um jornal. Me perguntaram se Arraes era o atraso, e eu, na oposição a ele, declarei que ele não era isso, e fiz a ele os devidos reconhecimentos. Evidente que muita gente não gostou. Agora, tenho relações pessoais com Eduardo e com a família dele. E ele com a minha família. Ele tem projetos para Pernambuco que eu apoio intensamente. Todos eles. Além disso, Eduardo é presidente nacional do PSB e eu do PSDB. Temos relações nacionais equilibradas. Nós somos aliados em Minas Gerais, seremos aliados no Paraná e acho que na Paraíba. Posso sentar com Eduardo para discutir projetos, política nacional e política local. Até porque aqui no Estado, Eduardo tem as mesmas restrições que eu tenho, e que são insuperáveis: ele tem um candidato a presidente e eu tenho outro.

JC – É difícil manter essa relação sem ser alvo de críticas? Por exemplo, por causa das inserções do PSDB na TV, em que o senhor exibe sua colaboração com governadores adversários.

GUERRA – Sou um político civilizado e afirmativo. Só que a minha afirmação não é da boca para fora, é em relação a fatos. Eu contribuo com Pernambuco, com os projetos, e foi para isso que o povo me elegeu. E não vejo tanta chiadeira por isso. A única pessoa que falou comigo sobre essa questão das inserções do PSDB foi o deputado José Mendonça (DEM), com a maior tranquilidade e correção possíveis. Me disse que somos aliados e que achava que isso criaria confusão pública. Não acho. Estamos testando essas inserções. Aquela foi a primeira, e haverá outras, nas quais vamos desenvolver todo o processo a que aquela primeira se referia. Vamos mostrar a minha vinculação com as obras que apoiei nos diversos governos em Pernambuco. Porque como candidato a senador, vou dizer na campanha quem foram os governadores e prefeitos que ajudei. Acho que essa é a atitude correta num Estado pobre, é a atitude adequada que vou assumir enquanto for político.

JC – Como fica a questão dos prefeitos? As adesões a Eduardo estão acontecendo, e a oposição se queixa...

GUERRA – Eu não sou político que diz que tem “tantos prefeitos”. Não sou dono de prefeito. Tenho aliados. Quem tem que ter prefeito é o povo, e não o senador ou o deputado. Tenho compromisso é com a democracia, com a modernidade, e não com o atraso. Alguns prefeitos do PSDB – e não são muitos – não votaram em Mendonça Filho porque tinham relação com Eduardo. Esses tendem a votar nele novamente, mas isso nem está discutido. E é preciso analisar o momento atual, não somente em relação aos prefeitos do PSDB. O problema é que nós fazemos as coisas às claras, o nosso partido não tem dono. Imagine um prefeito do interior que recebe um governador candidato à reeleição, aliado do presidente Lula, que tem uma força enorme no Estado. E chega lá e faz ou promete obras que o prefeito precisa. Do outro lado está a oposição, que ainda nem tem candidato. Evidente que isso desequilibra. É uma disputa invencível. Esses são os fatos. O resto é conversa.

JC – O PSDB, então, fica na oposição, mesmo com dissidências?

GUERRA – O PSDB votará no candidato da União por Pernambuco. Apoiará totalmente esse candidato, como fez há seis meses (2008), e há dois anos (2006). Nas campanhas, toda essa questão dos prefeitos vai se dissipando, porque temos firmeza, unidade e força. E vamos mostrar que temos.

JC – E essas especulações de que o senhor seria contra a candidatura de Jarbas ao governo, porque gostaria de ser o candidato?

GUERRA – Isso é conversa de débil mental. A pessoa que mais tem procurado Jarbas para que assuma a candidatura sou eu. Há um mês conversei com ele e Marco Maciel e disse que a aliança deveria decidir logo que pudesse os seus candidatos. Se eu quisesse ser candidato a governador, Jarbas me apoiaria. Como ele disse que teria me apoiado para prefeito na eleição municipal. No momento, porém, Jarbas é o nome mais forte, que mais reúne no povo e na política. Se ele será ou não candidato, ele vai decidir no tempo certo.

JC – Fala-se numa aliança entre PSDB e PSB no futuro, após a eleição de 2010, pelas afinidades entre as duas legendas. É possível isso?

GUERRA – No PSDB, no DEM, no PPS, em vários partidos, inclusive do PT, tem gente de centro-esquerda, que teria condições de, no futuro, se unir. Mas não acredito em nada disso, porque a forma como os partidos se organizam nos Estados impede essa mobilidade. E o PT é muito ruim de aliança. O PSB converge conosco em vários Estados, em outros não. Uma vitória tucana em 2010 vai nos levar a buscar uma aliança em torno de um projeto que vamos desenvolver no Brasil, e acho que se houver uma grande reforma política, isso é possível. O País vem pedindo isso há muito. Mas sem a reforma, restará apenas esse conflito permanente em torno do nada, que mediocriza, que cupiniza o Congresso Nacional.

No palanque com aliados

Aline Moura
DEU NO ESTADO DE MINAS

Na primeira viagem ao Nordeste na campanha para disputar a Presidência da República, Aécio eves reúne líderes tucanos, do PPS e do DEM e discursa em defesa das prévias no PSDB

João Pessoa – A estréia dos tucanos na preparação da campanha presidencial de 2010 conseguiu reunir, em torno do governador Aécio Neves (PSDB), os principais líderes dos partidos aliados, como o presidente do DEM, deputado federal Rodrigo Maia e do PPS, Roberto Freire, além do ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann (PPS-PE). Para cerca de mil militantes, prefeitos, deputados e senadores, reunidos no Hotel Tambaú, em João Pessoa, na Paraíba, Aécio defendeu a realização de prévias no partido para a escolha do candidato à Presidência da República no ano que vem como a melhor maneira de mobilizar as bases tucanas.

O argumento é de que elas viabilizarão também uma maior aproximação com setores que hoje apóiam o governo Luiz Inácio Lula da Silva. Dando mostras de que pretende atrair também aliados do atual governo, Aécio aproveitou para elogiar o governador de Pernambuco e presidente do PSB, Eduardo Campos, com quem diz ter muitas afinidades.

Pouco antes do seminário “o PSDB e as políticas sociais: passado, presente e futuro”, Aécio contestou os argumentos de quem vê na consulta a possibilidade de criar um racha na legenda.

“Alguns a compreendem como um instrumento que possa levar a divisão do partido. Outros, como eu, acreditam firmemente que as prévias são uma extraordinária possibilidade de você mobilizar o partido, as bases, reencontrar-se com setores importantes da sociedade brasileira, que já estiveram muito mais próximos a nós do que estão hoje”, disse ele. O governador de São Paulo, José Serra, também pré-candidato ao Planalto, foi convidado mas não compareceu, alegando problemas de agenda. O secretário-geral do PSDB, Rodrigo de Castro, acredita que Serra e Aécio estarão juntos já no próximo encontro, marcado para o fim do mês.

Para o governador de Minas, mais importante do que a definição de um candidato é construir um projeto sólido o suficiente para que o PSDB se apresente ao eleitor como alternativa de poder, no momento em que o PT não terá mais como candidato a figura carismática do presidente Lula.

“As pessoas precisam olhar para a nossa aliança e compreenderem o que ela apresenta de diferente, quais os avanços em relação ao governo atual, no campo da gestão pública de qualidade, no campo das políticas de desenvolvimento regional, tão importantes para o Nordeste, as ações sociais que estão sendo aqui hoje discutidas, a nossa visão em relação à política exterior”, disse.

Estrela principal do evento promovido pelo PSDB na Paraíba, primeiro estado do Nordeste escolhido para se discutir os avanços nos programas sociais do governo Lula numa eventual gestão tucana, Aécio estimulou a direção partidária a organizar as prévias até o início do ano que vem, para dar oportunidade ao debate dos pré-candidatos e projetos de cada um. A ênfase a este ponto foi dada minutos depois de o presidente do partido, senador Sérgio Guerra (PE) informar que realizaria as primárias, mas torcia por um consenso entre os dois tucanos antes do embate.

“Seria um grande momento para o partido surgir com um candidato no início do próximo ano e ter mais do que um nome: ter a definição de um projeto. Essa é uma decisão que será tomada pela direção do partido e eu as estimulo”, afirmou. Aécio acrescentou que nenhum candidato vencerá apenas seguindo um projeto pessoal, mas terá que ser legitimado por um consenso. “O candidato a presidente da República não pode ser candidato de uma vontade pessoal. Uma candidatura à Presidência da República, para ter viabilidade, precisa ter necessariamente uma grande dose de naturalidade. Ela precisa ser percebida pelas pessoas como instrumento de transformações, de avanços”, afirmou.

Para Serra, BC sabe pouco de economia; por isso erra

Yan Boechat, de São Paulo
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Duas semanas após comparar a política monetária praticada pelo Banco Central com o esquema fraudulento criado pelo italiano Carlo Ponzi na década de 20 nos Estados Unidos, o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), voltou à carga de ataques à instituição comandada por Henrique Meirelles. Serra reafirmou que o BC errou ao não baixar os juros de forma mais aguda no auge da crise financeira e disse acreditar que os economistas que fazem parte do Comitê de Política Monetária (Copom) não estão preparados para a função.

Indagado se, assim como Ponzi, o BC agia de má fé na definição da política monetária, Serra declinou da hipótese, mas afirmou que falta conhecimento econômico ao Banco Central. "O problema é que eles têm conhecimento insuficiente das variáveis econômicas, mas não serei maldoso em afirmar que há má fé, todos que estão lá querem acertar, mas o conhecimento econômico é insuficiente", afirmou.

José Serra vem adotando a prática de criticar as políticas monetária e fiscal do Planalto desde o início do ano, quando a corrida eleitoral começou a dar mostras claras de que seria antecipada. Evitando entrar em questões ligadas a programas de governo específicas, como o PAC e o Bolsa Família, Serra elegeu o Banco Central como principal responsável pelas mazelas decorrentes da crise global que o país enfrenta hoje.

Ontem, durante o almoço de encerramento de um fórum sobre a crise organizado pela revista "Exame", ele voltou às críticas, dessa vez afirmando que o BC perdeu uma oportunidade única de desvalorizar o real sem criar pressões inflacionárias. "O BC poderia ter baixado os juros em 300 ou 400 pontos base no auge da crise que não haveria inflação, mas só foi agir em janeiro", afirmou o governador.

Perguntado sobre qual taxa de juros ele acreditava ser a ideal para o país nesse momento, José Serra eximiu-se de responder, afirmando que estava ali apenas como governador e economista.
"Embora o presidente (Luiz Inácio Lula da Silva), os partidos e a imprensa me considerem pré-candidato, eu não assumi e não vou falar nessa condição", afirmou, no início de seu discurso.

Inicialmente José Serra iria dividir as atenções no encerramento do fórum com a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, a pré-candidata petista, também não-assumida. Mas, assim como aconteceu no último evento que participaria com o governador de São Paulo, há duas semanas, Dilma cancelou sua presença.

Enquanto José Serra abria mão do papel de pré-candidato, o governador mineiro Aécio Neves, principal adversário de Serra na disputa interna do PSDB, se assumia como tal quase no outro extremo do país. Aécio foi até João Pessoa (PB) participar de um seminário de seu partido sobre políticas sociais. No evento de que também participaram o presidente do PSDB, Sérgio Guerra, e o presidente do DEM, Rodrigo Maia, a grande ausência foi exatamente a do governador de São Paulo. Aécio Neves, uma vez mais, se colocou como opção do PSDB e seus aliados para ser o candidato à Presidência nas eleições de 2010.

A economia de Serra e de Dilma

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Governador paulista evita falar sobre economia para não arrumar problemas com Lula e o PSDB, mas dá algumas pistas

DILMA ROUSSEFF chega ao segundo turno em 2010 e deixa os "mercados nervosos". Por quê?

Porque a candidata de Lula e do PT corre o risco de perder para José Serra (PSDB). Lula e o PT se travestiram de tal modo nos últimos sete anos que a piada faz sentido, embora a banca e grandes empresários prefiram, de coração, Antonio Palocci a Dilma ou a Serra. O primeiro ministro da Fazenda de Lula ninguém esquece, não importam seus rolos. Palocci tirou a economia petista-lulista do armário. Ainda inspira suspiros poéticos e saudades em grandes empresários, que preferem "alguém de conversa mais mansa".

A fama de Dilma e de Serra os precede. Teriam ideias próprias demais, seriam arrogantes e, diz a lenda, tentariam colocar Banco Central, setor privado etc. numa linha dura. Mas o que pensa Serra?

Serra está na "oposição" à política econômica desde quando ministro do Planejamento de FHC (ou melhor, desde sempre), pois crítico da política do real forte "cum" déficits (externo e fiscal) que causou o colapso de 1999. Fala vez e outra sobre economia, "como economista". Instado a falar sobre alternativas, cala-se. Não quer esquentar a disputa no PSDB nem ter problemas com Lula.

Ontem, Serra foi a um encontro de economistas promovido pela revista "Exame". Disse que o BC errou ao elevar os juros quando a crise já corria solta e ao cortá-los tardia e vagarosamente.

Não havia risco de inflação, pois mesmo a grande e "positiva" desvalorização do real não afetou preços. No texto de sua exposição, Serra entra em mais detalhes.

Acredita que a política monetária teria o mesmo efeito com juro mais baixo (importantes seriam as variações a partir desse patamar). Mesmo com o zunzum global do "pior já passou", o BC deve cortar juros e comprar dólares. "O ideal" teria sido o BC cortar a Selic de três a quatro pontos percentuais no auge da crise. A queda brusca de juros não teria então causado mais fuga de capital, que "decorria de motivos outros que não o diferencial de juros".

A "timidez" do BC ajuda a provocar nova valorização excessiva do real ("ajuda", pois várias moedas emergentes sobem), dado o "absurdo" diferencial de juros entre Brasil e resto do mundo, o que prejudicará de novo a exportação de manufaturas. Serra acha "absurdo" que o país tenha tido déficit externo mesmo com a grande alta das commodities, quase 60% das nossas exportações.

Serra elogia Lula nas reduções de impostos sobre bens duráveis; elogia o papel do BNDES na reestruturação de grupos industriais afetados pela ciranda cambial. Diz que o BC acertou ao emprestar dólares para empresas, que ficaram sem crédito externo na crise. Mas critica o baixo investimento público e gastos com servidores, que vão ter "impactos substanciais" até os primeiros dois anos do próximo governo federal.

Para o governador, o baixo grau de abertura econômica e a baixa das dívidas externa e pública protegeram o país do tumulto global, assim como o peso dos bancos estatais (um terço do crédito), o baixo endividamento das empresas e as transferências de renda para os mais pobres (Bolsa Família, outros benefícios assistenciais, INSS etc.). Nem de longe é um programa. Mas é uma pista. Parecida com a de Dilma.

VULTOS INVISÍVEIS (poema)

Graziela Melo

Eram
Vultos

Invisíveis

Quase
Ocultos

Na
Penumbra

Das
Lembranças

Das

Imagens

Fugidias

De
Adultos

De
Crianças

De
Amigos

Inesquecidos

Para
Sempre

Despedidos

Vagos
Rostos

Poeirentos
Desbotados

Arquivados

Na
Desordem

Da
Minh'alma

Nos
Arquivos

Da
Memória

Nas
Despensas

Da
História....

Rio, 27/08/2004

Ser feliz é parecer feliz

Arnaldo Jabor
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / CADERNO 2

Ontem comecei um filme sobre a "busca da felicidade", essa ideia fixa do Ocidente, transcrita até na Constituição americana. No filme, não trato da atual "bem-aventurança" atual, mas de uma felicidade "de época", ao fim dos anos 50. Não havia ainda a abertura "psicológica" de hoje; a felicidade se encolhia pelos cantos de um cotidiano reprimido, temeroso de grandes alegrias, dentro e fora das famílias. Era quase feio demonstrar muito prazer, como se a risada fosse um luxo. Minha avó aconselhava: "Cachez votre bonheur" (esconda sua felicidade)... Era diferente do narcisismo compulsivo que vemos agora, com ricos, jovens e famosos expondo suas gargalhadas na mídia.

Felicidade muda com a época. Antigamente, a felicidade era uma missão, a conquista de algo maior que nos coroasse de louros, a felicidade demandava o sacrifício. A felicidade se construía. Hoje, felicidade é ser desejado, é ser consumido. Confundimos nosso destino com o destino das coisas. Uma salsicha é feliz? Os peitos de silicone são felizes?

Ja escrevi sobre isso e volto agora por causa do filme, ao examinar com fascínio as revistas mundanas. Olho com inveja e rancor as fotos dos afortunados, pois todos são mais felizes do que eu. Ser feliz é parecer feliz.

A dúvida e as dores da vida são ocultadas. Já houve tempo em que era chique não sorrir, já houve os olhos fundos dos existencialistas, a cara abatida dos beats, fotografias em que o espectador era olhado com desprezo acusatório. Hoje as celebridades parecem dizer: "Azar o teu por não estares aqui, ?seu? anônimo. Aqui, não há fracassos, não há o Inconsciente. Ninguém pode deprimir. Tristeza não é comercial.Tudo é claro e óbvio como nossas gargalhadas."

Na felicidade industrializada, só o excesso é valorizado. Não há a contemplação elegante da delicadeza, nem a tradição de uma feliz sabedoria, de uma serenidade discreta. Nossa felicidade não é minimalista; está mais para uma imitação carnavalesca de Luiz XIV.

As personagens da mídia feliz vivem como se não houvesse armadilhas na existência; apenas o narcisismo óbvio é cultuado como sendo o ideal a atingir. Este conceito redobrou em força, depois que morreram os antigos agentes da dúvida, os socialismos e desbundes. Assistimos ao triunfo da caretice disfarçada de libertação.

As fotos dos deslumbrados e deslumbrantes não precisam de caricatura; elas se criticam sozinhas, elas são paródias de si mesmas.

"Estaremos aqui para sempre, eternos em nossas baladas e desfiles - parecem dizer -, conquistamos isto tudo, estes cães de luxo, estas sopeiras de porcelana, este vaso Ming falso."

Muito importante é ver, nas fotos de milionários e colunáveis, a cenografia onde eles posam como peixes em aquários de luxo, orgulhosos de seus tesouros: as casas e eles mesmos.

Não se veem vestígios dark. Tudo é novo, tudo brilha, tudo é presente. Contra o decorrer do tempo, existem os make overs, jorros de silicone e bochechas de botox. Para essa gente, não houve crises e mudanças no mundo. Não houve anos 60, nem guerras quentes e frias, nem fraturas ideológicas, muros caídos, fim de utopias, nada. Não aprenderam nada e não esqueceram nada, como disseram dos Bourbon.

Nas fotos, só aparecem gestos e coisas que gritam: lustres de cristal, galgos de bronze com olhos de safira, mármores falsos, ouro de tolos, ninfas de marfim, objetos no estilo catete-gótico, ?barroco Teodoro Sampaio? ou ?Early Lar Center?, atacando a arte contemporânea numa blitz feroz.

A decoração dos ambientes é para eles ou eles são para a decoração? As pessoas combinam com a casa. Uma vez uma perua me perguntou como era o restaurante aonde iríamos, para botar uma roupa que combinasse. É extraordinário como para eles tem de haver continuidade no mundo, uma coisa puxando a outra, numa lógica que começa num elefantinho de prata e acaba na ideia de Deus.

Em muitas fotos parece não haver figura e fundo. Há fotos em que os eternos felizes posam orgulhosos diante de seus retratos, criando um efeito narcísico de espelhos infinitos. Quem está ali? A dona ou o retrato?

Tudo ali é controlado pela ideia de simetria total. O abajur tem seu par, o castiçal tem seu par, o marido abraça a mulher em perfeita perspectiva com as duas colunas romanas que os ladeiam e todos os pecados se apagam ali no sereno tapete e no brasão do jaquetão de comodoro. Tudo passa a ideia de autossuficiência, de ilha de paz e tranquilidade, realização do ideal de casa, contra a rua do mundo. São abrigos contra o mundo, são abrigos antiatômicos num estilo rococó que resiste a todos os avanços do bom gosto; ali, pode-se viver, andar de cavalinho de plástico na piscina e rolar no veludo durante qualquer catástrofe econômica ou política. Nada os atingirá.

Os "venturosos" contemporâneos não se contentam em mostrar seus bens, caras e bocas; se sentem tão acima de nós, que adoram exibir e justificar qualquer vício, perversão ou vexame que cometam. Não há mais nada a esconder; ao contrário - eles têm o prazer de ostentar uma mentirosa autoconsciência, como se tivessem controle sobre o que são. "Ah... sim, eu já me prostitui muito, sim, eu gosto de transar em mictórios públicos, sim, me excita até ver cenas de crimes ou chacinas - me sinto liberado... sabe? Mas, tudo numa boa, sacou? Sou livre e maduro."

Mas, afinal, temos liberdade para desejar o quê? Bagatelas, mixarias, uma liberdade vagabunda para nada, para rebolar o rabo em revistas, uma liberdade fetichizada, produto de mercado disfarçado de revolta de festim. Somos livres dentro de um chiqueirinho de irrelevâncias, buscando ideais como a bunda perfeita, recordes sexuais, sucesso sem trabalho, a fama em vez do merecimento. Não precisamos fazer nada ou saber nada. Basta aparecer, pois o pior castigo é o anonimato.

No futuro (se houver algum...), essas colunas e revistas de ricos e famosos serão uma valiosa contribuição para a semiologia da nossa caretice.

O famoso Águia de Haia

José de Souza Martins
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ METRÓPOLE (ontem)

Eu fora convidado para dar um seminário a estudantes de pós-graduação no Rio de Janeiro, naquele dia à tarde. Seria um bate-papo informal sobre pesquisa que estava fazendo na Amazônia. Fui vestido informalmente: calça jeans, camisa de manga curta, sandálias e uma velha bolsa de couro que costumava levar nas viagens e no trabalho de campo com as coisas de que necessitava. Durante a pesquisa no Mato Grosso, primeiro, e no Pará, depois, muitos dos meus entrevistados, migrantes do Nordeste, diziam que estavam à procura das Bandeiras Verdes, terra mítica anunciada numa das profecias atribuídas ao Padre Cícero. Diziam-me que haviam lido sobre elas num dos romances sobre o Padim.

Conversei com especialistas e, finalmente, o escritor Orígenes Lessa sugeriu-me que procurasse o folheto na biblioteca da Casa de Ruy Barbosa, no Rio de Janeiro, que tem a nossa maior biblioteca de literatura de cordel. Aquela ida ao Rio era providencial pois aproveitaria para fazer a sondagem preliminar em busca do tal folheto. Desembarquei no aeroporto Santos Dumont ainda cedo. Naquela época, eu tinha uma cabeleira densa, desalinhada. Tomei um táxi, sentei-me ao lado do motorista e pedi-lhe que me levasse “à Casa de Ruy Barbosa, na Rua de São Clemente nº 134”.

Ele saiu dirigindo e de vez em quando me olhava de soslaio, a expressão indignada. Até que, finalmente, desabafou:

– Olha aqui, cara! Qué sabê de uma coisa? Eu acho que ele não vai te receber, não!

Achando que era gozação, entrei no jogo e respondi:

– Você acha? Por que?

– Pô, você tá todo esculhambado, sem paletó nem gravata! Você sabe quem ele é?

Eu quis, então, saber quem era Ruy Barbosa (1849-1923).

– Bem se vê que tu é paulista. Não sabe quem é Ruy Barbosa?! O maior jogador de futebol do mundo? O famoso Águia de Haia?

Fiquei pasmo. Era 1981 e estávamos na culta Rio de Janeiro. Em face de minha notória ignorância e da humildade que tive a prudência de mostrar, ele foi me explicando quem era Ruy Barbosa. Ele me descrevia um Pelé branco. Todos os atributos e habilidades eram os do competente e insuperável Pelé. Um jogador de futebol culto, dizia-me ele, que em campo xingava os outros jogadores em tupi-guarani. A isso fora reduzida a lenda de que Ruy Barbosa, na Conferência de Haia (1907), ao fazer seu primeiro discurso, perguntou ao presidente em que língua queria que falasse. Ao que ele concedeu-lhe que falasse em sua própria língua. Ruy teria, então, pronunciado denso discurso jurídico em língua tupi.

Chegamos à Rua de São Clemente pouco depois das 9 h, quando a casa-museu e a biblioteca já estavam abertas, janelas abertas, portão aberto.

– É, cara! Tu tá com sorte. Ele tá em casa!

*José de Souza Martins, Sociólogo, professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, é autor de Retratos do Silêncio, Coleção “Artistas da USP”, Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008; Sociologia da Fotografia e da Imagem (Editora Contexto, 2008); A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008); A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008.