domingo, 22 de novembro de 2009

Reflexão do dia - Fernando Henrique Cardoso

“É mais do que tempo de dar um basta ao continuísmo antes que seja tarde.”

(Fernando Henrique Cardoso, no artigo, Para onde vamos? – O Globo 1/11/2009)

Merval Pereira:: Sem terceira via

DEU EM O GLOBO

Ao procurar entender o que aconteceu nas eleições de 2006, trabalho coordenado pelo cientista político Cesar Romero Jacob, da PUC do Rio, publicado na edição de novembro da revista “Alceu”, pode ser útil aos debates sobre as próximas eleições presidenciais. Várias questões são levantadas ao se analisar as últimas eleições, mas as duas centrais no debate político atual são:

As eleições de 2010 serão polarizadas, como em 2006, ou desta vez terão um caráter plebiscitário? Haveria chance para uma terceira via? Começando pela possibilidade de haver uma terceira via que se contraponha à polarização entre PT-PSDB, o trabalho da equipe da PUC do Rio mostra que, até agora ela, não mostrou a sua viabilidade, pois não se observa nada em comum, do ponto de vista eleitoral ou geográfico, entre os terceiros colocados nas eleições anteriores: Brizola (1989), Enéas (1994), Ciro (1998), Garotinho (2002) e Heloísa Helena (2006).

A candidata do Partido Verde (PV), senadora Marina Silva, poderia vir a ser uma terceira via, na análise de Romero Jacob, se fosse adotada pelos evangélicos pentecostais, sendo ela evangélica.

Nesse caso poderia crescer na periferia, um dos três vetores das “estruturas de poder” identificadas no trabalho: as oligarquias nos grotões, os pastores pentecostais e os políticos populistas na periferia e a classe média urbana escolarizada.

Mas, ressalva Romero Jacob, ela nunca fez política usando a religião. “Não acredito na chance de ela vir a ter um desempenho expressivo a ponto de se impor por causa do discurso ambientalista”, diz ele.

Em contrapartida, a senadora Marina Silva teria muita dificuldade de ter voto no interior do país, onde os ruralistas têm muita força. Na classe média urbana, Marina pode tanto tirar voto do governador José Serra quanto de Lula, por razões diferentes, analisa Romero Jacob.

“O discurso dela será no sentido de que tanto PT quanto PSDB são faces da mesma moeda, a social-democracia produtivista, que não está preocupada com o meio-ambiente”.

Não é à toa, portanto, que tanto o governo federal quanto o governador de São Paulo estão se interessando pelo assunto.

Ela pode pegar os eleitores que em 2006 não votaram no Lula no primeiro turno, ou então aquelas petistas que acreditavam que o Lula faria um governo socialista, e não social-democrata.

Romero Jacob lembra que as oligarquias estão presentes em tudo. “Se o Lula tem o Sarney, o Renan Calheiros e o Collor, e o Serra tem o Quércia, o PV tem o Zequinha Sarney”.

Isso demonstraria que, do ponto de vista da estratégia política, não há mais diferença para se chegar ao poder.

Romero Jacob adverte que “nunca tivemos uma experiência de transferência de votos para presidente da República”, o que ressalta o fato de que, além dos apoios nesses setores da sociedade que definem o voto, o candidato tem que ter carisma, história política, e conseguir unir os partidos em torno de si.

Ao mesmo tempo, não há mais espaço, na opinião de Jacob, para o surgimento de uma candidatura individual como a do Collor. Segundo ele, Collor e Lula só se destacaram em 1989 por que a eleição não era casada.

“A máquina do PMDB não trabalhou para o Ulysses Guimarães e a do PFL não trabalhou para o Aureliano Chaves. Em condições normais, a máquina desses dois partidos iria trabalhar”.

Em 2006, Lula cai no Sul, o que significa, para Romero Jacob, que ele perde também em função do bolso, assim como cresceu no Norte e Nordeste por causa do Bolsa-Família: “Não é à toa que o câmbio está na ordem do dia, e esse é um fenômeno que está se repetindo agora”, analisa, se referindo aos exportadores que estão sendo afetados pela desvalorização do dólar.

Lula perde votação no Sul/ Centro-Oeste e sobe muito no Norte-Nordeste; Geraldo Alckmin é o contrário. Quando se comparam os mapas eleitorais dos dois, é o inverso. Alckmim perde três milhões de votos no segundo turno em 2006, e o mapa dos votos mostra que ele cai em Minas Gerais em todas as regiões, e em São Paulo só cresce na capital.

“Ele foi cristianizado pelo seu partido”, comenta Romero Jacob.

Em 2002, Garotinho, com um discurso mais à esquerda do Lula, que àquela altura era um moderado, poderia tomar o seu eleitorado, mas na verdade roubou o eleitorado do Serra.

Fernando Henrique havia tido 53% em 1998, e Serra cai para 23%. Lula sobe de 32% para 46%, crescendo enormemente no Tocantins, por exemplo. Aí já são as oligarquias trabalhando para ele, analisa Romero Jacob.

E cresce também Garotinho, cujo percentual de votação se aproxima muito do tamanho dos evangélicos no Brasil. Um estudo sobre as religiões feito pelo grupo de Romero Jacob na PUC do Rio mostra claramente que no entorno das capitais, nos cinturões de miséria, os pastores evangélicos pentecostais têm uma força muito grande.

Romero Jacob ressalta que o mapa eleitoral do Garotinho “é muito parecido com o mapa dos evangélicos pentecostais e com o mapa das repetidoras da Rede Record de televisão”.

Quanto à polarização, todas as eleições são polarizadas desde 1994, entre PT e PSDB, e, para Jacob, esta não será diferente, embora não acredite que venha a ser plebiscitária.

Existe uma questão anterior: essa polarização PT-PSDB advém do fato de que, tendo São Paulo aproximadamente 1/3 do PIB e 1/4 do eleitorado, é fundamental ter voto no estado.

Porém, São Paulo é condição necessária, mas não suficiente, adverte. Por isso, é preciso fazer alianças. Estão em jogo muitos cargos, e é aí que entra em campo a máquina num interior que representa 46% do eleitorado.

E o tempo de propaganda eleitoral no rádio e TV.

Para o cientista político da PUC Cesar Romero Jacob, só depois de junho, quando todos os acordos forem feitos e as máquinas estiverem azeitadas para entrar em funcionamento, é que vamos ver o cacife de cada um.

Gaudêncio Torquato:: Propostas para a era pós-Lula

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Às vésperas de abrir o palco para um dos maiores espetáculos de sua História, o País vivencia um típico jogo de soma zero. Essa modalidade, como se sabe, tem como característica a disputa agressiva pelo controle das jogadas. O avanço de um jogador ocorre ante o recuo do outro. A vitória de um partido se dá por conta da derrota da sigla adversária.

Ou, para trazermos a imagem para estes dias acidentados, a queda da viga de um viaduto do Rodoanel sobre três carros, na Rodovia Régis Bittencourt, zera o jogo que os tucanos ganhavam dos petistas em razão do gol contra do apagão de Itaipu, que deixou no escuro 18 Estados, na semana retrasada. Os dois casos mostram a disputa contundente pelo poder que se trava no País, desprezando o fato de que efeitos dos desastres, se danos eventuais provocam à imagem de atores políticos em medição de forças, sequelas graves causam à própria comunidade nacional, por saírem de seu bolso, em última instância, os recursos para financiar os serviços do Estado.

A maneira como os atores políticos jogam suas cartas no tabuleiro define o estilo de governar, podendo empurrar o País para a frente ou para trás. No caso brasileiro, o estilo é de ataque recíproco, que caracteriza o jogo de soma zero. Os contendores, em intenso conflito, procuram assumir o controle das ações de forma a ganhar os torneios (eleições, votações parlamentares, posição no ranking do prestígio) a qualquer custo. Há, porém, um modo diferente e oposto de fazer política: é a ação plural e proativa, voltada para a criação de recursos. Nesse caso os participantes se esforçam para melhorar os vetores da administração, buscando benefícios oriundos da educação, da cultura ou da pesquisa técnico-científica nos mais variados campos. Os países que avançam mais rapidamente são os que optam por esse modelo. A história da ciência do planejamento registra dois exemplos clássicos para denotar visões opostas: o caso de Hitler, na 2ª Guerra, típico da disputa por tirar recursos de outros para redistribuí-los (jogo de soma zero), e o do Japão pós-guerra, caso notável de estilo superior de criação de recursos e oportunidades. A China, hoje, seria também exemplo desse tipo.

O Brasil, infelizmente, tem sido useiro e vezeiro na prática da queda de braço, da forma perde-ganha. E pelas escaramuças a que já começamos a assistir, ultimamente, o jogo de soma zero deverá ganhar status oficial no tabuleiro eleitoral. Para escapar dessa perspectiva se impõe aos contendores o dever de avaliar os altos interesses da Nação, e não deixar-se levar pelas baixas correntes que deságuam no oceano da mediocridade. O Brasil carece sair do ramerrão inócuo. Do besteirol sobre o maior e o menor apagão ou se blecaute é algo comum ou inédito. Nesse sentido, eis um breve roteiro na direção de uma forma altaneira de olhar o País. Trata-se de diretrizes que poderiam ajudar a era pós-Lula a sair do impasse verborrágico que sufoca a Nação. As propostas cairiam bem nos ensaios que os pré-candidatos iniciam no palanque pré-eleitoral. Os eixos têm como pano de fundo a hipótese de que Luiz Inácio, o presidente-símbolo da dinâmica social brasileira, fecha o ciclo da redemocratização iniciado em 1984 e, sob esse manto litúrgico, desce as cortinas sobre um tempo marcado por crises intermitentes nas relações entre o Estado e o sistema de representação social.

O marco inicial abriga a meta: democratizar a democracia. Trata-se, neste caso, de dar vazão ao esforço, que algumas nações já vêm empreendendo, para expandir a participação social no processo decisório, por meio de núcleos e entidades, visando a aumentar a inclusão social, melhorar as condições do trabalho, qualificar as políticas públicas, proteger o meio ambiente e os direitos humanos e evitar as pandemias. A estratégia tem como lume o incremento da democracia participativa. Nessa esteira emerge outro eixo, a busca de um projeto amplo para o País, consoante com o nosso estágio civilizatório. Programas dispersos, canhestros, para atender a conveniências eleitoreiras, serão substituídos por planos essenciais, integradores de necessidades geográficas, sociais e econômicas. No lugar de tijolos (PACs), paredes inteiriças. A terceira vertente contempla a via partidária, fonte permanente de mazelas. Os dutos das legendas estão entupidos. Os costumes, viciados.

Nessa área padecemos de uma dupla patologia: o aumento dramático da desmotivação e do abstencionismo e a sensação generalizada de que os cidadãos são cada vez menos representados. Revitalizar os partidos, dando-lhes substância, passa a ser tarefa indeclinável do ciclo pós-Lula.

O quarto eixo é o das relações entre os Poderes. Vácuos precisam ser preenchidos. A área infraconstitucional está esburacada, ocasionando intervenções do Poder Judiciário (que interpreta os vazios constitucionais) e consequentes críticas em torno da judicialização da política. Os ditames da harmonia e independência dos Poderes carecem sair do papel.

Significa consolidar as funções do Parlamento nos campos da legislação e da fiscalização, livrando-o da dependência do Executivo. Medidas importantes foram tomadas nesse sentido pelo atual comando da Câmara, mas o Executivo continua a influenciar outros Poderes.

Nesse ponto emerge a necessidade do quinto vértice: diminuição dos superpoderes do presidencialismo. Há instrumentos que podem conter seus excessos. Um deles é a adoção do Orçamento impositivo, pelo qual os recursos alocados serão usados nos fins destinados, sem manobras do Executivo. Sob certo cabresto, o ânimo para cooptar bases políticas seria arrefecido. A nomeação de ministros para o STF, por outro lado, seguiria a liturgia da escolha em listas tríplices organizadas por entidades. Quanto ao Poder Judiciário, restaria a aplicação estreita da norma constitucional, evitando insinuação de invadir a esfera do Poder Legislativo.

Sem a arrumação dos eixos institucionais o País abrirá as portas do futuro com as chaves do passado. Uma tragédia.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação

Dora Kramer:: Engenharia de obra feita

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O Tribunal de Contas da União está longe de ser um instrumento perfeito de fiscalização dos gastos públicos. Mas, no que depender da vontade do Poder Executivo, o TCU será completamente imperfeito: fiscalizará o que foi gasto em obras só depois de prontas.

Isso significa que não podem ser suspensas, mas que não haverá correção de rumo de eventuais irregularidades no decorrer da construção.

O que fazer com os esqueletos inacabados, um escoadouro bem conhecido de dinheiro público, o anteprojeto da nova lei orgânica da administração pública que o ministério do Planejamento elaborou não prevê.

Recapitulando para situar: depois das sistemáticas reclamações do presidente Luiz Inácio da Silva e de ministros contra o trabalho do Tribunal de Contas da União, que suspendeu entre outras várias obras do PAC onde detectou irregularidades, o governo resolveu mudar a lei.

O texto a ser apresentado ao Congresso ficou pronto na semana passada e determina que o controle dos gastos em obras deverá ser feito depois de tudo pronto, passando a ser exceção a fiscalização prévia como ocorre atualmente.

O TCU, é claro, reagiu. Considerou a proposta um retrocesso e apontou que, se for aprovada como está, torna inviável o controle de dinheiro repassado pelo governo a organizações não-governamentais e a fundações privadas por meio de convênios.

Não poderá atuar em casos de pagamento por obras que nunca se realizam e ficará restrito ao exame das contas finais. Mais ou menos como ocorre com a Justiça Eleitoral em relação às contas de campanha, cujo exame se dá depois das eleições.

Antes da recente fase ativa do Judiciário, o Tribunal Superior Eleitoral e os tribunais regionais tinham como prática se render ao fato consumado, evitando contestar a lisura das contas dos eleitos e, por uma questão de isonomia, também de seus concorrentes.

De uma ou duas eleições para cá é que a Justiça Eleitoral resolveu bancar cassações até de governadores por abuso de poder econômico, compra de votos, irregularidades nas prestações de contas. Houve um avanço sem tamanho.

Como tudo o que cria dificuldades onde só havia facilidades, passou a ser criticado por representar usurpação de poderes, ou "judicialização" da política, seja lá o que isso signifique.

Mal comparando, o mesmo tipo de raciocínio sustenta os argumentos do governo contra um TCU mais atuante. Enquanto o tribunal de contas se comportou como mero carimbador das contas oficiais, estava tudo nos conformes. Era um organismo anódino, portanto, amigo.

No momento em que, autorizado pelo Supremo diga-se, começou a de fato fiscalizar, realizar auditorias e, de maneira ainda muitíssimo imperfeita, a exigir correções de rumos, o governo propõe mudanças alegando distorção de funções.

Note-se que as alterações sugeridas não são para melhorar a ação de controle, mas para subtrair. Tampouco se sugere que o TCU passe a ter outro tipo de conformação e deixe de ser mais um órgão onde se abrigam apaniguados políticos em empregos vitalícios.

Quando, e se, o projeto chegar para exame do Congresso, dificilmente serão propostas melhorias que alcancem os avanços necessários, mas já será bom se o Legislativo não corroborar o retrocesso.

Resta também a hipótese de que o governo não esteja falando realmente sério e faça desta movimentação apenas uma cena como tantas outras para explicar sem justificar seus pontos fracos.

Naquela linha: o mensalão foi golpe da oposição, o apagão um problema do mau tempo e o minguado resultado do PAC culpa do Tribunal de Contas que suspendeu boa parte das obras.

MÁRTIR

Com sua greve de fome talvez Cesare Battisti pretenda se debilitar fisicamente para se enquadrar em uma das opções previstas para a não entrega de um extraditando.

O governo brasileiro pode ou não ceder à pressão. No caso do frei Flávio Luiz Cappio, que há dois anos fez greve de fome durante 24 dias em protesto contra o projeto de transposição das águas do rio São Francisco, não cedeu.

FORA DESSA

Pode ser que a etiqueta oficial não lhe permita manter a posição, mas há mais ou menos dois meses o governador José Serra não tinha planos de comparecer à estreia de Lula, o filho do Brasil.

Perguntado a respeito, respondia: "Vou viajar."

RARO

O vice-presidente da República, José Alencar, é um homem que se diferencia do ambiente à sua volta. Nasceu pobre, ficou rico com trabalho e vence a adversidade sem uma única, ínfima, concessão à autocomiseração.

Não exige do mundo recompensa nem transforma sua trajetória em cobrança de fatura e ainda ensina que o esforço, a confiança e a correção compõem a essência de uma vida profícua.

Vinicius Torres Freire:: 2010 e a política "nas bases"

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Militância do PT decaiu, mas governo Lula se aproximou das centenas de milhares de movimentos sociais do país

A análise mais comum do cenário da eleição de 2010 em geral trata de política partidária, do efeito da economia sobre o eleitorado e do impacto de políticas sociais. Nesses três aspectos da conjuntura eleitoral, a situação dos oposicionistas é de ruim a deplorável. O quadro fica ainda pior se considerarmos a nova relação do lulismo-petismo com os movimentos sociais.

Quanto à política, observa-se o encurralamento da omissa oposição devido à popularidade de Lula e à indecisão do único partido viável e alternativo à continuação do governo do PT.

Confinada nesse "córner", a candidatura mais viável do PSDB, a de José Serra, padece ainda de isolamento. Aécio Neves dá sinais de que, não sendo o candidato, confraternizará com o adversário, aderindo ao centrão luliano ou com ele firmando um acordo de convivência pacífica.

Vide as conversas do governador mineiro com Ciro Gomes (PSB) e com facções do PMDB. Serra ainda sofre oposição de aliados, como parte do DEM, de falta de base no Rio e com a ruína tucana no Rio Grande do Sul. Tem crônica dificuldade no Nordeste e pode enfrentar a omissão interessada de Aécio em Minas, para citar problemas mais notórios.

Quanto à economia, 2010 deve ser muito bom. No quadriênio de Lula 2, o país terá vivido os anos de maior incremento das condições de vida em mais de um quarto de século.

Quanto às políticas sociais, a variedade do seu alcance é obscurecida pelo clichê e pelo tamanho do Bolsa Família (11 milhões de famílias, quase 40 milhões de pessoas) e pelos benefícios de até um salário mínimo do INSS, recebidos por 18,5 milhões de pessoas, que tiveram grandes reajustes. Programas de benefícios diretos e politicamente visíveis em agricultura familiar, crianças, mulheres, minorias, saúde familiar, educação etc. atingem dezenas de milhões difíceis de contar. Como proporção do PIB, o gasto social federal foi de 13% em 2002 para 15% em 2008. É um aumento grande.

Mas o governo Lula fez política por baixo também. A militância petista enfraqueceu-se, mas Lula levou para perto do governo os movimentos sociais, como mostra um relato do Ipea (no livro "Brasil em Desenvolvimento", grátis no site do Ipea). Aumentou em um terço o número de conselhos nacionais consultivos de políticas públicas. Por meio deles, incrementou a realização de conferências nacionais de políticas públicas, que tratam de direitos humanos a ambiente, de jovens a mídia etc. Mais de 2 milhões tomaram parte nas conferências, gente integrante das quase 400 mil ONGs do país. Associações das mais diversas, mas muitas "de base", têm assentos nos conselhos nacionais. A Secretaria-Geral da Presidência da República desde 2003 está encarregada de dialogar com tais movimentos sociais -foram 700 encontros só no primeiro ano.


Não há pesquisas para dizer se tais movimentos são "mais petistas". Mas "mais tucanos" é que não são. A maioria das centrais sindicais está com o governo, e a maioria das que não estão é de esquerda e/ou antitucana.

Na reta final da campanha, ou na urna, o eleitor pode ignorar isso tudo e decidir que quer mudança. Sabe-se lá. Mas a oposição não está fazendo coisa alguma para que o eleitor pense em novidades.

No PT, 'intervenção branca' pró-Dilma

DEU EM O GLOBO

Partido escolhe hoje seus novos dirigentes e tentará subordinar alianças regionais à da eleição presidencial

Maria Lima e Gerson Camarotti BRASÍLIA

Com a possibilidade concreta de fortalecimento de alguns diretórios regionais independentes a partir do processo de eleição direta no PT, o chamado PED, que ocorre hoje em todo o Brasil para a escolha dos novos dirigentes petistas, o comando nacional do partido já prepara uma espécie de intervenção branca para barrar iniciativas que prejudiquem a candidatura presidencial da chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. A estratégia de subordinar as alianças regionais à aliança nacional será legitimada pelo Congresso Nacional do PT, que acontecerá em fevereiro, quando Dilma será lançada pré-candidata.

Para pôr em prática essa política, o comando do partido espera eleger hoje, já em primeiro turno, o ex-senador e ex-presidente da Petrobras José Eduardo Dutra (SE), nome escolhido pelo presidente Lula e pela cúpula petista para presidir o partido nos próximos dois anos.

O Congresso Nacional do PT é que vai aprovar ou vetar candidaturas estaduais que concorram com aliados como o PMDB. Caso do Rio, onde já houve o lançamento da pré-candidatura ao governo fluminense do prefeito de Nova Iguaçu, Lindberg Farias, contra o desejo do comando nacional e do próprio presidente Lula, que pregam a reeleição do governador Sérgio Cabral. Essa situação se repete em outros estados.

Na primeira eleição presidencial dos últimos 20 anos sem Lula como candidato, o PT utilizou o PED como uma grande prévia de mobilização da militância e de dirigentes país afora em favor de Dilma. Há um reconhecimento de que a ministra, apesar da superexposição dos últimos meses, ainda não empolgou a militância.

— O maior desafio do PED é preparar a estratégia para a campanha de Dilma. O sentimento é que vamos enfrentar um grande teste — afirma o atual presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini (SP).

PT espera voto de cerca de 400 mil filiados

A expectativa é que hoje haja uma mobilização de cerca de 400 mil filiados petistas, contra 315 mil que votaram no último PED, em 2007. Como a taxa de anuidade é de R$ 15 — e é condição obrigatória para o filiado votar — o PED deve gerar uma arrecadação de R$ 6 milhões para os cofres do PT.

Integrantes de tendências minoritárias chegaram a levantar a suspeita de abuso de poder econômico da corrente majoritária, que estaria pagando a taxa de habilitação de filiados. O objetivo seria turbinar o número de eleitores e, com isso, consolidar a vitória em primeiro turno de José Eduardo Dutra, candidato da corrente “Construindo Novo Brasil”, o antigo Campo Majoritário, que reúne as grandes estrelas do PT, inclusive os que são réus no processo do caso do mensalão, no Supremo Tribunal Federal, como José Dirceu e João Paulo Cunha. A suspeita de “compra de votos” foi negada pela tendência, e não provada pelas demais correntes.

Mas, apesar das disputas entre as tendências — são seis chapas com candidatos a presidente do PT — e das diferenças programáticas — uma delas, chamada “Esquerda Marxista”, propõe a retomada do socialismo —, a campanha que durou quatro meses teve um consenso: o apoio incondicional à candidatura de Dilma.

Sobre candidaturas estaduais que ameaçam o projeto Dilma, José Eduardo Dutra é taxativo: — Quem vai definir a estratégia regional é o Congresso Nacional do PT, que é soberano. O Congresso vai dar uma orientação geral de como o partido deve se comportar nas convenções que vão de março a 30 de junho. Isso não é intervenção — disse ao GLOBO. — O Congresso Nacional é a instância máxima do partido, com delegados de todo o Brasil, e está acima dos diretórios estaduais, até do nacional. A lógica regional não pode se sobrepor à estratégia nacional do partido. Isso não é enfiar goela abaixo.

Berzoini atuou pessoalmente no Rio para tentar garantir votos para a chapa do deputado Luiz Sérgio, que defende a reeleição de Cabral.

Mas Lindberg continua otimista: — Nós devemos ganhar de lavada (no diretório estadual), e a tese da candidatura própria no Rio deve ter o apoio de mais de 60%. O que se diz é que haverá uma indicação em defesa do Cabral, mas intervenção não terá.

Envolvidos com mensalão reabilitados

DEU EM O GLOBO

Dirceu, Mentor, João Paulo e José Nobre estão na chapa de José Eduardo Dutra

BRASÍLIA. Além dos problemas regionais, o PED também deve confirmar hoje outra tendência no novo comando do PT: o retorno da influência de petistas que estavam marcados pelo escândalo do mensalão, que tomou conta do partido em 2005. Na chapa de Dutra estão listados petistas que vinham articulando à margem, como o exministro José Dirceu e outros citados no mensalão como os deputados José Mentor (PT-SP), João Paulo Cunha (PT-SP) e José Nobre Guimarães (PT-CE), que ficou conhecido com o escândalo dos dólares na cueca. Eles devem ser reabilitados pelo voto no PED e, com isso, terão papel importante na campanha de Dilma.

— São petistas em pleno gozo dos direitos políticos e partidários. O Zé Dirceu passa a ter uma atuação institucional. Ele vai sempre ser um grande articulador político. Como presidente do PT, ele conduziu o processo de eleição do Lula com autoridade. É claro que não podemos abrir mão dessa experiência nesse processo da Dilma — disse José Eduardo Dutra.

Nos debates internos para a eleição de hoje foram presenciadas queixas e desconfianças de quase tudo, menos sobre a volta ou não dos réus no caso do mensalão ao comando do partido. As críticas mais comuns dos demais candidatos são relativas à inação do partido junto à militância, deixando toda a política do partido nas mãos do presidente Lula.

— O que está em jogo é o tipo de partido que deve buscar o terceiro mandato do PT (no governo).

Mas o que constatamos é um partido inerte. Não há pré-campanha da Dilma. E as articulações em favor da candidata são feitas mais pelo Lula do que pelo PT. É um partido em que a direção se distanciou da militância.

Temos que estimular a militância até porque uma eleição sem Lula tem uma diferença muito grande — afirma o candidato da corrente “Movimento PT”, o deputado Geraldo Magela (DF).

Para o deputado José Eduardo Cardozo (SP), atual secretário-geral do PT e candidato pela “Mensagem ao Partido”, o maior desafio desse PED é construir a unidade em torno de Dilma, mas também a unidade partidária.

— Se essa eleição trouxer um fator desagregador, o partido ficará diminuído para 2010. E temos que ter em conta que o principal objetivo do PED para 2010 é a construção da unidade partidária.

— Se tivéssemos construído um consenso, num acordo que envolvesse todo o partido, teria sido melhor. Fazer um PED num momento pré-eleitoral, como este, não é o ideal. Até porque esse PED não teve o entusiasmo e o calor das eleições anteriores — lamenta a deputada Iriny Lopes (PT-ES), candidata da tendência “Articulação de Esquerda”.

Nesses últimos quatro meses, o Palácio do Planalto olhou com desconfiança o PED, o excesso de candidaturas e as disputas internas. Para o presidente Lula, o ideal teria sido uma candidatura única para que não houvesse disputa e o partido fosse unido para as eleições de 2010.

Mas o único nome de consenso que seria aceito por praticamente todas as correntes do PT seria o do chefe de gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho. Sua ida para o comando do PT foi vetada, porém, pelo próprio Lula, que não queria abrir mão de seu auxiliar mais próximo e fiel.

Eleição de diretório petista define futuro da candidatura de Lindberg

DEU EM O GLOBO

Candidatos ao comando do partido no estado criticam atrelamento ao governo Cabral

Maiá Menezes e Ricardo Galhardo

RIO e SÃO PAULO. A candidatura própria do PT ao governo do Rio entrará em jogo quando cerca de 30 mil petistas começarem hoje a votar na sucessão do diretório estadual do partido. Em torno dos três principais candidatos ao cargo do atual presidente, Alberto Cantalice, há uma queda de braço entre dois grupos: os que defendem o prefeito de Nova Iguaçu, Lindberg Farias, como o nome do partido para a disputa estadual, e os que querem a manutenção da aliança com o PMDB e o apoio ao governador Sérgio Cabral.

Lindberg apoia dois dos três principais candidatos — Bismarck Alcântara e Lourival Casula — e vê na divisão do campo majoritário (Construindo um Novo Brasil, antiga Articulação) um trunfo. Os dois defendem a bandeira da candidatura própria. A ideia é tirar do páreo o deputado Luiz Sérgio, do grupo do atual presidente, fiador da aliança com o governador Cabral.

— Defendemos a aliança e queremos fortalecer a candidatura da (ministra) Dilma.

Não queremos que o PT seja federação de partidos regionais.

Entre o projeto do Lindberg e o projeto coletivo do Lula, estamos com o presidente — diz Cantalice.

Luiz Sérgio defende que o PT do Rio ajude a garantir a base do presidente Lula.

— Todo partido tem um objetivo: o poder. O PT chegou ao governo, o melhor da recente história do país. Defendo que toda a prática do partido esteja voltada para o objetivo de consolidar o maior leque possível de alianças para eleger a ministra Dilma — diz o deputado.

PT paulista se desarticula à espera da decisão de Ciro Bismarck Alcântara e Lourival Casula criticam a atual direção: — A gente tem um PT que está acéfalo, sem gestão política, administrativa, financeira. A militância está desanimada. Essa turma está aí há nove anos. Fica a reboque das decisões do governo (Cabral) e não participa do governo — diz Bismarck.

A expectativa é de que o resultado da votação saia na madrugada de segunda.

Em São Paulo, preocupada com a incerteza quanto à candidatura de Ciro Gomes (PSB) ao governo paulista, a direção do PT começa a rearticular candidaturas próprias. Semana passada a executiva local iniciou nova rodada de reuniões com pré-candidatos. O primeiro ouvido foi o prefeito de Osasco, Emídio de Souza. Os petistas querem evitar prévias, mas vão esperar Ciro até o início de 2010: — Nunca em sua história o PT-SP esteve tão desarmado— disse Renato Simões, da executiva nacional e candidato a presidente estadual.

Segundo ele, a espera da decisão de Ciro desarticulou o partido.

O presidente estadual do PT, Edinho Silva, candidato à reeleição, nega, mas pede prazo: — O ideal é que fosse agora, mas estamos no meio de um processo de ouvir lideranças e aliados. A definição vai afunilar no ano que vem.

PSDB resiste a modelo do Bolsa-Família

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Tucanos apostam em projetos sociais, mas fogem do repasse de dinheiro à população de baixa renda

Julia Dualibi

As "vitrines" tucanas no País resistem à implantação de projetos de transferência direta de renda nos moldes do Bolsa-Família. A um ano da eleição de 2010, Estados e capitais governados pelo PSDB turbinam projetos sociais, mas fogem do modelo que prevê repasse de dinheiro à população de baixa renda. Apesar de pesquisas mostrarem que a maior parte do eleitorado aprova o Bolsa-Família, na prática os governos tucanos têm bancado iniciativas sociais bem mais focalizadas.

"É importante dar condição para as pessoas andarem com as próprias pernas. Não é só dar dinheiro", disse o secretário mineiro de Desenvolvimento Social, Augustinho Patrús Filho. Governada por um presidenciável do PSDB, Aécio Neves, Minas não tem programa de transferência de renda nos moldes do Bolsa-Família. "Não é nosso modo de ver as coisas", disse. O governo de Minas criou o Poupança Jovem, que repassa R$ 1.000 por ano para 32 mil jovens do ensino médio. Em 2010, pretende atender 50 mil jovens.

No começo do mês, o prefeito de Curitiba, Beto Richa, cotado para disputar o governo do Paraná, lançou programa nos moldes do Fome Zero no início do governo Lula. O Família Curitibana dá um vale de R$ 50 para famílias comprarem alimentos e outros itens nos Armazéns da Família, mantidos pelo governo. A iniciativa, que pretende chegar a mais de 1.500 pessoas em 2010, recebeu o apelido de Bolsa-Família tucana. "Chegamos à conclusão de que esse programa era mais próximo do que precisávamos e tinha a questão da emancipação", disse Richa.

Antes mesmo de a eleição começar, PSDB e PT travam debates sobre a paternidade do Bolsa-Família. Tucanos alegam que a origem do programa está no Bolsa-Escola, que foi implantado nacionalmente no governo de FHC. Petistas, no entanto, falam que Lula deu a cara atual, ao unificar vários programas sociais criando o Bolsa-Família.

Outras capitais do PSDB, Cuiabá e Teresina também não têm, nem pretendem, criar projetos de transferência direta de renda. "A diferença dos nossos programas para os do PT é a promoção da pessoa. O Bolsa-Família, infelizmente, é uma necessidade de caráter emergencial. Tem de ser um estímulo e não um empecilho para a pessoa progredir", disse o prefeito de Cuiabá, Wilson Santos.

Em Teresina, o prefeito Sílvio Mendes também não mantém permanentemente programas de transferência de renda. "A gente tenta investir em projetos autossustentáveis em vez de repassar simplesmente valores pecuniários", afirmou o prefeito. "Eu prefiro esse tipo de projeto, esse tipo de relação", disse. Neste ano, a prefeitura bancou R$ 150, durante três meses, para cerca de 4.000 famílias desabrigadas pelas cheias.

No Rio Grande do Sul havia um programa de transferência de renda na gestão do petista Olívio Dutra (1999-2002), o Família Cidadã, que foi desidratado nas gestões seguintes. Com restrições orçamentárias, a governadora Yeda Crusius, ao assumir em 2007, priorizou programas mais focalizados. "Não tem por quê duplicarmos aqui programas generalistas, como o Bolsa-Família", afirmou o secretário de Justiça e de Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul, Fernando Schüler.

Na contramão, o Estado de São Paulo, governado por José Serra, outro tucano cotado para disputar a Presidência, possui dois programas de transferência direta de renda, o Renda Cidadã e o Ação Jovem.

Hoje, os dois programas repassam R$ 60 por mês para 128.222 famílias e 89.325 jovens, respectivamente. A previsão é que, em 2010, atendam 162.000 famílias e 139.800 jovens.

"A diferença são as condicionalidades. A pessoa precisa estar num projeto de geração de renda ou sócio-educativo", rebate a secretária de Desenvolvimento Social, Rita Passos.

Alberto Dines:: Lembrando o fascismo

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Como se não bastasse o emaranhado produzido pela decisão do STF sobre Cesare Battisti, entra em cena o ministro da Justiça, Tarso Genro, armado com a sua proverbial capacidade de confundir para afirmar que a tendência do governo é negar a extradição porque a Itália está dominada por um "fascismo galopante".
Bravo, bravíssimo! Há muito que a esquerda brasileira não se manifesta de forma tão categórica sobre o fascismo, certamente receosa de ferir as suscetibilidades de lideranças latino-americanas assemelhadas ao movimento criado por Benito Mussolini no século passado.

Na verdade, Tarso Genro inicia a ofensiva retórica destinada a contornar a decisão do STF que considerou indevido o refúgio político oferecido pelo próprio ministro, razão pela qual deveria ser extraditado para a Itália. Como a douta e arrevesada decisão da suprema corte delega ao presidente Lula a decisão final sobre a extradição, Tarso Genro recebe a espinhosa missão de preparar o terreno para um desfecho que novamente deixará o Brasil do lado errado repetindo o triste episódio do sequestro dos boxeadores cubanos que pretendiam deixar a delegação do seu país nos Jogos Pan-Americanos no Rio.

O apalhaçado Sílvio Berlusconi é reacionário, autoritário, repressor, corrupto, indecente, imoral. Embora apoiado pelos neofascistas da Liga Norte e pelos velhos fascistas do resto da Itália o premiê italiano não preside um Estado fascista.

A despeito da degradação produzida pela presença de Berlusconi na cena política, a Itália é um país fundamentalmente democrático. Em termos institucionais está muito mais próxima do Estado de Direito do que nós. A preocupação "humanitária" do ministro Genro é injustificada. Battisti corre perigo aqui, num Estado incapaz de oferecer garantias à cidadania e enfrentar as pequenas e grandes delinquências.

No entanto, a afirmação do ministro da Justiça é extremamente oportuna. Serve para lembrar que – ao contrário do nazismo – o fascismo não foi liquidado pela derrota do Eixo, em Maio de 1945. A ascensão de Juan Perón na Argentina, começou exatamente quando a vitória dos Aliados parecia inevitável e, ao longo das décadas seguintes ficaram muito claras as convergências entre o "socialismo" fascista e os movimentos de massa nacionalistas que sacudiram a América do Sul.

O nacional-socialismo de Hitler circunscreveu-se basicamente ao mundo germânico enquanto o fascismo engendrado pelo jornalista e mestre-escola Mussolini espalhou-se pelo mundo latino nos dois lados do Atlântico. A oposição de esquerda na Venezuela considera Hugo Chávez mais próximo do fascismo do que do marxismo.

O curriculum político de Cesare Battisti não exibe militâncias antifascistas. No seu passado, ações ou textos inexistem elementos capazes de levar os fascistas italianos a pretender eliminá-lo. Os Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), tal como as Brigadas Vermelhas, assumiam-se como vanguardas revolucionárias esquerdistas porém serviam mais aos interesses do entranhado conservadorismo italiano do que ao seu histórico Partido Comunista.

O caso Battisti foi "aparelhado" por áreas próximas ao PT desde o momento em que o militante foi preso no Brasil em 2007. Foi um tremendo erro, fruto de uma nostalgia postiça e indevida. O PT nada tem a ver com ações subversivas nem com atentados terroristas, sua intransigente defesa dos trabalhadores jamais o levou a endossar qualquer violência política. Seus fundadores sempre estiveram comprometidos com as liberdades democráticas.

Ao enredar-se antes e depois da decisão do STF na defesa de um desastrado e controverso militante, o governo brasileiro desperdiça suas valiosas conquistas no cenário internacional. O único perigo que Battisti corre na Itália é ser considerado como uma múmia, jurrássico exemplar dos delirantes pseudoesquerdismos factoides produzidos pela Guerra Fria.

» Alberto Dines é jornalista

Rubens Ricupero:: Extradição e crime político

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Como explicar que tanta gente de boa-fé julga que, por serem políticos, certos delitos deixam de ser crimes hediondos?

Você acha que os assassinos de Gandhi, de John Kennedy e de Martin Luther King mereceriam ser considerados refugiados políticos no Brasil? A pergunta parece absurda, mas o fato é que todos esses crimes eram políticos. Como explicar que tanta gente de boa-fé julga que, por serem políticos, certos delitos deixam de ser crimes hediondos?

Tomemos outro caso. O sequestro de Abilio Diniz foi efetuado por chilenos do Movimento de Esquerda Revolucionária, que alegaram motivos políticos, apesar de que, na época (dezembro de 1989), o Chile voltara a ser uma democracia plena. Rejeitado o argumento, eles foram condenados, sendo expulsos para cumprir o resto da pena no país de origem em 1999.

A invocação de causa política não basta, portanto, para retirar de um ato o caráter de crime merecedor de sanção nem para conceder ao autor o benefício de refugiado. Em casos extremos, pode-se compreender o uso de violência contra regimes tirânicos e opressivos que não deixam outro caminho à restauração dos direitos. É quase o equivalente ao direito da legítima defesa de parte da população.

Por essa razão, as normas internacionais só admitem como refugiado alguém que não possa ser enviado ao país de origem por existir forte presunção de que sofrerá perseguição de caráter político, racial ou religioso. A presunção se baseia, por sua vez, na existência de conflito, guerra civil ou ditadura e suspensão das garantias individuais no país para onde seria devolvido.

Tal premissa obviamente não se aplica à Itália, país que desde 1945 é um Estado de Direito e uma democracia das mais tolerantes em matéria de liberdade política. Somente ignorância ou má-fé poderia considerar perseguição política o cumprimento de pena a que foi condenado em processo legal pelos tribunais italianos o autor de quatro homicídios. Seria até irônico, se não fosse ridículo, acusar de instrumento de perseguição uma Justiça que está processando o próprio todo-poderoso primeiro-ministro Berlusconi! Oxalá tivéssemos nós, no Brasil, uma Justiça com a metade da independência perante o Executivo que tem o Judiciário italiano!

Os extremistas que atuaram na Itália desde os "anos de chumbo" escolheram em geral como vítimas políticos de centro-esquerda ou de esquerda democrática, e não a direita fascista. O caso mais notório foi o sequestro pelas Brigadas Vermelhas do ex-primeiro ministro Aldo Moro, o grande líder da esquerda da Democracia Cristã. Depois de longo cativeiro, ele foi assassinado friamente, a fim de impedir que promovesse uma aliança para que o Partido Comunista viesse a fazer parte do governo, o que se chamava então de "compromisso histórico".

No seu radicalismo divorciado das massas, os brigadistas pensavam que, ao evitar a chegada dos comunistas ao poder, criariam as condições para desencadear uma revolução proletária violenta.

Acabou acontecendo exatamente o oposto. O crime (esse e outros como os do refugiado no Brasil) provocaram tal repulsa no povo que empurraram a Itália cada vez mais para a direita.

A esquerda italiana sempre condenou o extremismo terrorista e não compreende que o Brasil lhe conceda tratamento leniente. Talvez porque aprendeu, ao contrário de membros do governo brasileiro, que a leniência com o extremismo equivale ao suicídio da esquerda democrática.

Rubens Ricupero, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.

José de Souza Martins:: Os palmares de todos nós

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Luta de Zumbi foi pelo direito primal de ser humano

A transformação em feriado do dia do aniversário da morte de Zumbi, general e cabo de guerra do Quilombo dos Palmares, em 1695, como Dia da Consciência Negra, é providência que pode se transformar numa grande bobagem ou num fato histórico. Será uma grande e deseducativa bobagem se for capturado e instrumentalizado pelo neorracismo brasileiro para alimentar a destrutiva ideologia do confronto, que nos assola, e firmar a suposta legitimidade de uma visão de mundo que nos divide e nos afasta de nós mesmos. Será um grande fato histórico se for aceito por todos os brasileiros como desafio que pode nos instigar a rever nossa memória coletiva, para que nos livremos dos fantasmas de uma história que não é nossa. Para que nos encontremos no reconhecimento dos feitos que redundaram na construção do país pluralista que somos e deveríamos gostar de ser. Os heroicos feitos de Zumbi se inscrevem nessa pauta. São feitos que dão sentido ao anseio de liberdade e emancipação do Brasil multirracial e democrático.

Nossa cultura escolar e de oitiva insere-se numa tradição que conspira todos os dias contra essa alternativa e essa busca. Expressão disso é o modo como se propõe a figura do mulato Domingos Fernandes Calabar à consciência dos brasileiros, estigmatizado como traidor porque passou para o lado dos holandeses no século 17, quando o Brasil ainda não era Brasil. No mínimo falta aí uma consciência crítica da história, que nos revele os efetivos dilemas sociais e políticos com que se defrontavam os protobrasileiros de então.

Calabar, na verdade, fez uma opção, como tantos outros fizeram naquela época de profundas transformações no mundo, aberta a opções religiosas, econômicas e políticas. Seu próprio detrator, o frei Manuel Calado, autor de O Valeroso Lucideno, teve sua simpatia pelos holandeses. O que parece ter irritado Calado e mantido essa irritação nos registros históricos é que, como outros, Calabar tenha se convertido ao protestantismo e negado o imobilismo socialmente estreito que se anunciava na dominação portuguesa e se confirmaria em nossa história redundante e conformista.

A mesma mentalidade que amaldiçoou Calabar folclorizou Zumbi, negando-lhe o lugar em que temos o direito de tê-lo em nossa memória histórica e com ele os insubmissos palmarinos, que morreram em grande número, aniquilados como seres destituídos de humanidade. Em Palmares, a luta do negro (e do índio) foi feita em nome de todos nós, pelo reconhecimento da condição humana de pessoas que eram tratadas como animais de trabalho, peças de mercado, objeto de partilha mercantil prévia nos próprios contratos de encomenda das entradas repressivas que destruiriam o quilombo.

Acima da crônica de botequim, a história de Palmares é a fascinante história épica de um povo, que não era só de negros, como narra, apoiado em documentos, Édison Carneiro, o grande historiador e estudioso das culturas negras, autor de O Quilombo dos Palmares. Uma história bem distante de fabulações raciais. Ou mesmo de interpretações redutivas, descabidamente apoiadas em simplificações inaplicáveis ao caso, pescadas antidialeticamente no Manifesto Comunista, de Marx e Engels, como as que definem Palmares como capítulo pioneiro da história da luta de classes. Nem Zumbi era um Spartacus do sertão nem a sociedade de classes estava constituída entre nós, nem mesmo em Portugal, apenas se anunciando em países como a Itália, a Holanda e a Inglaterra. Nem por isso a história documentada macula o que poderia e deveria ser o imaginário épico que a traz à nossa consciência e aos nossos dias.

Houve vários grandes e resistentes quilombos em diferentes pontos do Brasil até o final da escravidão. Palmares foi, sem dúvida, o maior, durou quase todo o século 17 e no seu último meio século sofreu reiterados ataques. Menos porque representasse um efetivo perigo político à dominação portuguesa e muito mais porque sua captura e sujeição recompensariam seus mercenários opressores com escravos e terras. Que tampouco lutavam por algo que pudesse ser chamado de Brasil. Era o caso de Domingos Jorge Velho, o mais violento e ambicioso deles, que nem mesmo falava português, pois vivia entre tapuias. Precisou de um intérprete para conversar com um bispo que o visitou.

Palmares tem sido apresentado como uma república libertária, antecedente em quase dois séculos da Revolução Francesa, o que nunca foi. Em Palmares também havia escravidão, a dos raptados e levados à força para os mocambos. Só eram livres os que voluntariamente fugissem de seus senhores e buscassem refúgio no Quilombo. Os escravos dos negros palmarinos podiam obter a alforria, como ensina Édison Carneiro, se para lá levassem um negro cativo.

Os milhares de negros que ali se refugiaram criaram um Estado, no modelo dos Estados nativos africanos, dominado por um déspota, o rei Ganga Zumba, e por uma aristocracia em parte de sangue, de que Zumbi era membro, sobrinho do monarca. Quando o rei celebrou a paz com os brancos e o governo colonial de Pernambuco, em 1678, foi envenenado pelos negros. Zumbi, contrário à vassalagem, levou a luta até o limite, quando o quilombo foi invadido e destruído, em 1695.

Ao contrário da lenda, não se matou, e dos 20 combatentes que o acompanhavam na luta final, só um sobreviveu. Os portugueses chegaram até ele quando um mulato capturado, que era seu imediato, sob tortura e em troca da vida, indicou o reduto em que ele se encontrava. Morto Zumbi, André Furtado de Mendonça, que comandava a tropa, cortou-lhe a cabeça, enviando-a ao governo, no Recife, onde foi exibida, espetada numa estaca, para que os negros se convencessem de que morrera.

A efeméride de Zumbi terá sentido como dia da consciência de todos nós, da nossa identidade brasileira, se for o prenúncio de uma reordenação dos termos da nossa memória coletiva para nela inscrever a história como história do povo brasileiro e não como história dos feitos de funcionários públicos ou de minorias.

Livro conta a história dos 40 anos do Cebrap

DEU EM O GLOBO

SÃO PAULO. De ternos claros e casacos desabotoados, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva tomam café com açúcar em copinhos de plástico. Juntos no balcão, no Congresso. A cena, de 1987, está registrada no livro “Retrato de Grupo — 40 Anos do Cebrap”, que será lançado terça-feira, com um documentário, para marcar o 40oaniversário do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). As imagens de Lula e Fernando Henrique, que eram parlamentares, ilustram a entrevista que o tucano concedeu para o livro.

O ex-presidente foi um dos fundadores do Cebrap, ao lado do filósofo José Arthur Giannotti, do economista Paul Singer, da antropóloga Ruth Cardoso e do sociólogo Octávio Ianni. Outros nomes se juntaram ao grupo, a maioria da USP (Universidade de São Paulo), como os sociólogos Chico de Oliveira e Francisco Weffort. O objetivo, à época, era estudar e combater o autoritarismo.

A Fundação Ford, dos EUA, financiou a entidade.

“Seguramente, em algum momento, chegaram à conclusão de que era conveniente desenvolver ciências sociais como um elemento de dinamização de um pensamento não conservador, não autoritário, e depois passaram a financiar movimentos sociais, ações políticas favoráveis à igualdade de gênero etc. Muitas vezes a gente atribui muito mais capacidade estratégica a essas instituições do que elas realmente têm, pelo menos essa é a minha sensação”, conta Fernando Henrique sobre a Fundação Ford, no livro, do Cebrap com a editora Cosac Naify.

O Cebrap abrigou pensadores que colocaram em xeque a política autoritária vigente, como os formuladores das políticas dos governos do PSDB e do PT.

O tucano explica sua divergência com a criação do PT: ”Quando houve a discussão sobre a criação do PT, minha posição era a seguinte: estão propondo um partido à moda antiga, um partido da classe operária, dos trabalhadores, e deve-se fazer não um partido dos trabalhadores, mas dos assalariados, no qual o PT acabou se transformando”, diz o ex-presidente. “A fragmentação das classes é imensa, os interesses são muito diversos e não há por que imaginar que um partido posa unifica-los. A partir dessa descrença, veio a divisão entre mim e os que fundaram o PT.

'O gosto pelo debate é uma virtude da casa'

DEU EM O GLOBO

SÃO PAULO. No Cebrap há dez anos, a presidente da instituição, Paula Montero, explica como os 80 pesquisadores convivem com divergências: — Como ela é não é de departamentos, como uma universidade, pessoas de várias áreas entram em relação direta e trazem sua maneira de pensar e resolver os problemas para o debate. É uma casa bastante plural. A questão das filiações partidárias não é importante, e todo mundo aceita o debate.

A pesquisadora, que organizou o livro com Flávio Moura, conta que as sextas-feiras são dedicadas às discussões: — Discutimos temas da pesquisa de um e de outro. O gosto pelo debate, cada vez mais raro, é uma virtude da casa.

“Retrato de Grupo — 40 Anos de Cebrap” traz entrevistas também com José Arthur Giannotti, Paul Singer, Elza Berquó, Juarez Brandão Lopes, Lúcio Kowarick, Francisco de Oliveira, José Serra, Fernando Novais, Roberto Schwarz, Rodrigo Naves, todos integrantes da história do Centro.

O documentário, que tem o mesmo nome do livro, é dirigido por Henri Gervaiseau.

'Democracia é biombo para iniquidade'

DEU EM O GLOBO

O sociólogo integrou o Cebrap por 25 anos. Para ele, o Centro deve se preocupar em entender a democracia contemporânea, e o predomínio da economia sobre a política.

O GLOBO: O que é mais importante no Cebrap?

CHICO DE OLIVEIRA: O Centro dedicou-se a pesquisas sociológicas e demográficas que desafiavam a América Latina, como a questão das cidades, a urbanização, a industrialização sem empregos. Deu boa contribuição. Hoje é renomado, vai continuar existindo, só não tem a centralidade que teve nos anos 70, porque outros cresceram muito.

Como se convivia com a divergência?

CHICO: Não havia divergência, não. A divergência é posterior, dos anos 90. Estávamos mais ou menos interessados nas mesmas questões, cada um com sua abordagem. A convivência foi boa e frutífera.

Qual a preocupação de hoje?

CHICO: A democracia, que serve de biombo para iniquidades, uma iniquidade social quase obscena. É entender a democracia brasileira e a democracia contemporânea, onde o predomínio da economia quase inutiliza a política.

'Macunaímas têm tomado o poder no país'

DEU EM O GLOBO

Para filósofo fundador do Cebrap, políticos de hoje são malandros e heróis sem nenhum caráter, e país precisa se pensar

ENTREVISTA José Arthur Giannotti

Para o filósofo José Arthur Giannotti, um dos fundadores do Cebrap, o poder no país está tomado por Macunaímas, os heróis sem caráter da ficção de Mário de Andrade; e o Brasil precisa pensar mais sobre si. Ele lembra que, 40 anos atrás, ele, Fernando Henrique Cardoso, o cientista político Francisco de Oliveira e outros pensadores discordavam politicamente, mas isso não aparecia porque o inimigo comum, o autoritarismo, era maior que as divergências

Hoje há mais espaço para se pensar o Brasil?

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI: A pergunta é ambígua. No momento em que não tínhamos espaço, o esforço era para compreendermos o Brasil e essa falta de espaço. Hoje, há muito espaço, mas as pessoas se dispersam. Tanto assim que nós não temos até agora uma boa interpretação tanto do governo Fernando Henrique Cardoso como do governo Lula.

O que falta para sermos um país mais reflexivo?

GIANNOTTI: Precisamos de um ensino melhor. O ensino fundamental é um escândalo.
Boa parte dos professores não sabe dividir ou multiplicar, muito menos domina a língua portuguesa. Tudo no Brasil virou um samba do crioulo doido.
A legalidade é uma legalidade que vale numa esquina e não vale na outra. Estamos em situação de desenvolvimento econômico, de progresso, e ao mesmo tempo uma bagunça generalizada.

Qual a grande questão sobre a política brasileira?

GIANNOTTI: Há, cada vez mais, um enervamento das instituições.
Tudo é possível aos donos do poder. Isso cria, justamente, uma situação em que os políticos e os líderes da sociedade não se apresentam mais como exemplo. Aparecem como exemplos da malandragem. Macunaímas têm tomado o poder.

Nós somos um país de Macunaímas, ou os Macunaímas estão só no poder?
GIANNOTTI: Quando tem Macunaíma no poder, já começam a germinar algumas pessoas que querem sair disso. Vamos ver como vai se encaminhar todo esse processo sucessório, se as informações começam a fluir melhor e se os governos de todos os lados aprendem a dar melhor as satisfações à população.
E que a população aprenda a demandar informações.

‘Precisamos ter templos para pensar o Brasil’

Que importância o senhor atribui ao Cebrap nesses últimos 40 anos?

GIANNOTTI: Nos anos 50, o Cebrap foi um foco de resistência intelectual à ditadura.
Começou a pensar o que eram os sistemas militares na América Latina. E teve um enorme empenho na formação de quadros. As pessoas que passaram pelo Cebrap hoje estão nas universidades, no setor privado, no terceiro setor, na diplomacia.
Foi uma escola, uma escola de quadros.

Hoje não há mais essa formação de quadros.

GIANNOTTI: Hoje menos , porque o próprio Cebrap está mais disperso. A ideia de comemorar os 40 anos é dizer que há um legado, e que este legado tem de ser apropriado.

É um pedido de socorro de recursos?
GIANNOTTI: É também um pedido de socorro de recursos, mas é um alerta: nós precisamos ter templos reflexivos e de ponta, para que possamos pensar o Brasil.

A preocupação quando o Cebrap começou era com o autoritarismo. Ainda temos de nos preocupar com isso?

GIANNOTTI: O problema do Brasil hoje é o contrário. É a falta de autoridade impessoal e o aumento das autoridades personalistas.

Nossa democracia é estável?

GIANNOTTI: Do ponto de vista eleitoral, temos uma estabilidade.
Mas, quando a democracia não reflete mais o jogo das vontades, eu pergunto se essa estabilidade não é um ocultamento. A política hoje é, sobretudo, um esconder dos desafios reais com os quais nós temos de nos debater.

Entre os que fizeram a história do Cebrap, há muitas pessoas com ideias e histórias divergentes, como o senhor, o professor Chico de Oliveira e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Os senhores sempre pensaram diferente, ou as divergências apareceram depois?

GIANNOTTI: As ideias sempre foram muito divergentes.
Cada um tentou fazer o seu caminho. Mas, como tínhamos um inimigo comum, que era o regime autoritário, essas diferenças não apareciam.
Agora que não temos um inimigo comum, essas divergências não só aparecem, como aumentam.

“Viemos do mesmo contexto”, diz FHC sobre Lula

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Declaração do ex-presidente integra o livro Retrato de grupo, parte da comemoração dos 40 anos do Cebrap

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso define-se como um homem de esquerda. Também se compara ao atual ocupante do Palácio do Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva. Garante que a trajetória dos dois teve saltos políticos. “No fundo, se você olhar bem, eu e o Lula viemos do mesmo contexto. Acho que nós dois somos fruto daquele momento de renovação da vida política brasileira e, em comparação com o estilo de carreira política anterior, nós, bem ou mal, representamos algo diferente em termos de ligação com a sociedade”, afirma, completando: “quando vejo Delfim como consultor de Lula, penso que eu tinha razão”. Essas declarações fazem parte do livro Retrato de grupo, que será lançado na terça-feira e reúne lembranças, reflexões e análises de intelectuais brasileiros que fundaram o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

A publicação faz parte da comemoração dos 40 anos do centro, que desenvolve pesquisas na área de ciências humanas. Nas entrevistas inéditas, além do ex-presidente, personagens como o sociólogo e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) Chico de Oliveira, o crítico literário e professor Roberto Scharwz, a demógrafa Elsa Berquó, o sociólogo Lúcio Kowarick e o filósofo José Arthur Giannotti. As memórias também foram registradas em vídeo. Um documentário, dirigido por Henri Gervaiseau, traz trechos das entrevistas combinadas com imagens de arquivo do período. A obra também contém textos em homenagem a Ruth Cardoso e ao sociólogo Vilmar Faria, amigo e assessor especial do ex-presidente para a área social.

O jogo da política

“Sempre achei que não se pode olhar a política aristotelicamente, contando os bons e os maus. A política é um jogo em que você deseja e às vezes pode transformar em bom o que é mau, fica com não me toques, mãos limpas, você se isola e não muda as pessoas”, disse na entrevista, quando questionado sobre o autoritarismo.

FHC liderou a criação do Cebrap em 1969. Também trabalhou no Centro de Estudos Latino-Americanos da Smithsonian Institution. Durante o exílio, após o golpe de 1964, foi para o Chile, onde viveu até 1967. De lá, seguiu para a França. Voltou ao Brasil em 1968 para disputar a cátedra de ciência política na Universidade de São Paulo (USP).

Em um dos trechos da entrevista, ele comenta a aproximação com centros de pesquisa “É importante lembrar que formávamos uma rede com vários centros de pesquisa de países latino-americanos, sobretudo da Argentina e do Chile, e o Cebrap foi modelo para alguns desses centros – um modelo de resistência intelectual aos regimes autoritários”, afirma, ressaltando que, em 1974, Ulysses Guimarães pediu que a entidade escrevesse os programas de campanha do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Para o ex-presidente, a maior contribuição do centro foi “eliminar a compartimentalização das ciências sociais e juntar demografia, filosofia, economia, às diversas áreas do pensamento e da análise social”.

Antonio Lavareda:: 'Obama não teria vez'

Deu na Veja

"O lulismo tem semelhanças com o varguismo, o peronismo e o chavismo"

A legislação brasileira permite que os governantes façam campanha no rádio e na TV desde sua posse. Já a oposição só dispõe do mês e meio que precede a eleição. Se as mesmas regras estivessem em vigor nos Estados Unidos, um senador desconhecido e em primeiro mandato como Barack Obama jamais chegaria à Presidência, como ocorreu no ano passado.

A conclusão é do sociólogo Antonio Lavareda, de 58 anos. Com uma bagagem de 76 campanhas políticas acumuladas desde 1985, ele já analisou 5 000 pesquisas de intenção de voto e é considerado um dos maiores estrategistas do país. Nesta semana, lança Emoções Ocultas e Estratégias Eleitorais (Editora Objetiva), no qual disseca as eleições ocorridas nos últimos vinte anos. Recém-filiado ao PSDB, para tentar se candidatar ao Parlamento do Mercosul, Lavareda falou ao editor Felipe Patury e à repórter Sandra Brasil sobre o livro e as perspectivas políticas para 2010.

O NOVO ELEITOR

O brasileiro está mais educado. Desde a redemocratização, o analfabetismo caiu pela metade e o número de pessoas com mais de oito anos de estudo duplicou. O eleitor também está mais experimentado. Uma pessoa de 42 anos pode já ter votado sessenta vezes. Portanto, é mais exigente. Em 1989, um dos fatores apontados nas pesquisas para a escolha de Fernando Collor era o fato de ele ser novo na política. Isso não ocorre mais, porque o eleitor passou a exigir experiência e biografia.

DESVIOS DA LEGISLAÇÃO ELEITORAL

As leis eleitorais estão repletas de absurdos. Um exemplo: uma mesma coligação dará ao seu candidato a prefeito um tempo de TV cinco vezes maior do que ao que postula a Presidência. Isso acontece porque quem disputa o Planalto divide o tempo de TV com quem concorre a governador, senador e deputado. Os candidatos a prefeito não o dividem com ninguém. Outro: cantores não podem mais aparecer nas campanhas. Se essa regra valesse em 1989, perderíamos uma das peças mais bonitas do nosso marketing político: o coral do Lula lá. O pior é a restrição do período de campanha eleitoral, que prejudica as oposições. Os governantes fazem propaganda desde que tomam posse. Já a oposição só tem um mês e meio para se apresentar. Se fosse assim nos Estados Unidos, Barack Obama não seria presidente. Senador de primeiro mandato, ele simplesmente não conseguiria se tornar conhecido. O ideal seria acabar com o programa eleitoral gratuito e distribuir seu tempo em comerciais que seriam veiculados por um prazo mais estendido.

POLARIZAÇÃO

Depois da Constituição de 1988, esperava-se que houvesse um grande número de candidatos no primeiro turno das eleições e que as alianças ficassem para o segundo turno. O efeito foi o contrário. As pesquisas introduziram uma lógica de viabilidade eleitoral no início do processo. Já no primeiro turno, o brasileiro leva em conta não só sua preferência como a rejeição que sente em relação a outros candidatos. Isso contribuiu para diminuir o número de candidaturas. Na eleição de 1989, havia 21 nomes no primeiro turno. Em 2006, foram oito, dos quais só o presidente Lula e o tucano Geraldo Alckmin eram competitivos.

LULISMO

Dos partidos brasileiros, o PT é o que tem a maior taxa de preferência: entre 25% e 30% do eleitorado. O lulismo é ainda maior. Não chega aos 82% de aprovação de Lula, mas alcança 55% da população. Faço essa estimativa com base nos votos que ele teve no primeiro turno de 2006. O lulismo é fruto da fragilidade partidária. Nesse contexto, os líderes carismáticos assumem um papel que é dos partidos: traduzir a política. O lulismo tem semelhanças com o varguismo, o janismo e o malufismo. Também se parece com o peronismo argentino e o chavismo venezuelano.

CLASSE C

A classe média emergente encorpou na gestão Lula. Ninguém sabe ainda qual será seu comportamento político. A tendência é que assuma os valores da classe B. Mas, em 2010, pode ser que ainda aja como as classes D e E. Mesmo que isso ocorra, não é seguro que ela modifique a eleição presidencial. Todas as classes sociais votaram de forma semelhante em 1994, 1998 e 2002. Nessas ocasiões, os vitoriosos ganharam em todos os segmentos de renda e escolaridade. Só houve alteração em 1989 e 2006. Em 1989, Collor perdeu na faixa superior a cinco salários mínimos e entre os que tinham chegado ao ensino médio. Em 2006, Lula perdeu entre os que ganhavam mais de dez mínimos e chegaram à universidade.

OS TEMAS DE 2010

O tema da campanha de Dilma Rousseff, do PT, está claro: a continuidade. Ciro Gomes (PSB) seguirá nessa linha. O tema de Marina Silva (PV) será o desenvolvimento sustentável. O que está em aberto é qual será o norte do PSDB, que só poderá ser definido quando o partido resolver se seu candidato será o governador paulista José Serra ou o mineiro Aécio Neves. O candidato tucano será o anti-Lula ou o pós-Lula? O interessante é que o PSDB nem sempre disputa com seu nome mais forte. Em 2002, Serra era fraco, porque era identificado com Fernando Henrique Cardoso, que tinha muita rejeição. Era preferível que apoiasse alguém de um partido aliado. Em 2006, Serra era o mais forte, mas o candidato foi Alckmin. O PSDB perdeu de novo.

Coluna do Milton Coelho da Graça

NEM TUDO É APENAS MAROLINHA
PARA MILHOES DE ENDIVIDADOS


A Federação do Comércio de São Paulo faz a melhor pesquisa do país sobre endividamento familiar e revela, em novembro, um súbito aumento do número de famílias endividadas – um “pulo” de 41% para 46%, significando que quase 200 mil famílias se “enrolaram” com algum tipo de prestação nos últimos trinta dias.

O número não é assustador, porque ainda é bem menor do que no auge da crise em 2008 – em outubro esse número chegou a 1,897 milhão, bem mais do que o deste mês – 1,656 milhão..

O problema é que ou ocorreu uma falha na pesquisa ou houve uma perigosa reversão na tendência de queda desde abril deste ano. Em outubro ocorrera uma redução de 150 mil famílias endividadas, provavelmente já por conta do 13º mês.

A pesquisa mostra claramente o alívio dado pelo 13º, mas, ao mesmo tempo, que esse alívio durará pouco. Os endividados em atraso até 30 dias aumentaram para 25,5%, em outubro eram 20,6%. Entre 30 e 60 dias, a percentagem praticamente estagnou – 19,4% em novembro, 19,9% em outubro. Mas os atrasados entre 60 e 90 dias “pularam” de 6,3% para 14,8%! E os que já estão em falta há mais de 90 dias são agora 48%, eram 44%.

Não ficaram só nisso os números que considero “perigosos”. Mais da metade dizem estar “encalacrados” com dívidas pelos próximos seis meses. E a quarta parte afirma que esse horizonte sombrio se estica por mais de um ano.

Outro dado pequeno, mas complicador: os tipos de dívida mais usados em novembro foram exatamente aqueles que exigem taxas de juros mais altas – o cartão de crédito e o cheque especial.

No Brasil, além de nosso governo considerar que tivemos apenas uma marolinha, a recuperação é anunciada com euforia, embora ainda estejamos lutando para apresentar um pequenino resultado positivo do PIB ainda este ano.

Além disso, existe a possibilidade de uma recaída, conforme economistas de várias tendências e o próprio presidente Obama afirmam recear. Muitas causas foram apontadas para a crise, mas o endividamento das famílias americanas e o nível de inadimplência nas hipotecas imobiliárias foram, sem dúvida, os grandes catalisadores. Grandes bancos, empresas e os cidadãos mais ricos certamente recordam que a crise explodiu quando o mundo parecia mais maravilhoso do que nunca. Só o malandro Madoff os esfolou em mais de 50 bilhões de dólares.

A concentração financeira e industrial está cada vez mais intensa – aqui e no mundo inteiro. O emprego ainda não voltou aos níveis de 2007 – aqui e no mundo inteiro. Desequilíbrios fiscais e comerciais estão em ascensão – aqui e no mundo inteiro.

O futuro talvez não ofereça apenas sorrisos, como nosso ministro da Fazenda romete.

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“Acredita-se que Cícero foi o primeiro homem a ver além da superfície da política pública de César. E a temê-la, como qualquer pessoa deve temer a sorridente superfície do mar.”

Plutarco (aprox. 46 DC - aprox. 120 DC), filósofo e biógrafo grego, em Vidas Paralelas – Júlio César.

Pensar e repensar o Brasil

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2 (21/11/2009)

Criado em plena ditadura, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, há 40 anos estuda os problemas do País. Agora tem livro e filme sobre sua história.

Antonio Gonçalves Filho

Aos 40 anos, uma instituição pode ser considerada velha ou apenas uma senhora que passou por experiências incomuns e começa a dar sinais de cansaço? Qualquer que seja a resposta, ela é madura o suficiente para virar outra página nessa história que começou na ditadura e foi escrita por ex-presidentes da República, governadores, filósofos, cientistas sociais, demógrafos e críticos de arte. É o que pretende provar o livro Retrato de Grupo (Cosac Naify), que será lançado na terça-feira, às 19h, no Sesc Vila Mariana, com a exibição do documentário homônimo dirigido por Henri Gervaiseau. Tanto o livro como o DVD trazem entrevistas inéditas com os intelectuais que fundaram o Cebrap - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, criado em 3 de maio de 1969 num antigo sobrado da Rua Bahia, em Higienópolis.

Endereço frequentado pelas melhores cabeças que circulam ou circularam pelo País, o Cebrap foi criado por exilados que retornavam ao País como resposta ao Ato Institucional 5, o AI-5, de 1968, que deu ao presidente Costa e Silva o poder de decretar a intervenção federal nos Estados e municípios, cassar mandatos, suspender direitos políticos e, escândalo, fechar o Congresso Nacional. Entre esses exilados, o mais famoso foi certamente o fundador do Cebrap, o sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, primeiro dos entrevistados de Retrato de Grupo, convidados pelos organizadores do volume, Paula Montero, presidente do Cebrap, e Flávio Moura, editor da revista Novos Estudos Cebrap, a fazer um balanço dos 40 anos de história da instituição.

Como, inevitável, há ausências no livro, o Estado convidou o professor do Departamento de Ciência Política da USP, José Álvaro Moisés, para registrar suas impressões na página 5, que traz um resumo das principais opiniões sobre o Cebrap, nascido como um centro de estudos sobre problemas brasileiros sem vínculo com a universidade, mas dependente da boa vontade de uma organização norte-americana. Foi justamente o dinheiro recebido da Fundação Ford a primeira causa dos muitos rachas registrados nessas suas quatro décadas de existência. Ideologicamente desalinhados, alguns de seus integrantes já começaram a brigar nesse momento germinal, por não aceitar dinheiro do "imperialismo". O que aconteceu depois Fernando Henrique Cardoso e os outros entrevistados contam nesta edição.

Um centro de ideias e polêmicas

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2 (21/11/2009)

Ex-integrantes do Cebrap guardam elogios e algumas críticas à instituição que abrigou FHC e Serra

Antonio Gonçalves Filho

A história poderia começar assim: um grupo de professores da USP se reúne seis anos antes de os militares tomarem o poder em Brasília para estudar regularmente O Capital e ver como as lições de Karl Marx poderiam ser aplicadas à realidade brasileira. Fazem parte desse seleto grupo um homem que viria a ser presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, sua mulher, Ruth Cardoso, o filósofo José Arthur Giannotti, o economista Paul Singer, o cientista social Octávio Ianni e o historiador Fernando Novais. Depois viriam o crítico literário Roberto Schwarz e o sociólogo Juarez Brandão Lopez, até que o golpe militar fez essas cabeças voarem para o exílio. Na volta, com o País ainda fechado e as universidades vigiadas pelo regime, FHC resolveu reunir de novos os amigos para estudar e foi assim que surgiu o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) num pequeno sobrado de Higienópolis, financiado com dinheiro americano da Fundação Ford.

Nos anos 1970, a ditadura ficou ainda mais tenebrosa com a decretação do AI-5. Começaram as perseguições, professores foram "aposentados" pelo regime e as cabeças pensantes encontraram no Cebrap um refúgio para a inteligência. Foi assim que, entre 1970 e 1971, o quadro de pesquisadores do Cebrap ganhou em sua fase embrionária a adesão de nomes como os dos sociólogos Francisco de Oliveira, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), e Bolívar Lamounier, entre outros, que passaram, em 1971, a publicar seus estudos na revista Estudos Cebrap e nos Cadernos Cebrap, três séries com 45 históricas edições (de 1971 a 1997). A resistência parecia surtir efeito até que, em 1974, alguns integrantes do Cebrap foram presos e até torturados, caso dos sociólogos Francisco de Oliveira e Vinícius Caldeira Brant. Para completar o quadro de terror, uma bomba caseira explodiu na sede do Cebrap em 1976, um ano antes de FHC filiar-se ao MDB e ser candidato ao Senado, e dois antes de José Serra voltar do exílio e tornar-se pesquisador do Cebrap.

Essa seria a história oficial se alguns dos ex-integrantes do Cebrap não tivessem a própria história para contar. Hoje distanciados por questões ideológicas, alguns contestam a versão de que teria sido o Cebrap o marco zero de partidos como o PSDB e o PT. Em sua entrevista no livro Retrato de Grupo, o recifense Francisco de Oliveira, já avisando que não é historiador soviético nem revisionista, discorda de Fernando Henrique Cardoso. Não aceita a versão de que o Cebrap tenha nascido sob o signo da Fundação Ford, embora tenha recebido dinheiro dela. Ex-presidente do Cebrap de 1993 a 1995, quando já havia se instalado a divisão partidária dentro da instituição, ele saiu rompido com alguns de seus integrantes que o consideravam anti-Cardoso. Oliveira diz que não era e não é contra FHC, mas não olha com nostalgia para o Cebrap do passado, onde passou 25 anos de sua vida. Admite que ele continua sendo um centro de pesquisas importante, mas que a universidade ocupou seu espaço, dividindo-o com outras instituições similares que cresceram nos últimos anos.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, respondendo a uma questão dos entrevistadores no livro, sobre a incorporação de pesquisadores no Cebrap não- oriundos da USP, diz que na época de sua criação, a USP "era muito fechada", "muito francesa, considerando-se superior ao resto daqui que não era francês". Destacando o papel do Cebrap como um "foco de resistência" contra a ditadura, FHC observa que nem todos os seus integrantes foram cassados ou perseguidos pelo regime, citando como exemplo o sociólogo Juarez Brandão Lopes. Sem mencionar nomes de outros ex-colegas do Cebrap, o ex-presidente conclui sua entrevista dizendo que "a maioria da esquerda brasileira está aferrada a duas ideias que envelheceram: a do velho nacionalismo e a do estatismo". Sua última frase vai para os candidatos a tomar o lugar de Lula. Eles teriam de ser como Barack Obama, capazes de funcionar como um ponto de referência para a sociedade de massas, papel que o atual presidente brasileiro desempenha bem. "O líder tem de tomar posição para pode existir", observa. E conclui: "Você vê que o Lula fala todo dia - fala sobre o que ele sabe e sobre o que ele não sabe, toma posição e até muda de posição." Vale como elogio. Mas pode servir como crítica.

Como o Cebrap virou referência não só no meio político como cultural, duas entrevistas com integrantes da área se destacam na edição de Retrato de Grupo, as do crítico literário Roberto Schwarz e a do crítico de artes visuais Rodrigo Naves. O primeiro organizou, em 1982, um dossiê sobre os pobres na literatura brasileira para a revista Novos Estudos, do Cebrap, que depois seria editada por Rodrigo Naves. O dossiê virou um livro irregular, com artigos fracos. Schwarz admite que poderia ter editado os textos ou pedido para que seus autores os reescrevessem. É possível que a prometida reedição de Os Pobres na Literatura Brasileira venha a corrigir esses equívocos.

A Novos Estudos, sob orientação de Rodrigo Naves, produziu também números especiais, como o dedicado ao filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, uma mudança na orientação na revista, até então dedicada quase que exclusivamente a debater a realidade brasileira. Naves observa que a nova linha adotada pelo Cebrap desde 1990, mais voltada para a pesquisa do que para a atuação política, pode até trazer surpresas, mas a crença inicial de seus fundadores, de que iriam mudar o capitalismo, essa já foi por terra.

José Álvaro Moisés :: Resistir e aceitar o pluralismo são os seus princípios

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / Caderno 2 (21/11/2009)

Nascida numa era sinistra, instituição legou essa lição à sociedade brasileira

Incomum na comunidade acadêmica brasileira, o hábito de celebrar os próprios feitos, a sua continuidade no tempo ou o próprio desenvolvimento de suas instituições não entusiasma muito a maioria dos cientistas sociais brasileiros (ao contrário, por exemplo, de nossos colegas norte-americanos que não perdem as oportunidades de consolidar as suas identidades institucionais e reforçar a autoestima de seus membros). Contudo, a comemoração dos 40 anos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento oferece uma excelente oportunidade para remarmos contra essa corrente.

Fundado em 1969 por Fernando Henrique Cardoso, em resposta à decisão da ditadura militar de aposentar compulsoriamente alguns dos mais importantes cientistas sociais do país, o Cebrap já começou definindo o que seriam duas de suas principais características: por um lado, a disposição de resistir (e transgredir, se necessário), quando a violação de direitos afeta a sociedade e bloqueia o pensamento; por outro, a aceitação do pluralismo e da diversidade de opiniões como elementos centrais da reflexão e do rigor científico, neste caso, voltado a diagnosticar e a responder aos desafios da sociedade. Tendo trabalhado no Cebrap por um curto período de tempo como assistente de pesquisa do professor Francisco Weffort, no início dos anos 70, em estudos sobre as relações entre o sindicalismo e a política, fiquei para sempre marcado pela experiência dos seminários do chamado "mesão" da Rua Bahia, quando o confronto de diferentes perspectivas intelectuais sinalizava, especialmente para os que iniciavam a sua carreira acadêmica, alguns dos principais cânones da construção do conhecimento científico.

40 anos é um período curto se pensarmos nas transformações por que passam as sociedades complexas, mas na experiência das instituições acadêmicas, e em especial das instituições das ciências sociais, é um tempo razoável para se avaliar os seus rumos. Nesse sentido, tenho a impressão que os 40 anos do Cebrap podem ser divididos em dois grandes períodos de 20: o primeiro vai da sua fundação, em 1969, até 1989, quando, depois da promulgação da Constituição de 1988, o país realiza as primeiras eleições diretas para a escolha de governo em quase 30 anos - foi a fase de resistência ao autoritarismo; o segundo ocupa a década de 90 e o início deste século, quando novas iniciativas expandiram o escopo da instituição e aprofundaram algumas de suas linhas iniciais de trabalho; é a fase sob a democracia.

Na primeira fase, além dos estudos inovadores sobre a demografia brasileira, coordenados por Cândido Procópio de Ferreira Camargo e Elza Berquó, as duas linhas de pesquisa que mais marcaram a instituição foram, de um lado, os esforços teóricos de Fernando Henrique Cardoso para analisar o modelo político brasileiro. Cardoso apontou então, inclusive com a sua análise dos "anéis burocráticos", rumos que seriam desenvolvidos anos depois na análise da transição dos regimes autoritários para a democracia por cientistas brasileiros e estrangeiros. O outro tema central desses anos foram os estudos coordenados por Paulo Singer e Francisco de Oliveira, embora de ângulos diferentes, em torno da articulação entre economia e Estado e, em especial, dos fundamentos do chamado "milagre econômico" dos anos 70. Essa produção, marcada por seu rigor acadêmico, ofereceu importantes contribuições para a militância política que enfrentava o regime militar, e são desse período os primeiros contatos de Cardoso com o PMDB, em especial, com Ulisses Guimarães, então preocupado em dar mais consistência à oposição ao autoritarismo.

Identifico a segundo fase no período que vai dos anos 90 até hoje. Na década de 90, como outras instituições surgidas anos antes com base em seu modelo institucional, como o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - Cedec e o Instituto de Estudos Sociais e Políticos - Idesp, o Cebrap enfrentou grandes dificuldades financeiras porque as agencias que financiavam suas atividades, como a Fundação Ford, suspenderam o grosso das contribuições com base no argumento de que, livre do regime militar, o país devia enfrentar por conta própria os desafios de financiar a pesquisa de ponta em ciências humanas. Então, no anos 90, os esforços de José Arthur Giannotti e Ruth Cardoso se concentraram em um programa inovador de formação de pesquisadores. Em parte como resultado desses esforços, no início desta década, sob a direção de uma nova geração de cientistas sociais, a instituição voltou a marcar os estudos sobre o sistema político brasileiro, a exemplo dos esforços coordenados por Fernando Limongi para caracterizar o chamado presidencialismo de coalizão.

Ao lado de várias outras iniciativas, a criação do Centro de Estudos da Metrópole, sob a coordenação de Eduardo Marques e Vera Schattan Pereira Coelho, em 2001, retomou a tradição de estudos sobre os problemas sociais e políticos de cidades como São Paulo. Nos anos 70, como parte de sua política de apoio aos grupos da sociedade civil que resistiam à ditadura, o Cebrap havia produzido, em colaboração com D. Paulo Evaristo Arns e a arquidiocese de São Paulo, as pesquisas que deram origem ao livro São Paulo Crescimento e Pobreza, que teve enorme repercussão no país e no exterior. O Centro de Estudos da Metrópole é herdeiro deste sucesso, mas uma série de outras iniciativas de estudos sobre cultura e política ou das relações entre filosofia e direito têm atualizado a vocação do Cebrap de diagnosticar em profundidade a sociedade brasileira.

Boas celebrações não olham apenas para o passado, mas observam se o que foi feito em anos anteriores serve de exemplo crítico para o que pessoas e instituições estão fazendo no presente. Nesse sentido, não resisto a lembrar de uma coisa que talvez não tenha sido o principal objetivo do Cebrap quando ele foi fundado, mas que mostrou o quanto seus frutos foram importantes: de seus quadros saíram, não só um Presidente da República, mas vários ministros ou administradores públicos que, em diferentes governos, se apoiaram sobre o conhecimento científico que adquirido no Cebrap para ajudar o país a resolver os seus desafios. É um bom motivo para comemorar.

José Álvaro Moisés é professor do Departamento de Ciência Política e diretor científico do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas - NUPPs, da Universidade de São Paulo, autor de vários livros, e de um capítulo de São Paulo Crescimento e Pobreza