quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Luiz Werneck Vianna*: Ainda podemos nos tornar um imenso Portugal

Em política é preciso estar atento ao tempo, que não para como o movimento da terra que não sentimos, como Nabuco gostava de dizer, embora conheçamos seus resultados nas noites que se sucedem aos dias e nas mudanças das estações, assim como variam pelos efeitos das nossas próprias ações, em grande parte inesperados, as circunstâncias imperantes na sociedade em que vivemos e atuamos. Há cerca de 50 anos um celebrado poeta vaticinava que o Brasil estava se tornando um imenso Portugal, autocrático, passadista e inimigo das liberdades, e enquanto seu belo canto embalava o mundo já germinava o que se tornaria a Revolução dos Cravos que sepultaria a época de trevas do salazarismo. Por que o mundo gira e a Lusitana roda, também estava fora do alcance do poeta que o Portugal de hoje se converteria aos nossos olhos numa experiência a ser seguida com sua capacidade de navegar em meio a tempestades e se manter fiel aos ideais com que expurgaram os males do seu passado ditatorial.

Vera Magalhães: Falta a Bolsonaro visão de Brasil

O Globo

Jair Bolsonaro deu para demonstrar tamanho fastio com a tarefa de governar o Brasil que fica difícil entender por que, além da razão exclusivamente política, ele pretende gastar mundos e fundos para tentar se reeleger.

Duas das últimas manifestações do presidente de turno apontam uma completa ausência, da sua parte, de visão do que seja o país que administra (sic) há três anos.

Para se contrapor à avassaladora constatação de que foi o presidente que mais gastou nos cartões corporativos da Presidência, sobre os quais ainda colocou camadas adicionais de sigilo, o capitão (ou seus filhos, esses luminares da comunicação) teve uma ideia: por que não dar um dos seus apreciados rolês de motoca pela capital federal e se deixar fotografar coberto de farofa, comendo um frango com as mãos numa barraca de rua? Genial, não?

Não. Poucas cenas podem ser mais emblemáticas da falta de empatia do presidente com quem de fato carece de recursos para se alimentar, ou precisa muitas vezes fazer uso das mãos pois não dispõe de casa, cadeira, talheres e pratos.

Luiz Carlos Azedo: A política mundial caminha no sentido anti-horário; no Brasil, também.

Correio Braziliense

Caso Lula faça seu aggiornamento, a estratégia de seus concorrentes no campo democrático não passará da mera busca de sobrevivência na trincheira parlamentar

Desde a eleição do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a política mundial caminha no sentido anti-horário. As recentes eleições chilenas e, neste fim de semana, os pleitos portugueses mostram isso. A onda eleitoral favorável às forças mais conservadoras e reacionárias, em vários países da Europa e da América Latina, foi contida em razão de fatores que também estão se apresentando nas eleições brasileiras. Primeiro: indiscutivelmente, a pandemia de covid-19 desorganizou a economia e escancarou as desigualdades sociais num quesito básico, o direito à vida. Segundo: o novo choque de petróleo, patrocinado pela Opep, pela Rússia e pela Venezuela, grandes produtores mundiais. Terceiro: a economia do carbono está tornando a vida humana no planeta muito mais difícil e ameaça o futuro da espécie. Quarto: a compreensão no Ocidente de que não existe salvação fora da democracia, por sinal, muito bem lembrada em 27 de janeiro passado, em memória do Holocausto.

Elio Gaspari: O compromisso com o erro

O Globo

Lula parece ter ouvido JK

Há poucas semanas, quando Guido Mantega foi escalado pelo PT para escrever um artigo para a Folha de S.Paulo propondo um programa econômico, a turma do papelório assustou-se. Haveria o risco de retomar o caminho da ruína? Passaram-se 26 dias, e o próprio Mantega mostrou que dentro do lençol não havia fantasma: “Não pretendo voltar. A economia tem ciclos; você fica com a parte boa, mas se a economia não funciona, a culpa é do ministro. Fiquei no governo por 12 anos seguidos. Já dei a minha parte”.

O pessoal do papelório gosta de sustos, e Lula gosta de administrar temores alheios.

Depois de ter surpreendido a plateia da cena política apontando a possibilidade de escolher o tucano Geraldo Alckmin para seu vice, Lula mostra que absorveu o ensinamento de Juscelino Kubitschek: “Não tenho compromisso com o erro”. Tê-lo desprezado foi um dos pilares da derrocada petista na eleição de 2018.

José Nêumanne*: O crime no comando

O Estado de S. Paulo

Na farsa democrática, perde tempo o gestor público que tentar governar com planos e projetos

Neste País, Bolsonaro manda às favas o Supremo Tribunal Federal (STF), que desconhece a Constituição para tudo permitir aos donos da lei

A democracia é o império da lei. Na sexta-feira 28, esse truísmo foi falsificado pela maior autoridade da República. Ou não vigora nela o que possa ser definido como governo do povo. Pois Bolsonaro não depôs na Polícia Federal, órgão do Estado, e não de seu governo particular, sob acusação de vazar inquérito sigiloso, a cargo da mesma. Agiu como se estivesse acima da norma legal. O que significa além ou fora dela.

Vinicius Torres Freire: Compra de votos com diesel e fogão

Folha de S. Paulo

Baixar tributos sobre diesel e eletrodoméstico tem pouco efeito e eleva a dívida

Paulo Guedes quer emagrecer o "Estado obeso" cobrando menos imposto sobre eletrodomésticos, para "beneficiar o setor industrial e o consumidor de massa". Diz que o aumento permanente da arrecadação do governo foi de mais de R$ 100 bilhões em 2021. Quer devolver até uns R$ 20 bilhões para a "população abusivamente explorada" pelo governo glutão. Para tanto, diminuiria um imposto sobre fogão, geladeira e lava-roupas.

Hum.

Como no caso de diesel e gasolina, se o governo cobrar menos imposto, vai fazer mais dívida. Vai, pois, pagar mais juros, o que beneficia ricos.

Bruno Boghossian: Aposentadoria antecipada

Folha de S. Paulo

Equipe do ex-presidente quer conter exploração de erros na economia e corrupção por rivais

O PT anunciou a aposentadoria de alguns de seus quadros. Na semana passada, Lula disse que Dilma Rousseff não deve ocupar nenhum cargo no governo caso ele vença a próxima eleição. Outros petistas seguiram o exemplo: em declarações públicas nos últimos dias, Guido Mantega e José Dirceu descartaram uma volta à Esplanada dos Ministérios em 2023.

O partido se antecipou para deixar no passado figuras que podem se tornar incômodas na campanha. O time de Lula quer descolar a imagem do presidente das memórias da crise econômica evocadas com Dilma e Mantega, além das conexões de Dirceu com escândalos da era petista.

Hélio Schwartsman: O livre-arbítrio salva Deus?

Folha de S. Paulo

Livre-arbítrio não explica o mal resultante de desastres naturais

O problema da teodiceia tem mais de 2.000 anos, de modo que não achei que causaria tanta polêmica ao evocá-lo em relação à pandemia, como fiz na coluna "Deus e a Covid". Mas, como estou até agora recebendo contestações, acho que vale a pena tentar esclarecer alguns pontos.

Conciliar o sofrimento presente no mundo com a existência de um Deus onipotente e benevolente é um problema real, que desafia filósofos e teólogos das mais diversas tradições. E nem é algo que os religiosos procurem esconder. É o tema mesmo do "Livro de Jó", incluído na Bíblia.

Fernando Exman*: O jogo da regulação dos criptoativos

Valor Econômico

Ideal é proteger investidor sem criar amarras à inovação

Era tarde da noite de 8 de dezembro, algo comparável aos 42 minutos do primeiro tempo deste biênio em que a Câmara será presidida por Arthur Lira (PP-AL), quando os deputados aprovaram o projeto de lei que regulamenta a atividade de prestação de serviços de negociação de criptoativos.

Lance inesperado, que ainda não se sabe qual andamento terá no Senado, a despeito dos sinais de que a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) não perderá tempo. Será difícil ignorar o assunto depois da notícia divulgada recentemente pelo Banco Central (BC) de que as importações de criptoativos somaram US$ 6 bilhões em 2021 - volume recorde e quase o dobro do registrado no ano anterior.

Tiago Cavalcanti*: Transferência de renda como investimento

Valor Econômico

O Bolsa Família é uma forma pragmática de garantir renda para os mais pobres, em um país com alta informalidade

No meu artigo anterior (“Por que as pessoas seguem na pobreza?”), aqui no Valor, discuti razões pelas quais indivíduos permanecem em situação de extrema pobreza e em atividades de baixíssimo rendimento. Apresentei evidências sobre como um programa de distribuição de ativos em Bangladesh teve efeitos positivos e permanentes sobre o tipo de ocupação, trabalho e renda das famílias beneficiadas.

Portanto, não só políticas de capital humano são efetivas para combater a pobreza de curto e longo prazos; ações redistributivas podem ter papel relevante.

No presente artigo, discuto o desenho das políticas de transferência de renda sob a ótica do investimento. Penso que, nesta questão, o objetivo do gestor público é de transferir eficientemente recursos para as pessoas que realmente necessitam, minimizando os possíveis efeitos adversos dessas transferências.

A questão atraiu vários pensadores, inclusive os liberais mais influentes. Milton Friedman, por exemplo, em seu livro “Capitalismo e Liberdade”, dedica o penúltimo capítulo ao problema de combate à pobreza.

Roberto DaMatta: Tempos eleitoreiros

O Globo

Em tempos eleitorais, tempos de mudanças inversas ou reversas, de ajustes de contradições e permanência disfarçada; tempos nos quais mudamos nomes e inventamos partidos, mas não pensamos nisso como um costume destinado a não transformar os jeitinhos, os assassinatos de caráter, as notícias mentirosas, falsas, fantasiosas, caluniosas, criminosas — enfim, tudo que cabe na noção de fake surge como um sol de verão.

Em tempos eleitorais, falamos de “candidatos” e postulantes. Dos que pretendem ser eleitos numa competição teoricamente igualitária. E tal princípio alheio à vida cotidiana produz uma multidão de discursos conjunturais, transformando-se numa verdadeira “economia política eleitoral”, na qual se produz uma matemática de relações. Uma álgebra que poderá revelar se A vai com X ou Y, e se o partido Z vai com G, T ou K. O campo político eleitoreiro vira uma crônica de Lima Barreto ou um manicômio de Machado de Assis. Nele, só não ficam loucos os pré-candidatos, perdidos numa competição cuja única regra é ganhar porque, conforme sabemos, “em política vale tudo”, até mesmo trair juramentos constitucionais, como é rotineiro em Bolsonaro. Dito isso, vale observar a ferocidade com a qual se tenta, neste jogo sujo, eliminar o “centro” bloqueador eventual de uma infame repetição.

Luiz Roberto Nascimento Silva*: O novo escravo digital

O Globo

A revolução digital trouxe uma mudança profunda no ciclo do trabalho, que ficou mais curto com o crescimento de serviços temporários sem proteção ou sindicalização. Nesse universo, os serviços de delivery utilizam-se de trabalho quase escravo. O prestador não é empregado de quem encomenda nem do restaurante para o qual trabalha. Aluga a moto ou bicicleta que usa, não tem férias nem folga no fim de semana, não tem plano de saúde e não vai se aposentar.

Na fase inicial, esse novo escravo sentiu-se liberto da estrutura tradicional de trabalho com subordinação e rotina, achando que a mudança seria sua libertação. Sua consciência ainda não se formou, mas sente sinais insistentes de que as coisas não estão saindo como imaginou. Analisei este assunto em detalhe no livro “O cavalo de Troia digital”, que acabo de publicar. O tema passou a ser objeto de discussão dos principais candidatos à Presidência da República, valendo a pena refletir sobre ele.

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Na volta às aulas, ensino presencial deve ser prioridade

O Globo

No momento em que escolas de todo o país começam a retomar suas atividades, secretários estaduais e municipais de Educação, diretores e professores têm a missão crucial de fazer o possível e o impossível para que os alunos voltem às salas de aula, depois de um inaceitável afastamento de quase dois anos em que imperou o ensino remoto ou híbrido.

É boa notícia a forte adesão ao ensino presencial, mesmo com o agravamento da pandemia de Covid-19 pelo avanço da variante Ômicron. Como mostrou reportagem do GLOBO com o G1, dez redes públicas estão retomando o ano letivo esta semana de forma presencial, como é o caso dos estados de São Paulo, Ceará, Espírito Santo e Pernambuco (Goiás havia feito o mesmo na última semana). Nos próximos dias, Bahia e Rio de Janeiro devem se juntar ao grupo. Capitais como São Paulo, Rio, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte, São Luís, Recife, Goiânia e Palmas também priorizam o modelo presencial. Espera-se que sirvam de exemplo.

Poesia | João Cabral de Melo Neto: Ainda a retórica

Talvez retórica: na voz
que não sabe ser em voz baixa,
e que por isso mais explode
do que fala, se é que ela fala;

retórica ao avesso, ela ensina
senão o falar, essa explosão
com que a voz, como qualquer gás,
se expressa ao ser forte a pressão;

caprichosa, com a água morta
da vida sul-americana,
que explode sem quandos nem ondes,
ou onde parece mais mansa.