domingo, 12 de junho de 2022

Cristovam Buarque*: Disputas menores

Blog do Noblat / Metrópoles

Quando Lula e Alckmin se unem por uma causa maior, ouve-se vozes contestando esta unidade, de um lado e de outro

Foi um colega professor da UnB quem me chamou a atenção de como as disputas políticas menores dominavam o debate político no passado. Pessoas com os mesmos propósitos para o futuro do país – justo, eficiente, democrático, sustentável – se repudiavam por discordar de alguns dos meios defendidos por outros do mesmo lado. O resultado desta divisão, entre 1992 e 2018, foi o retrocesso destes últimos quase quatro anos. Embora com concepções parecidas sobre o Brasil que desejavam para o futuro, militantes de siglas diferentes se desviaram da causa maior e concentraram esforços em destroçar aliados. Parece que isto não mudou, ainda que a realidade mostre a nítida identidade de quem são os verdadeiros adversários do Brasil e do mundo civilizado que desejamos.

Merval Pereira: O avesso do avesso

O Globo

A participação de militares no governo Bolsonaro começou com a presunção de muitos de que eles conseguiriam controlar seus ímpetos autoritários, enquanto a escolha de Paulo Guedes para o superministério da Economia indicaria um governo liberal. A escolha de Sergio Moro, também para um Ministério da Justiça fortalecido na sua estrutura com órgãos de fiscalização como o Coaf, indicaria o combate à corrupção de maneira organizada.

Bolsonaro, o político bronco, teria sido manipulado por grupos políticos e militares para abrir caminho à tomada do poder de um projeto político liberalizante. Seria uma espécie de marionete para a volta dos militares ao poder pela porta da frente, já que o último general ditador, João Figueiredo, saíra do Palácio do Planalto pela porta dos fundos, negando-se a transmitir a faixa presidencial a José Sarney, vice de Tancredo Neves.

No último dos quatro anos de governo Bolsonaro, já não resta nada do projeto liberal do Paulo Guedes, nem do combate à corrupção planejado por Moro, nem a suposta resistência dos militares. Ao contrário, dominam o cenário atual militares que foram cooptados pelo presidente para uma ação que a cada momento ganha mais força, enquanto o jogo político se desenvolve sem que o mandatário demonstre fôlego para se reeleger democraticamente.

Míriam Leitão: Semelhanças e diferenças

O Globo

Na economia, existem algumas semelhanças. Bolsonaro quer intervir na Petrobras, Lula também quer. Bolsonaro demitiu com canetadas três presidentes da estatal, Lula diz que falta coragem ao seu oponente para dar uma canetada e mudar a política de preços dos combustíveis. Mas, no geral, predominam as diferenças. No governo Bolsonaro, cresceu fortemente o número de pessoas passando fome no Brasil, no governo Lula o Brasil saiu do mapa da fome. O PT derrubou durante dez anos, em 80%, o desmatamento na Amazônia. A média da destruição da floresta nos três anos de Bolsonaro é 53% maior do que a média dos três anos de Michel Temer. O PT governou o país por 13 anos. Quando sofreu impeachment, protestou, atacou os críticos, não admitiu seus erros e carimbou o evento como golpe, mas saiu do Palácio pela porta da frente. Bolsonaro há três anos e meio faz as piores ameaças institucionais ao país.

Em certos pontos da política macroeconômica o ex-presidente Lula e o atual presidente são bem parecidos. No projeto político, eles são diametralmente opostos. Nas próximas semanas e meses, o país vai esmiuçar esses pontos em debates, entrevistas e análises. O esboço do programa econômico do PT tem velhas propostas que ele sempre defendeu, algumas colocou em prática, com péssimos resultados. Na última semana, o intervencionismo econômico, do qual o partido é admirador, foi também a tônica do discurso de Bolsonaro e até do ministro Paulo Guedes. O que os distancia é que, sob Bolsonaro, o país vive em constante tormento institucional, com ameaças cada vez mais pavorosas supostamente em nome da liberdade.

Bernardo Mello Franco: A espada sobre a urna

O Globo

O ministro da Defesa apontou a espada para o pescoço da Justiça Eleitoral. Na sexta-feira, o general Paulo Sérgio Nogueira tentou enquadrar o presidente do TSE. Em papel timbrado, lançou novas suspeitas sobre a urna eletrônica e endossou a retórica golpista de Jair Bolsonaro.

O ofício oscila entre o queixume e a intimidação. Na parte lacrimosa, o general diz que as Forças Armadas “não se sentem devidamente prestigiadas” pelo TSE. Na parte perigosa, descreve as eleições como uma questão de “soberania nacional”. E cita trechos do artigo 142 da Constituição, deturpado por bolsonaristas que sonham com um novo golpe militar.

A alegação de desprestígio é infundada. Os integrantes das Forças Armadas receberam mais privilégios do que qualquer outra categoria nos últimos quatro anos. Foram favorecidos na reforma da Previdência, acumularam salários acima do teto e abocanharam mais de seis mil cargos civis no governo, sem contar o comando de ministérios e estatais.

Eliane Cantanhêde: Bruxas soltas e falantes

O Estado de S. Paulo

A inteligência do STF monitora grupos, redes sociais e a ‘deep web’ e tem plano contra ameaças reais

Os ministros do Supremo unificaram o discurso e praticamente todos dizem que as ameaças do presidente Jair Bolsonaro não passam de bravatas e não haverá golpe nenhum, para depois engatar uma ressalva: ... mas convém ficar de olho. É a velha história: “Não creio em bruxas, mas que elas existem, existem”.

Por isso, o presidente da Corte, Luiz Fux, só transmitirá o cargo à ministra Rosa Weber no limite do prazo, 9 de setembro. Quer estar à frente do Supremo nos dias 7 e 8, quando a expectativa é de novos ataques de Bolsonaro às eleições, à Justiça, ao TSE e ao próprio Supremo.

Assim, Fux não só pretende manter o protagonismo na crise institucional fabricada por Bolsonaro como preservar Rosa Weber de uma esgrima verbal com o presidente da República já na sua estreia na presidência do Supremo. O temor é de uma repetição do Dia da Pátria do ano passado, quando Bolsonaro ultrapassou todos os limites e estressou o País.

Rolf Kuntz*: Fome, inflação e caça aos votos

O Estado de S. Paulo

Em campanha eleitoral, o presidente Bolsonaro tenta passar a empresários e governadores a responsabilidade pela inflação.

Fartura e fome foram destaques do noticiário, de novo, neste país conhecido como terra de contrastes. Em novo recorde, a safra de grãos deve chegar a 271 milhões de toneladas, segundo o Ministério da Agricultura. Não devem faltar, nos armazéns, feijão, arroz e outros alimentos essenciais para os brasileiros. Pode faltar, e tem faltado, dinheiro para quem precisa pagar pela comida. Divulgada no mesmo dia, uma pesquisa apontou 33 milhões de pessoas sujeitas à fome, 15,5% da população, e 125 milhões em condição de insegurança alimentar. O Brasil proporciona alimentos a 1 bilhão de pessoas, disse o presidente Jair Bolsonaro, em Los Angeles, na Cúpula das Américas. Não ficou claro se esse bilhão inclui aqueles subnutridos, se o desconto foi feito ou mesmo se Bolsonaro tinha ouvido a notícia.

Mas comida no prato depende do poder de compra. Como este depende dos preços, Bolsonaro foi alertado sobre os efeitos eleitorais da inflação. Na quinta-feira o presidente e o ministro da Economia, Paulo Guedes, participaram virtualmente de uma reunião do setor de supermercados e pediram ajuda aos empresários. Bolsonaro sugeriu redução do lucro sobre os produtos da cesta básica. O ministro apelou por uma trégua nos aumentos de preços. Transferiram às empresas, portanto, uma responsabilidade pública, a ação anti-inflacionária, confessando implicitamente sua impotência e menosprezando fatores como a incerteza fiscal e a instabilidade do câmbio.

Transferir responsabilidades e culpas é uma das especialidades do presidente Bolsonaro. Nesse jogo, ele demitiu três presidentes da Petrobras e um ministro de Minas e Energia. Conseguiu retardar alguns aumentos de preços, mas sem eliminar um ponto essencial da política da empresa, a observância das cotações internacionais.

Pedro S. Malan*: O quarto inverno: novo salto no escuro?

O Estado de S. Paulo

No mundo da economia, não faltam experimentos populistas fracassados de ‘esquerda’ e de ‘direita’ na América Latina.

O presidente Bolsonaro anunciou esta semana, com três meses de antecedência, a preparação de manifestações que ocorrerão no dia 7 de setembro próximo – menos de um mês antes do primeiro turno das eleições. Quem se lembra das manifestações de 7 de setembro de 2021 e, principalmente, da postura do presidente naquela data tem razão para preocupações neste início do quarto inverno do governo Bolsonaro. Sobretudo caso venha acompanhando com atenção os eventos desde a divulgação do vídeo da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020.

São eventos que realçam a relevância do artigo do historiador mexicano Enrique Krauze, Os dez mandamentos do populismo (Estado, 15/4/2006, A17), que assim se inicia: “O populismo na América Latina adotou um amálgama desconcertante de posições ideológicas. Esquerdas e direitas poderiam reivindicar a paternidade do populismo, todas ao conjuro da palavra mágica ‘povo’”.

Bruno Boghossian: Sete de setembro: o retorno

Folha de S. Paulo

Presidente convoca apoiadores para versão anabolizada de atos de 2021, às vésperas do 1º turno

Jair Bolsonaro começou a organizar uma versão anabolizada dos protestos de Sete de Setembro do ano passado. A ideia é reeditar a pauta golpista, reforçar ataques a ministros do STF e espalhar suspeitas falsas sobre as eleições —desta vez, a poucas semanas do primeiro turno.

Os bolsonaristas descrevem os atos como um "movimento espontâneo", mas o próprio presidente faz a convocação. Em entrevista ao SBT, ele avisou que as manifestações devem ocorrer nas capitais, em apoio "a um possível candidato que esteja disputando". Acrescentou que um dos objetivos é mostrar que seus apoiadores "querem eleições limpas".

Bolsonaro vê a data como um ato preparatório para a contestação do resultado das urnas, 26 dias depois. O presidente alega que a ida dos apoiadores às ruas será uma prova de que ele tem mais apoio que Lula, de que há gente suficiente desconfiada do processo de votação e de que essas pessoas não aceitam o que "dois ou três lá do TSE querem impor".

Vinicius Torres Freire: Covid e popularidade de Bolsonaro

Folha de S. Paulo

Renda dos mais pobres cresceu em 2020, mas levou o tombo mais dramático em 2021

A gente especulava que o fim do auxílio emergencial de R$ 600 ajudou a derrubar a popularidade de Jair Bolsonaro. Os números impressionantes da pesquisa de rendimentos do IBGE, a Pnad Anual, divulgada na sexta-feira, reforçam a hipótese.

O rendimento dos brasileiros que estão entre os 40% mais pobres teve um ganho relevante em 2020, primeiro ano da epidemia. Entre os 10% mais pobres, o aumento médio foi de 15% acima da inflação, por exemplo, chegando ao maior nível desde 2016. Para o restante do grupo dos 40% mais pobres o avanço foi menor, mas o rendimento real em 2020 chegou a ser maior do que em 2015.

Para os 60% "mais ricos", o rendimento médio caiu em 2020, embora pesquisas como a Pnad não captem bem certos ganhos das pessoas no topo da pirâmide.

Muniz Sodré*: Shows de parasitas

Folha de S. Paulo

A continuidade entre a exploração das prefeituras na ditadura e a de agora é a cultura como forma parasitária de existência

Há um fio de continuidade entre determinados episódios sob o regime militar e os atuais shows de cantores ditos sertanejos, financiados por prefeituras que dilapidam os seus orçamentos precários, desviando verbas da saúde e da educação.

Esse fio são os pagamentos astronômicos para algo que se apregoa publicitariamente como "cultura". Na época, o "espetáculo" não era musical, mas a reprodução em revistas coloridas das benesses auferidas por remotos municípios nordestinos como consequência dos supostos avanços promovidos pelo regime.

Não eram atividades mediadas por um publicitário ou um jornalista qualquer: o produtor detinha excepcionais condições de pressão, a exemplo de contatos com figuras poderosas, senão a intimidação por meio de documentos especiais, para coagir os ordenadores de despesas de pequenas localidades.

Hélio Schwartsman: Como o mundo funciona

Folha de S. Paulo

Não há risco de o oxigênio da Terra acabar, mas água e comida são uma preocupação em relação à distribuição

"How the World Really Works", de Vaclav Smil, pode ser descrito como um destruidor de mitos. Valendo-se da boa e velha aritmética e de valiosos esclarecimentos sobre como suprimos nossas necessidades básicas, o autor traça um panorama realista dos desafios que temos pela frente.

Mudança climática, poluição e superexploração de recursos naturais são problemas graves, que cobram ações de todos nós, mas é precipitado afirmar que o fim do planeta ou da civilização esteja próximo. Não há risco, por exemplo, de o oxigênio da Terra acabar, como já sugeriu um presidente. Já água e comida são uma preocupação, mas não em relação à produção e sim à distribuição. Temos esses dois recursos em quantidades suficientes, mas os gerenciamos muito mal. Um terço dos alimentos produzidos estraga sem ser consumido.

Janio de Freitas: Dois mentirosos e alguns mais

Folha de S. Paulo

Frases dos presidentes insultam, debocham dos que se arriscam na defesa da Amazônia

indignada expectativa do mundo com o desaparecimento do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista Dom Phillips ficou à margem do breve encontro de Joe Biden e Bolsonaro, mas, ainda assim, teve a presença mais forte no falso diálogo dos dois mentirosos.

Isso se deu sob a forma de um insulto dúplice de Biden e Bolsonaro, cada qual à sua maneira, e do cinismo como sua linguagem presidencial. Se os viu por TV, por certo Putin sentiu-se abonado.

Bolsonaro, sempre o mesmo dizendo ou desdizendo-se, foi o que é: "O Brasil preserva muito bem o seu território. Nossa legislação ambiental é bem rígida, fazemos o possível para cumpri-la, pelo bem de nosso país".

Biden, o rosto sempre contido em indefinição putiniana, conseguiu encaixar na brevidade toda a impostura: "O Brasil é um país maravilhoso, com instituições fortes. Vocês procuram proteger a Amazônia".

Essas frases insultam, debocham dos que denunciam, perdem empregos, se arriscam em luta na defesa da Amazônia. Dessa obra-prima da natureza, entregue por Bolsonaro e pelos militares bolsonaristas à sanha das milícias de garimpeiros e madeireiros ilegais, saqueando e contrabandeando riquezas em reservas indígenas e em terras da União.

Dorrit Harazim: Réquiem duplo

O Globo

Alessandra Sampaio tinha a angústia do não saber estampada no rosto e na voz quando surgiu pela primeira vez no telão da GloboNews,em entrevista a André Trigueiro. Seu marido, Dom Phillips, jornalista britânico radicado no Brasil, desaparecera havia dias na Amazônia, junto ao indigenista Bruno Pereira, e tudo eram incógnitas. Havia um blackout total de notícias, nenhum vestígio ou pista de ambos, e as primeiras buscas oficiais se arrastavam anêmicas. Apesar do desamparo, Alessandra conseguiu retratar de forma indelével o companheiro de vida:

—Eu sou espiritualizada, [o Dom], mais reservado, me dizia: “Alê, para mim Deus é a natureza” — contou, tomando fôlego.

Quem a ouviu murmurar frase tão absoluta entendeu tudo. Entendeu sobretudo o motivo oculto de a frase seguinte começar no condicional e prosseguir com o verbo no pretérito:

—Se ele partiu ali [naquela imensidão amazônica], foi no meio do Deus no qual acreditava.

Foi quase um réquiem — belo, profundo, (e)terno. Vale para dois seres humanos raros. Ao contrário das outras criaturas que habitam a Terra, desaprendemos a andar por ela com a leveza e o cuidado de um Dom Phillips e um Bruno Pereira.

Elio Gaspari: A criminalização da Amazônia

O Globo / Folha de S. Paulo

Uma coisa é discutir o desmatamento ou a falta de atenção para os indígenas, outra é olhar para a região como hospedeira do crime organizado, com seu braço do narcotráfico

O desaparecimento do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Phillips se tornou um capítulo no debate internacional em torno da Amazônia. O governo brasileiro, que já estava mal na foto, ficou pior. Uma coisa é discutir o desmatamento ou a falta de atenção para os indígenas. Bem outro é olhar para a região como hospedeira do crime organizado, com seu braço do narcotráfico.

Os estrategistas de Brasília, que gostam de brincar com tabelas, arriscam transformar a Amazônia numa ameaça à segurança de outros países. A debilidade do Estado brasileiro na região estimulará discursos intervencionistas, bem ou mal-intencionados. Para um europeu ou norte-americano, o aquecimento global pode ser um assunto secundário, já a cocaína exportada para suas cidades é um risco próximo. Basta lembrar que o latino-americano mais famoso mundo afora é o falecido narcotraficante colombiano Pablo Escobar. Ele foi tema de algo como 30 filmes e séries de TV, mais dezenas de livros publicados no mercado de língua inglesa.

As facções criminosas competem com os órgãos federais de segurança e meio ambiente. Lá estão o Comando Vermelho carioca, o paulista Primeiro Comando da Capital, mais a Família do Norte, o Comando Classe A e Os Crias. Elas são um dado da equação. A conexão dos garimpos ilegais com essas facções criminosas é outra. Junta-se a essas duas anomalias a rede de interesses de grileiros, desmatadores e garimpeiros ilegais confortados pela retórica de Jair Bolsonaro.

Sérgio Augusto: A senha do dia D

O Estado de S. Paulo

Nunca descobri quem teve a ideia de fazer do poema de Verlaine a senha da maior e mais secreta operação militar

Já devo ter dito aqui que considero 6 de junho de 1944 o dia mais importante da história da humanidade. O nascimento de Jesus, pule de dez na maioria das escolhas, ainda suscita controvérsias, ao passo que o Dia D tem data certa; comprovadamente aconteceu na madrugada do sexto dia do sexto mês do penúltimo ano da 2ª. Guerra Mundial, quando as forças aliadas invadiram a Europa pela Normandia e apressaram o fim do Reich nazista.

Há toda uma mitologia em torno da invasão sobre a qual não me canso de ler, ouvir em arquivos radiofônicos da internet e ver em imagens. Foi a Operação Overlord que fez das quatro primeiras e ominosas notas da Quinta Sinfonia de Beethoven (sol-sol-sol-fá) as mais famosas do repertório clássico e celebrizou no mundo inteiro a poesia de Paul Verlaine – noves fora as fotos tiradas pelo húngaro Robert Capa durante o desembarque em Omaha Beach, parcialmente danificadas por uma suposta barbeiragem dos laboratoristas da revista Life.

O Mais Longo dos Dias, épico multiestrelar produzido pela Fox em 1962, ajudou a popularizar ainda mais o tchan-tchan-tchan-tchan da  Quinta e a primeira estrofe da Chanson de l’Automne. Gerações anteriores à minha, brasileiros inclusive, sabiam-na de cor. Carlos Heitor Cony era um deles. Nunca descobri quem teve a ideia de fazer do poema de Verlaine, publicado em 1866, a senha da maior e mais secreta operação militar de todos os tempos. Por que uma canção outonal se a invasão da Normandia ocorreria, como ocorreu, na primavera? Por que não “as neves de antanho” de François Villon, por exemplo? Minha primeira e única suspeita: em 1944 comemorava-se o centenário de Verlaine.

Cacá Diegues: O que vem por aí

O Globo

Reagimos mal a novidades imprevistas. Se o futuro não se dá como o concebíamos, preferimos negá-lo

Foi um amigo, o jornalista Zevi Ghivelder, quem me lembrou do aniversário próximo da estreia de “The jazz singer”, o primeiro filme sonoro na história do cinema, lançado em Nova York, 95 anos atrás. Um musical, como não podia deixar de ser num país que sempre cultivou a música popular como rica manifestação de seu povo, uma marca plural e maior de sua cultura. De cineastas e críticos a jornalistas especializados e espectadores regulares, quase todos os que estiveram presentes à noite de gala condenaram a experiência. Diziam que aquilo não era cinema.

Na história do cinema, o som foi o primeiro elemento que fez do filme que o usava um estranho no ninho, como depois a cor e a tela larga, cinemascope e 3D, televisão e DVD, os avanços tecnológicos que tornavam o filme objeto de transformação permanente, um espetáculo que nunca mais seria o mesmo. No entanto o fundamental em cada título continuava sendo os arranjos dramatúrgicos de diferentes visões de mundo ou ideologias, mesmo que a cada novidade tecnológica um tipo de público afirmasse sempre não ser mais cinema a invenção que mudava a aparência do filme. E nenhum fã se dava conta de que Larry Parks, que dublara Al Jolson em “Sonhos dourados” (The Jolson Story), fora banido de Hollywood vítima de perseguição macartista.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Constituição maltratada

O Estado de S. Paulo

Ao emendar a Carta e mexer no sistema tributário por imperativos eleitorais, sem pensar no futuro, Brasil cria insegurança e desestimula investimentos

 Em um país onde 33,1 milhões de pessoas passam fome diariamente, a obsessão de Jair Bolsonaro com os combustíveis já seria suficientemente ofensiva. Para além do fato de que a proposta de reduzir impostos para conter preços é altamente regressiva, a forma que o governo escolheu para colocar seu plano populista em prática representa um ataque à Constituição e ajuda a explicar as razões pelas quais o País não cresce há tantos anos. Mirando nos combustíveis, um governo que foi eleito sob o discurso “mais Brasil, menos Brasília” está disposto a ferir de morte o pacto federativo, arranjo institucional que garantiu aos Estados autonomia para definir um tributo que representa sua principal fonte de arrecadação, e, em reação previsível, parlamentares apresentaram uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para garantir compensação aos Estados.

A Constituição não é obra pronta e certamente está sujeita a atualizações. Tanto é verdade que deputados e senadores promulgaram 122 emendas constitucionais entre 1988 e 2022. Foram 22 nos três anos e meio de Jair Bolsonaro – um fenômeno, considerando o rito de tramitação e o quórum qualificado que as PECs exigem. Mas esse mesmo governo que conta com maioria no Congresso foi incapaz de aprovar as necessárias reformas para destravar a economia. 

Propostas que visam a uma ampla reforma tributária na Câmara (PEC 45/2019) e no Senado (PEC 110/2019) repousam nos escaninhos do Congresso. A construção de texto que dê fim ao manicômio tributário que vigora no País passa por um acordo entre União, Estados e municípios, mas pontes importantes que poderiam ser utilizadas na busca de um imposto único sobre bens e serviços foram queimadas pelo governo federal ao impor o teto do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na marra. A reforma administrativa (PEC 32/2020) permanece intocada desde que saiu de uma comissão especial em setembro do ano passado, sem qualquer perspectiva de ir à votação no plenário da Câmara. Por outro lado, articulações entre Senado e Judiciário apontam apoio ao retorno do anacrônico quinquênio a ser cristalizado na maltratada Constituição, e voltou a circular no Legislativo uma proposta que tira o poder das agências reguladoras. A quem e para que tem servido essa maioria parlamentar?