quinta-feira, 23 de junho de 2022

Luiz Werneck Vianna*: Como uma onda grande no mar

Se os que são capazes de avaliar o tamanho das concentrações populares estão certos foram cerca de 4 milhões de pessoas que estiveram presentes no último domingo na chamada parada gay que teve como palco a avenida Paulista, já há algum tempo lugar preferencial de protestos populares. Por tudo que lá foi celebrado, cantado e dito a plenos pulmões em favor das liberdades individuais e de culto religioso a contrapelo dos valores obscurantistas que o governo Bolsonaro se empenha em difundir tivemos ali uma manifestação plebiscitária de repúdio a tudo isso que aí está.

Os sinais de que uma mudança em grande escala está por vir também estiveram e ainda estão presentes na comoção provocada pelo assassinato dos heróis amazônidas Bruno Pereira e Dom Philipps que trouxe à luz o mundo de trevas a que estão condenadas as populações ribeirinhas e os indígenas das regiões da Amazônia profunda. A atenção que a opinião pública dos países do Ocidente democrático dedicou a esse trágico episódio, obviamente relacionado à questão ambiental, evidencia a importância de se isolar internacionalmente o infame governo do nosso país e de favorecer a ação de suas oposições democráticas, especialmente por parte do governo Biden, de forte significação em nosso continente.

Os ventos benfazejos que começam a soprar em Nuestra América do México a Argentina, passando pelo Chile, Peru, e agora com a boa surpresa da Colômbia, não terão como evitar, como o plebiscito da avenida Paulista sinaliza, que bafejem por nossas terras. De toda parte, o que se previa como uma irresistível maré neoliberal partem movimentos de contestação a ela, como na França em que a esquerda teve ampla votação nas eleições majoritárias e na legislativa, insinuando em futuro próximo resultados ainda mais incisivos. Outro indicador de mudança de rumos se faz conhecer no Reino Unido com a primeira greve nacional em 30 anos no setor ferroviário. No mesmo sentido, faz-se notar a União Europeia como nova presença afirmativa no cenário internacional em nome dos valores civilizatórios que representa.

José Serra*: A democracia representativa não será demolida

O Estado de S. Paulo

Polarização se repetirá se revisão do regime presidencial e do voto proporcional não obtiver apoio popular e empenho do Legislativo

Desde 2013, vem se acumulando a frustração entre os brasileiros com a resposta das elites dirigentes a suas demandas vitais – trabalho, meios de subsistência, moradia, saúde, transporte e, mais do que tudo, o direito a ser tratado com dignidade pelas autoridades públicas. As mesmas queixas têm-se repetido ao longo dos anos seguintes, sublinhando a relativa cegueira das elites a respeito da insatisfação popular.

Em todo o mundo, a incúria do poder público redundou numa enraizada desconfiança dos cidadãos com relação a seus representantes. A falta de confiança gerou perdas de legitimidade do sistema representativo, no pressuposto de que a democracia dá, aos representantes eleitos por voto popular, o direito de legislar em seu nome.

Em diferentes camadas da sociedade, sobretudo naquelas mais vulneráveis à instabilidade econômica e aos eventos adversos – como as catástrofes naturais, as guerras e as pandemias –, os cidadãos passaram a duvidar da legitimidade do mandato popular por eles concedido. As elites dirigentes vêm sendo acusadas de não respeitar os interesses e valores dos seus eleitores, não cumprir as leis que eles mesmos votam, fraudar a legalidade em benefício próprio e não retribuir aos cidadãos o mínimo do que lhes é devido.

Merval Pereira: Todo chamuscado

O Globo

A falação sem controle do presidente Bolsonaro sobre qualquer assunto acaba levando-o a situações delicadas como esta, envolvendo a prisão do ex-ministro da Educação, o pastor Milton Ribeiro, e de vários pastores acusados de golpes no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Ao ser denunciado o escândalo de distribuição de verbas a prefeituras por meio do tráfico de influência dos pastores Gilmar Santos e Arilton Moura, acusados de cobrar propinas para liberação de verbas no MEC, Bolsonaro reagiu com indignação, chegando a afirmar:

—Coloco minha cara no fogo pelo Milton.

Ontem, a internet estava cheia de memes do presidente todo chamuscado pelo escândalo, o que é péssima notícia para Bolsonaro neste início de campanha eleitoral — ele que empenhou a força de seu governo no Congresso para impedir a realização de uma CPI para investigação do Ministério da Educação.

No dia 18 de março deste ano, o jornal O Estado de S. Paulo revelou que os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura, da Assembleia de Deus Ministério Cristo para Todos, tinham influência direta sobre as verbas do MEC, que tem um orçamento de R$ 159 bilhões, um dos maiores da Esplanada dos Ministérios. Com o desenrolar das investigações pela imprensa, ficou demonstrado que os dois pastores atuavam havia dois anos como intermediários de prefeitos que queriam liberar verbas do FNDE.

Malu Gaspar: Um presidente em chamas

O Globo

Prisão de Milton encontra Bolsonaro isolado e sem rumo

Não faz nem três meses que um indignado Jair Bolsonaro chamou de “covardia” a pressão para que seu então ministro da Educação deixasse o cargo. "O Milton, coisa rara de eu falar aqui, eu boto a minha cara no fogo pelo Milton, a minha cara toda no fogo pelo Milton", disse o presidente da República, numa live.

Na manhã de ontem, com a prisão de Milton Ribeiro e dos pastores que intermediavam a liberação de verbas no MEC, o governo entrou em autocombustão. “Desastre” era a palavra mais usada por diferentes aliados do presidente para definir a situação, entre transtornados com as prisões e apavorados com os estragos potenciais sobre a campanha para a reeleição.

Ribeiro saiu do governo dizendo que só acolhera os pastores no ministério por ordem de Bolsonaro. Logo depois das prisões, porém, o presidente já disse a uma rádio que “ele responda pelos atos dele”, acrescentando que, “se tem algum problema, a PF está agindo, está investigando”.

A estratégia de se descolar de Ribeiro pode até fazer algum efeito imediato, mas ninguém que conhece bem as engrenagens de Brasília aposta que durará muito. Basta revisitar a história de como o ministro chegou ao governo.

Míriam Leitão: A Educação entre a omissão e desvios

O Globo

Há o que o ex-ministro Milton Ribeiro fez, e há o que ele não fez na Educação. É difícil saber o que é mais condenável. A Polícia Federal investiga as suspeitas de corrupção no órgão, com a participação de pastores que liberavam verba, pediam propina e mandavam na agenda do próprio ministro. Enquanto o MEC era dominado por pessoas e agenda estranhas aos interesses públicos, o governo federal deixava de coordenar a educação brasileira numa crise de grandes proporções.

A pandemia chegou na educação como uma bomba de destruição em massa. Por causa dela, milhões de crianças ficaram sem estudar, meninos e meninas entrando na fase de alfabetização tiveram seus estudos interrompidos. Os dados mostram que houve uma perda forte de aprendizagem. O Brasil regrediu numa área em que tem um atraso crônico. O Ministério da Educação nunca foi tão necessário.

William Waack: Vitimização não servirá a Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro entrou em modo desespero e Lula não indica se entendeu o que vem em 2023

Neste momento político da corrida eleitoral os horizontes dos dois líderes se distanciaram bastante. O de Lula já está em 2023. O de Bolsonaro se reduziu aos próximos 101 dias (2 de outubro é a data do primeiro turno).

O presidente se envolveu numa custosa operação política de curtíssimo prazo para o tamanho do objetivo, que é baixar na marra o preço dos combustíveis. Até aqui não conseguiu, nem colocou de pé a ajuda para quem não tem como pagar gás e diesel. Sendo a mesma coisa as políticas de governo e a eleitoral, nenhuma está funcionando.

Tampouco estão ajudando “imponderáveis” para a campanha dele, como a prisão do ex-ministro da Educação, por quem disse que poria a cara no fogo. Ao eleitorado cativo pouco importa, pois populistas como Bolsonaro não dependem de coerência entre palavras e ações. Em situações adversas desse tipo, tornam-se “traídos” – mas é uma “vitimização” que não acrescenta votos.

Adriana Fernandes: Bombardeio

O Estado de S. Paulo

Prisão de ex-ministro deixou Brasília em estado de ebulição em meio à ofensiva contra a Petrobras

O impacto da prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, acusado de favorecimento de pastores na distribuição de verbas, deu impulso extra para o governo e lideranças do Centrão abrirem de vez a caixa de Pandora e ampliarem os gastos no pacote de medidas de redução do impacto da alta dos combustíveis.

O mandado de prisão preventiva, que arrastou o presidente Bolsonaro para o escândalo de corrupção a poucos meses da eleição, deixou Brasília em estado de ebulição numa semana em que a ofensiva estava toda direcionada para colocar a Petrobras no córner.

A estratégia política de buscar a renúncia do presidente da estatal com a ameaça da CPI, aumento da tributação e mudanças na política de preços da companhia tinha como principal objetivo provocar um estado tal de confusão para garantir o subsídio aos caminhoneiros e motoristas de táxi.

Vinicius Torres Freire: Pastores no país das rachadinhas

Folha de S. Paulo

Rolo com dinheiro picado é agora o modus operandi mais comum da política

Pastores entraram na dança do país das rachadinhas. São acusados de cobrar pedágio para fazer com que uma parte dinheiro do Orçamento federal chegue a um município, em geral uma cidadezinha. Pode ser dinheiro de emenda parlamentar ou de um arranjo qualquer entre o governo federal e a cidade.

O governo está quebrado e as empresas públicas haviam sido mais ou menos protegidas de roubança por causa da Lei das Estatais, essa que Jair Bolsonaro, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara e o poderoso centrão querem derrubar. Sobrou a rachadinha, favorecida por um sistema de irracionalidade administrativa que banca os caciques chinelões da política brasileira.

Mandar dinheiro para as cidades governadas por amigos e parentes é um meio de usar o dinheiro público para manter o curral eleitoral e se reeleger. Há quem roube, picadinho, mas o caso em geral é uso picotado de recursos escassos em pequenas obras ou despesas sem qualquer avaliação de prioridade, eficiência ou necessidade. O importante é ter "força em Brasília", um deputado poderoso, um lobista, um pastor.

Bruno Boghossian: Loteamento religioso

Folha de S. Paulo

Se corrupção ficar comprovada, será difícil afastar o presidente da cena do crime

Jair Bolsonaro não instalou por acaso um pastor no comando do Ministério da Educação em seu segundo ano de governo. O presidente ofereceu a grupos religiosos um palanque ideológico e influência sobre operações milionárias com dinheiro público. Em troca, poderia reforçar suas conexões com o segmento evangélico e aproveitar os benefícios políticos dessa relação.

A aliança reproduziu a lógica de loteamento que Bolsonaro sempre tentou disfarçar. As suspeitas de corrupção sobre o ex-ministro Milton Ribeiro e os pastores que gerenciavam um balcão de negócios no MEC mostram que um dos principais grupos de sustentação política do presidente estava muito bem servido no acesso aos cofres do governo.

Ruy Castro: Bochechas em fogo

Folha de S. Paulo

A qual de suas caras Bolsonaro se referia quando defendeu seu ministro?

E agora, Bolsonaro? Como está a temperatura nas bochechas? Seu ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, aquele por quem Vossa Excelência "botaria a cara no fogo", foi preso pela Polícia Federal na manhã desta quarta (22), na sequência de uma investigação por crimes de corrupção passiva, prevaricação, advocacia administrativa e tráfico de influência —por sinal, um menu de acusações que caberiam perfeitamente contra Vossa Excia. Ao lado de Ribeiro no camburão, seguiu o "pastor" Gilmar Santos, aquele a cujos pleitos Vossa Excia. pediu ao ministro especial atenção —leia-se facilitando-lhe as rapinas, de Gilmar e comparsas, em ouro ou espécie, aos cofres públicos. Enquanto escrevo, o tintureiro está em busca desses comparsas.

Conrado Hübner Mendes*: Corrupção bolsonarista, capítulo 3

Folha de S. Paulo

O sigilo, a desinformação e o apagão de dados neutralizam controle e facilitam crime

Todo governo corrupto pede ignorância, produz ignorância e depende da ignorância. Não há maior aliado da corrupção do que a ignorância. Não só a cultural e voluntária, efeito de falta de oportunidade educacional e do desinteresse pelo mundo e pelo outro. Mas também da institucionalmente forjada.

A produção institucional da ignorância é política "pública" no governo Bolsonaro. Não é qualquer desvio localizado num ou noutro ministério, de um ou outro agente. Ela se fez o mais transversal programa de governo em vigor. Bolsonaro precisa que desconheçamos o país tanto quanto possível para que a corrupção seja insondável e infalível.

A prática oficiosa combina três ações: fechar informação por meio de sigilo —o estado de sigilo; destruir ou deixar de construir informação— o apagão de dados; fabricar desinformação e catapultá-la por canais fora do escrutínio público para perturbar o juízo e os afetos. Três formas de supressão da esfera pública e manutenção da ignorância. Essa vasta "arcana imperii" bolsonarista pavimenta a corrupção.

Maria Hermínia Tavares*: Na Amazônia, a devastação como projeto

Folha de S. Paulo

Não faltam ideias para combatê-lo, mas os obstáculos são graúdos

O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips escancarou o enraizamento do crime na região amazônica. Maior responsável pela devastação ambiental, a delinquência impune é ameaça perene à sobrevivência das comunidades indígenas, além de ser causa primeira da degradação moral dos moradores que alicia.

A crise não é nova. O que transbordou dos limites conhecidos foi a perversa proeza deste governo amigo do ilícito e aliado dos grupos mais atrasados do agronegócio em incentivar o descumprimento da lei, ao se dedicar a destruir os instrumentos de defesa da floresta e de seus habitantes: da Funai ao Ibama; do monitoramento por satélite ao Código Florestal; da demarcação de terras indígenas ao Conselho da Amazônia Legal.

Maria Cristina Fernandes: Traição aos evangélicos

Valor Econômico

Para fiéis acostumados a tirar de suas economias para contribuir com igrejas, e não o inverso, a prisão é danosa à sua identidade religiosa e, potencialmente, eleitoral

O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles já havia sido alvo de uma operação de busca e apreensão da Polícia Federal, mas foi Milton Ribeiro quem forneceu ao governo Jair Bolsonaro a primeira prisão do primeiro escalão.

Pior do que o ex-titular do Ministério da Educação só mesmo se a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tivesse ido parar no xadrez. Foram os dois ministros mais estreitamente vinculados à base religiosa do bolsonarismo.

Se o negacionismo da pandemia e a crise econômica já haviam desgastado a base evangélica do governo, a prisão do ex-ministro tem potencial para anular a resiliente vantagem de Bolsonaro sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva neste eleitorado.

Estima-se que Bolsonaro tenha tido o dobro da votação entre os evangélicos que seu adversário, Fernando Haddad, no 2º turno. Foram esses 11 milhões de votos que selaram sua eleição.

Esta diferença estreitou-se. No Datafolha do final de maio, o presidente pontuava, no 2º turno, 47% entre os evangélicos e Lula, 45%. O Datafolha desta quinta mostrará se a prisão foi suficiente para a ultrapassagem.

Cristiano Romero: Guedes é um pote até aqui de mágoa

Valor Econômico

“Chamar o Benzema pra jogar no CSA não dá. Vou morrer em campo. Preciso de uma equipe melhor”, afirmou o ministro da Economia em uma roda de conversa

O jornalista Thomas Traumann lançou, em 2018, “O Pior Emprego do Mundo” (Ed. Planeta), compêndio de 344 páginas sobre as venturas e aventuras de 14 cidadãos que ocuparam o cargo de ministro da Fazenda no Brasil. Trata-se de livro obrigatório para quem tem a pretensão de saber como funciona o centro do poder, especialmente, num país desigual e com histórico de instabilidade econômica e política - se, nos Estados Unidos, a pior das crises é incapaz de abalar a República, por aqui, como nos ensina a História, quando a coisa aperta, “dane-se” a democracia!

Se quiser manter o livro na categoria dos clássicos, Traumann terá que escrever novo capítulo, ainda sem epílogo: a gestão de Paulo Guedes, iniciada em 1º de janeiro de 2019. Guedes é, sem dúvida, o mais injustiçado ocupante da cadeira onde se sentaram vultos como Fernando Henrique Cardoso, Mário Henrique Simonsen, Delfim Netto, Pedro Malan, Santiago Dantas, Luiz Carlos Bresser Pereira, Eugênio Gudin, Henrique Meirelles, Mailson da Nóbrega, Roberto Campos, Lucas Lopes, Oswaldo Aranha, Horácio Lafer, Ruy Barbosa, Octávio Bulhões...

Quando Antonio Palocci Filho comandou a Fazenda, entre janeiro de 2003 e março de 2006, a expressão “fogo amigo” tomou o noticiário porque, mesmo bem-sucedida, sua gestão era cotidianamente atacada por gente de seu próprio partido, o PT. No caso de Guedes, “fogo amigo” é eufemismo: sua vida, desde o início, é mar revoltoso e turbulência; calmaria e céu de brigadeiro são estados de exceção.

Memória | Graziela Melo*: Última noite no domicílio

Boatos se transformaram, de repente em realidade cruel. Governador preso. Sindicatos invadidos. Líderes populares eram levados aos quartéis. Encontrei-me com Gilvan e fomos para casa juntos. Foi a ultima noite que dormimos em nossa casa e junto com nosso então único filho. Arraes fora deposto e preso. Nesse dia, fatídico para nossas vidas e especialmente para a história do nosso país, 1º de abril de 1964, completei 26 anos. 

Na casa onde depois me escondi com Gilvan, minha mãe mandou-me um bolo de aniversário. Começou aí nossa peregrinação por algumas casas. Era prudente. Muita gente fazia o mesmo. Diante da dura realidade, minha mãe e minha sogra tomaram a iniciativa que cabia então: promover a liquidação do que fora "nosso lar". Gilvan Filho, com apenas 18 meses, junto com seus pertences, foi para a casa de minha mãe. O resto dos móveis para a casa de minha sogra. 

Nossos livros, o único patrimônio de valor que realmente possuíamos, uma biblioteca mediana com inúmeros volumes de filosofia, história, literatura, obra completa de Graciliano, Machado, Balzac, Jorge Amado, Aragon, entre tantos. Tudo, devidamente encadernado, foi parar num alagado. Pagaram um carroceiro, que, em três viagens de nossa casa até à beira do Rio conseguiu dar fim àquela preciosa papelada que fizera nossa cabeça de jovens progressistas. A única coleção salva, por acaso, porque se encontrava com meu pai, foi Machado, que um amigo, misteriosamente, nos devolveu quando retornamos do exílio.

Quando fomos presos, no dia 2 de maio, um mês depois do golpe, muitos destes volumes, enlameados e inaproveitáveis, já se encontravam recolhidos à delegacia política. Alguém viu o trabalho do carroceiro e informou à polícia. Olhei de soslaio para nossa desfigurada biblioteca enlameada dentro da sala do delegado e não consegui conter o choro. Metido a literato, um delegado que chegou à noite, manuseou um volume enegrecido de Jean Christophe, de Romain Rolland e falou pra mim com ar compungido: que pena!

Eram muitos os policiais que invadiram nossa "casa-esconderijo". Um chalé amplo, rodeado de terraços pertencente a uma tia de Gilvan, que, com muita bonomia e correndo risco, se dignou a nos guardar lá por alguns dias.

Estávamos na sala vendo e ouvindo Cid Sampaio falar na televisão quando o gato que até então estivera quieto, pulou de um extremo a outro da sala. Então, pela grade da porta da frente, se assomou um cano de metralhadora. Vários outros apareceram nas demais portas e janelas. Parecia até que iam prender a quadrilha de Lampião.

*Crônicas, contos e poemas, p. 88. Abaré Editorial / Fundação Astrojildo Pereira, Brasília, 2008.

Memória | Graziela Melo*: A prisão

Memória | Graziela Melo*: Enfim, Santiago!!!

Memórias / Graziela Melo*: A fuga para Santiago

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Sob Bolsonaro, MEC se tornou caso de polícia

O Globo

No cercadinho do Alvorada, nas transmissões ao vivo, em postagens nas redes sociais ou entrevistas, o presidente Jair Bolsonaro sempre fez questão de martelar que, em seu governo, não há corrupção. Trata-se de estratégia de marketing para se distinguir do adversário petista Luiz Inácio Lula da Silva, cujas gestões foram marcadas por escândalos no aumentativo (mensalão e petrolão). Se a propaganda de Bolsonaro já era absurda diante das denúncias que assombram sua administração, com a prisão do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro e dos pastores Arilton Moura e Gilmar Santos, tornou-se insustentável. Bolsonaro agora tem um escândalo de corrupção para chamar de seu.

Ribeiro foi detido em meio à investigação das denúncias que culminaram com sua exoneração em março. Embora não ocupassem cargo, Arilton e Gilmar, também presos, mandavam e desmandavam no ministério. Intermediavam, junto a prefeituras, as verbas bilionárias do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE), que financiam o ensino básico, construção e reformas de escolas, móveis e veículos para transporte escolar.

As denúncias sucessivas de desvios do FNDE já formariam um escândalo sem tamanho. Mas era pior. Para liberar os recursos, função que não lhes cabia, os pastores cobravam propina até em barras de ouro. E era ainda pior. Numa gravação, o então ministro Ribeiro afirmou a prefeitos que a pasta dava prioridade àqueles cujos pleitos tivessem sido negociados pelos dois. Para piorar ainda mais, concluiu: “Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim”. Os dois pastores estiveram 35 vezes no Palácio do Planalto desde o início do governo.

Ribeiro jamais deu explicações convincentes. Quando o caso veio à tona, alegou que já denunciara a dupla à Controladoria-Geral da União (CGU), mas os lobistas continuaram com trânsito livre, e não só no MEC. As explicações de Bolsonaro são ainda mais constrangedoras. Ele resistiu quanto pôde a exonerar Ribeiro, embora sua gestão desastrosa fosse marcada por inépcia e escândalos. Diante das denúncias, fez questão de defendê-lo numa transmissão: “Eu boto minha cara no fogo pelo Milton. Minha cara toda no fogo pelo Milton. Estão fazendo uma covardia com ele”. Depois da prisão, Bolsonaro mudou de tom: “Ele que responda pelos atos dele”. Num esforço para conter os danos eleitorais, afirmou que a prisão é sinal de que não interfere na Polícia Federal. Governos petistas usavam a mesma ladainha.

Poesia | Joaquim Cardozo: As Alvarengas

Tous les chemins vont vers la ville"
(Verhaeren)


As Alvarengas!
Ei-las que vão e vêm; outras paradas,
Imóveis. O ar silêncio. Azul céu, suavemente.
Na tarde sombra o velho cais do Apolo.
O sol das cinco acende um farol no zimbório
Da Assembléia.
As alvarengas!
Madalena. Deus te guie. Flor de zongue.
Negros curvando os dorsos nus
Impelem-nas ligeiras.
Vêm de longe, dos campos saqueados
Onde é tenaz a luta entre o Homem e a Terra,
Trazendo, nos bojos negros,
Para a cidade,
A ignota riqueza que o solo vencido abandona,
O latente rumor das florestas despedaçadas.
A cidade voragem
É o Moloch, é o abismo, é a caldeira...
Além, pelo ar distante e sobre as casas,
As chaminés fumegam e o vento alonga
O passo de parafuso
Das hélices de fumo;
E lentas
Vão seguindo, negras, jogando, cansadas;
E seguindo-as também em curvas n'água propagadas,
A dor da Terra, o clamor das raízes.