terça-feira, 21 de junho de 2022

Memória | Graziela Melo*: Enfim, Santiago!!!

A travessia da Cordilheira foi uma festa. A brancura da neve e a liberdade eram um espetáculo novo para nós turistas compulsórios. Jamais em minha vida havia visto um pé de maçã ou pêra e há muito não me dava ao luxo de conversar tão espontaneamente com as pessoas, como sempre gostei. Deslumbravam-me os claros daquela montanha tão branca. Os “claros” de que falo eram recantos, espécies de oásis com casinhas de madeira próprias para o frio, animais ao lado presos em cercado, uma ou duas árvores. Passamos o Aconcágua. Aquele mesmo das aulas de geografia, quase chegando no céu. Pequenos lagos se formavam com as águas da neve derretida pelos fracos raios do sol do outono, onde os espaços da montanha permitiam. Eram como espelhos azuis na minha fantasia cor-de-rosa.

Descemos em Los Andes, primeira cidade do Chile para quem escolhe o caminho da cordilheira e pegamos um ônibus para Santiago. Uma hora e meia de percurso, mais ou menos, feito à noite. E era noite avançada quando descemos na velha estação daquela cidade que tanto amaria depois. As ruas estavam desertas e cheias de espaços sombrios, mas eu já não sentia medo.

Silvio Rodriguez, o talentoso compositor cubano, atingiu em cheio o coração de todos nós os ex-exilados da grande e generosa pátria de Salvador Allende, com a letra de sua canção composta após o Golpe Militar:

“Yo pisaré las calles nuevamente

De lo que fue Santiago ensangrentada

Y en una hermosa plaza liberada

Me detendré a llorar por los ausentes”(...)

Uma mulher morena de estatura média, cujo nome não consigo lembrar, membro do Comitê Central do Partido Comunista Chileno, foi a pessoa que, a pedido de Armênio Guedes, marido de Zuleika Alambert, conseguiu um médico (dr. Pozo) e um hospital para meu filho que necessitava dramaticamente de ajuda naqueles primeiros dias de nosso exílio. O hospital era o Calvo Makeña, onde trabalhava o médico no setor de oncologia.

Meu filho chegara a Santiago no meio de uma crise que se iniciara na Argentina. Internado, apesar do tratamento, piorava a cada dia. Certa ocasião o médico nos avisou que necessitava sangue com urgência. Orientada por chilenos amigos, pus anuncio na rádio Corporación que é muito popular. “Niño brasileño, internado em el Hospital Calvo Mackeña, necessita sangre etc. etc...” Muitos brasileiros e chilenos atenderam ao apelo. Segundo as enfermeiras do setor, fez-se uma fila à porta do Hospital para doar sangue para “el niño brasileño”.

Outras medidas foram tomadas como a importação de medicamentos pela Lan Chile através da Secretaria de Relações Internacionais do Partido Comunista Chileno. Tudo inútil. Meu filho faleceu na madrugada de 23 de junho de l972, um mês e meio depois de chegarmos ao Chile, no momento exato em que a colônia brasileira em Santiago celebrava a festa junina. Muitos saíram direto da festa para o velório. Pela manhã já havia tanta gente que não se podia mais entrar na capela mortuária. Longe de nosso país e de nossos familiares o carinho daquelas pessoas que quiseram estar conosco naquele momento, fez com que nos mantivéssemos de pé, inteiros, apesar do sofrimento inevitável. Lá estava a figura de Ulrik Hoffman que foi quem deu a cobertura financeira para o funeral. Um piauiense, que, abraçado a sua mulher, uma nissei paulista, chorava muito no instante em que o corpo de meu filho baixava à sepultura, é nosso amigo até hoje. É o professor da UFRRJ, Raimundo Santos e sua mulher Akiko Santos.

Deixamos o Cemitério General de Santiago caminhando lentamente sobre as últimas folhinhas que o outono derrubara das árvores. Era o primeiro dia do frio inverso chileno.

Janeiro, 1984

*Crônicas, contos e poemas, p, 57 Abaré Editorial / Fundação Astrojildo Pereira (FAP) – Brasília, 2008

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

A morte é sempre muito triste,ainda mais de um filho,misericórdia!