O Estado de S. Paulo
O século XXI parece demandar uma recepção
mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a
fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo
inconsequente.
No campo das ciências sociais, Antonio
Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um
autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus
escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a
partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão,
para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a
cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos
aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti,
publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere,
de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1
Atualmente, os Cadernos do Cárcere,
somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus
interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”,
cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na
Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e
publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione
Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926);
2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3.
Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado
à atividade político-partidária).2
Com a difusão dos seus escritos,
inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura
nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do
capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado
em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira
ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas
fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse
ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a
figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo”
— quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes
citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação
dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento,
o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a
partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou
sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4
Olhando essa trajetória de recepção e
assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que
passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e
falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se
confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações
daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.