sábado, 9 de novembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Volta de Trump traz retrocesso na agenda ambiental

O Globo

Mas isso não deve deter Brasil na busca por protagonismo no combate às mudanças climáticas

A volta de Donald Trump à Casa Branca representa retrocesso inequívoco no combate às mudanças climáticas. Em seu primeiro governo, ele cancelou mais de cem normas ambientais e retirou do Acordo de Paris os Estados Unidos, maior emissor per capita de gases de efeito estufa. Joe Biden aderiu novamente ao pacto global e promulgou a lei mais ambiciosa para reduzir emissões. Na campanha eleitoral, Trump prometeu “eliminar” essa legislação, destinada a promover a transição de combustíveis fósseis a veículos elétricos e energia limpa. Também declarou que cancelará regras para reduzir emissões de usinas geradoras, proteger espécies ameaçadas e limitar a poluição do ar e da água. Para não falar na perspectiva concreta de nova saída do Acordo de Paris.

O momento não poderia ser pior. O ano de 2024 foi didático. Exacerbado pelas mudanças climáticas, o fenômeno conhecido como El Niño deixou um rastro de destruição, com enchentes sem paralelo no Rio Grande do Sul, seca e incêndios florestais por todo o país. No mundo, tragédias climáticas se tornam mais frequentes e mais intensas — a última catástrofe foram as chuvas que devastaram Valência, na Espanha. A despeito de Trump, o aquecimento global não sairá do rol das maiores preocupações e representa perigo concreto para o Brasil. Nenhum dos contrassensos que vier de Washington deve ser motivo de distração para o governo brasileiro nessa pauta.

Como podem votar em Trump? – Pablo Ortellado

O Globo

Se deixarmos de lado as explicações simplistas de manipulação e fascismo, resta enfrentar a desconexão profunda entre as elites e o povo

Nos meios esclarecidos, nos Estados Unidos e fora deles, as elites educadas se perguntam como foi possível que, depois de tudo, Donald Trump tenha sido eleito novamente. Como foi possível que, depois da invasão do Capitólio, das condenações judiciais e das declarações racistas, o país o tenha escolhido novamente? E não foi uma escolha hesitante. Se não houver surpresa, ele levará todos os estados-pêndulo. Venceu não apenas no Colégio Eleitoral, como caminha para ganhar também no voto popular. Ganhou o voto dos homens latinos. Seu partido conquistou a maioria das cadeiras no Senado e está prestes a levar a maioria também na Câmara. Foi uma vitória maiúscula.

Todo mundo tem lugar de fala – Eduardo Affonso

O Globo

Homens têm um longo aprendizado pela frente na arte de esperar alguém concluir um raciocínio

É possível que, numa discussão, pessoas com posições (aparentemente) antagônicas tenham (igualmente) sua cota de razão? É — e seria muito proveitoso se, em vez de se encastelarem em suas respectivas verdades, cada um se permitisse uma escuta mais atenta da verdade alheia. A isso se chama — se não me falha a memória — diálogo.

Passamos a infância sendo tratados como crianças (talvez porque fôssemos mesmo crianças...), incapazes de entender os argumentos dos adultos. Tínhamos de nos contentar com “É porque sim” ou “Obedece que eu sou sua mãe”. Chegar à idade adulta e continuar ouvindo isso, agora sob novo formato — “Eu tenho lugar de fala; você não tem” — é desanimador.

O conceito, em tese, é inatacável: cada pessoa detém, a partir de sua vivência, um ponto de vista particular. Não é preciso que alguém fale por ela: ela é capaz de se expressar de forma única e (com o perdão da palavra) privilegiada.

Nos EUA a inflação caiu, mas não os preços – Carlos Alberto Sardenberg

O Globo

Se Trump cumprir sua agenda econômica, eles subirão em vez de cair, por causa do aumento das tarifas de importação

Donald Trump fez da economia tema central da campanha. Para ele, os Estados Unidos passam por uma crise sem precedentes que destrói a vida das famílias. Prometeu consertar isso e garantir uma onda de prosperidade. No grande comício no Madison Square Garden, em Nova York, assegurou:

— Nós vamos derrotar a inflação rapidamente.

De outro lado da cena, Jerome Powell, presidente do Federal Reserve, o banco central, pensa exatamente o contrário. Sua descrição da realidade americana hoje:

— O mercado de trabalho continua sólido, a economia está sólida, e a inflação diminuiu substancialmente.

Os números dão razão a Powell.

PIB americano cresce ao ritmo de 2,8% anuais, de acordo com os últimos dados, de outubro. A inflação, em 12 meses, caiu para 2,3%, baixa e quase na meta do Federal Reserve. O desemprego é de 4,1%, nível historicamente muito baixo. Houve algum ganho de renda. Trata-se de um caso de sucesso mundial: derrubou-se a inflação sem jogar o país na recessão.

A última última reunião - Carlos Andreazza

O Estado de S. Paulo

Terá havido nesta sexta-feira a última última reunião para ultimar o pacote de corte de gastos do governo Lula. Não sei se houve. Ou melhor: reunião houve. Não sei se conclusiva. Improvavelmente conclusiva. Talvez tenha havido até mais de uma última reunião, da qual – a única certeza – algum ministro saiu declarando que na pasta dele ninguém mexeria.

Processo clássico de desidratação do pacotão misterioso, conforme estimulado pelo presidente. Mantido blindado – sangrando – um conjunto de medidas contra o qual, ao deixar o Planalto, seus colaboradores imediatamente disparam.

Marinho, Lupi, Dias: cada um a seu modo se antecipando para expor Haddad e promover Lula. Que – destacam – continuaria sendo Lula. E, sendo Lula, jamais desvincularia as despesas previdenciárias da forma de aumento do salário mínimo. Não estarão errados.

Platão e Trump - Hélio Schwartsman

Folha de S. Paulo

Segredo da democracia não é selecionar líderes bons, mas assegurar que os que vão embora saiam de forma pacífica

Donald Trump é o vencedor inconteste de eleições livres e limpas. Daí não se segue que os americanos tenham feito uma escolha sábia. Acho até que daria para construir um argumento de que ela é objetivamente errada, a exemplo do brexit, equívoco cujo tamanho pode ser calculado numericamente. Mas não precisamos ir tão longe.

O que me interessa investigar é se más escolhas eleitorais funcionam como argumento contra a democracia. Platão achava que sim. Para ele, a democracia padece de tantas falhas estruturais que acaba levando ao poder demagogos, ditadores potenciais e outras lideranças às quais faltam competência e qualidades morais.

Os EUA não são espelho – Dora Kramer

Folha de S. Paulo

Carece de provas a ideia de que a vitória de Trump se reflita aqui, na eleição de 2026

Bolsonaristas têm todo o direito de achar que a vitória de Donald Trump significa que está aberto o caminho para a volta de Jair Bolsonaro (PL) à Presidência em 2026. Assim como é compreensível que lulistas abracem a ideia, vislumbrando a possibilidade de disputar o poder nos moldes de 2022.

Quem enxerga o panorama distante do entusiasmo militante, no entanto, tem o dever de duvidar, e muito, de que estejamos fadados a viver um efeito Orloff às avessas. Os Estados Unidos não são o Brasil amanhã.

América para americanos escolhidos – Alvaro Costa e Silva

Folha de S. Paulo

Republicano gabaritou a prova de como se tornar um ditador fingindo respeitar a normalidade democrática

Trump gabaritou a prova de como se tornar um ditador fingindo respeitar a normalidade democrática. Apesar de processos e condenações na Justiça, o republicano bateu Kamala Harris não só no Colégio Eleitoral como no voto popular, assegurou o comando do Senado e da Câmara e poderá ampliar a influência conservadora na Suprema Corte (que já havia interferido na eleição ao conceder imunidade a ex-presidentes).

Com a surra nas urnas, Trump não precisou aprofundar as teorias de conspiração sobre fraudes usadas durante a campanha nem organizar mais uma invasão ao Capitólio, ato sem punição com que tentou reverter a derrota para Joe Biden, em 2020. Depois da votação que não deixou pedra sobre pedra, o sistema, como num passe de mágica, voltou a ser limpo e perfeito.

Trump, história revista – Demétrio Magnoli

Folha de S. Paulo

Presidente eleito ergueu um partido nacional-populista que oferece uma interpretação para as inseguranças econômicas

No 6 de janeiro de 2021, o vice de Trump, Mike Pence, cumpriu seu dever e, contrariando o desejo golpista do presidente, certificou a vitória de Biden. Logo mais, no próximo 6/1, Kamala Harris, a vice derrotada, certificará sem rodeios a vitória de Trump. Nesse ato, ganha nova luz o 6/1 de 2017, quando Biden, então vice de Obama, certificou a primeira vitória de Trump.

Até dias atrás, descreveu-se Trump como um desvio passageiro, um breve interlúdio na história dos EUA. Hoje, é mais apropriado interpretar a presidência de Biden como hiato efêmero na era inaugurada pela surpreendente derrota de Hillary Clinton. Há quatro anos, Biden triunfou graças à epidemia de Covid-19. Mas, desde 2016, rompeu-se a tradição política inaugurada por Franklin Roosevelt e atualizada no imediato pós-Guerra Fria.

Mal-estar da civilização e a democracia em xeque (I) - Marcus Pestana

O desfecho do século XX foi carregado de eventos significativos que transformaram as estruturas econômicas, políticas e sociais e deixaram rica herança para os tempos atuais. Veloz revolução científica e tecnológica, queda do Muro de Berlim e dissolução da URSS com o fim da Guerra Fria, globalização acelerada das relações financeiras e comerciais, transição da economia industrial para a sociedade de serviços, tomada de consciência sobre os problemas ambientais (RIO 92), criação da União Europeia, automação e desemprego tecnológico, sociedade em rede e vida digital crescente, a China sob a liderança pragmática de Deng Xiaoping transitando para o Socialismo de Mercado.

O legado foi um mundo em permanente ebulição e mais dinâmico. Os desafios são enormes: combater as mudanças climáticas, atenuar as desigualdades gritantes de renda e riqueza entre os povos, integrar ainda mais as cadeias produtivas globais em um jogo de ganhos múltiplos, consolidar a paz, lidar com os grandes movimentos migratórios, promover a tolerância racial e religiosa, patrocinar a equidade de gênero e o combate às discriminações, fortalecer a democracia dentro das novas circunstâncias.

Ao pé da lareira - Simon Schwartzman

O Estado de S. Paulo

O principal capital das universidades é o talento de seus professores e uma cultura de valorização do estudo, da pesquisa, da independência intelectual

Quando Gustavo Capanema quis construir a Universidade do Brasil, na década de 1930, ele abriu um concurso internacional para construir a Cidade Universitária. Ganhou Marcello Piacentini, o arquiteto de Mussolini. Os perdedores, o grupo de Lucio Costa associado ao francês Le Corbusier, protestaram, e acabaram recebendo como compensação o projeto do edifício do Ministério da Educação. Com a guerra, a universidade de Piacentini nunca passou da maquete. O edifício do Ministério da Educação ainda resiste, meio abandonado no caos urbano do centro do Rio de Janeiro. Aprendi isso quando pesquisava os arquivos de Capanema, e me fazia lembrar a frase de que uma universidade começa com uma conversa informal ao pé de uma lareira, que havia lido nos papéis que descreviam a fundação, cem anos antes, da Universidade da Califórnia em Berkeley, onde estive para meus estudos de doutorado.

Desdolarização é delírio dos Brics - Rodrigo Zeidan

Folha de S. Paulo

Trump pode destruir a economia americana; Rússia, China e Brasil, não

eleição de Trump vai acabar com o que sobrou da globalização que alimentou o crescimento econômico desde a década de 1990. China e Rússia vão continuar a buscar alternativas ao dólar. Mas não vão encontrar (euro e iene não lhe interessam). Desdolarização é fantasia. Infelizmente, em vez de acordarmos desse sonho, estamos entrando na parolagem de outros países.

Moeda dos Brics? Acordos de swaps entre bancos centrais chineses e brasileiros? Lula conclamando pela desdolarização? Perda de tempo.

Em um debate na TV chinesa, meu interlocutor bradou números estratosféricos. Segundo ele, 50% do comércio chinês, na ordem de trilhões de dólares, já estaria sendo feito em renminbi (yuan), a moeda chinesa. Minha réplica: o quanto disso é fluxo, não somente contabilidade cruzada, e o quanto de derivativos e ativos financeiros globais é fechado na moeda chinesa? Dava para ver a raiva nos seus olhos enquanto ele balbuciava uma resposta sem sentido.