sábado, 28 de janeiro de 2023

Marco Aurélio Nogueira* - O jogo já está sendo jogado

O Estado de S. Paulo.

A terra ainda treme. Além da tensão inerente ao pós-golpe, há sequelas do período Bolsonaro e a necessidade premente de que o governo mostre a que veio

Muita coisa ocorreu depois dos atos terroristas de 8 de janeiro. Prisões e revelações sobre os principais personagens da balbúrdia golpista, esforços governamentais para controlar a situação, indícios claros de que a articulação que levou àquela selvageria é muito maior do que se imaginava. Apuração de responsabilidades é um desdobramento lógico, indispensável para que se mude o rumo da situação. É impossível fazer de conta que nada aconteceu, que não há criminosos a serem julgados e presos.

A terra ainda treme. Além da tensão inerente ao pós-golpe, há as sequelas do período Bolsonaro e a necessidade premente de que o governo mostre a que veio. Desafios terão de ser enfrentados.

O primeiro diz respeito à questão militar, ao posicionamento institucional das Forças Armadas no novo quadro político. Enredam-se aí fios desencapados da história republicana, manipulações ideológicas que contaminaram parte dos militares nos últimos anos e expectativas de que o novo governo acerte os passos com Exército, Marinha e Aeronáutica. Discursos que acusem os militares de serem “intrinsecamente golpistas” criam arestas improdutivas. O caminho passará por negociações e ajustes difíceis, que não poderão desculpar erros e responsabilidades, nem ser reduzidos a “acertos de conta”. Para que o poder civil prevaleça, as Forças precisam funcionar como instituições de Estado, equacionar seus problemas internos, seus programas educacionais, sua “narrativa” para a caserna e para a sociedade. O governo deve ajudá-las a dar esse passo.

Oscar Vilhena Vieira* - STF e TSE não vacilaram na defesa da democracia

Folha de S. Paulo

E calibrar o emprego desses instrumentos não é uma tarefa simples

A ideia de que a democracia deve se defender de maiorias tomadas de fúria não é nova. Freios e contrapesos nada mais são do que ferramentas voltadas a arrefecer a paixão circunstancial das maiorias.

A discussão sobre a necessidade de criação de mecanismos especiais para defender a democracia de seus inimigos abertos ganhou força, no entanto, com a ascensão ao poder do fascismo e do nazismo, nos anos 1930. A ironia de Goebbels, de que "uma das melhores pilhérias sobre a democracia sempre será a de que ela própria proporcionou aos seus mortais inimigos os meios pelos quais foi aniquilada", não pode ser desprezada.

O ponto de partida dessa discussão deu-se com a publicação de dois textos seminais de Karl Loewenstein, na American Political Science Review, em 1937. Jurista alemão de origem judaica, Loewenstein havia sido aluno de Max Weber, que desconfiava da democracia de massas. A título de curiosidade, esteve no Brasil durante o Estado Novo, quando escreveu um clássico sobre legalismo autoritário, chamado "Brazil Under Vargas", publicado em 1942.

Lula e governadores firmam compromisso com democracia e gestão compartilhada em carta. Leia a íntegra

O presidente também garantiu retomar as obras federais paradas nos estados

Por Karolini Bandeira / O Globo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e os 27 governadores assinaram, nesta sexta-feira, uma carta reafirmando o compromisso com a democracia e o Estado Democrático de Direito. No encontro, Lula afirmou aos gestores ser necessário mostrar à população que “a disseminação do ódio acabou”. A assinatura e conteúdo da ‘Carta de Brasília’ havia sido antecipada pelo GLOBO.

O documento também anuncia a criação de um Conselho da Federação e Consórcios Públicos para firmar uma gestão compartilhada dos recursos públicos entre a União, estados e municípios. “A democracia é um valor inegociável. Somente por meio do diálogo que ela favorece poderemos priorizar um crescimento econômico com redução das nossas desigualdades e das mazelas sociais que hoje impõem sofrimento e desesperança para uma parcela significativa da população brasileira”, diz trecho do documento.

Hélio Schwartsman - Golpismo atávico

Folha de S. Paulo

Não são poucos os militares de hoje com pai, tios ou avós que também foram militares

Por que os militares brasileiros são tão golpistas? Há várias respostas possíveis. Daria até para afirmar que não são, já que não houve ruptura por aqui, apesar dos estímulos do ex-presidente Jair Bolsonaro a uma. Mas, se desta vez as forças castrenses não atravessaram o Rubicão, acho difícil negar que elas tenham nítida predileção por um discurso autoritário de direita e que caminharam perigosamente perto do golpe, ao não rejeitá-lo "ab ovo" como teriam exigido a Constituição e o pudor republicano. Por quê?

Cristina Serra - Holocausto amazônico

Folha de S. Paulo

Investimento e crime compensam porque se beneficiam de legislação leniente

No começo dos anos 1990, a corrida do ouro em Roraima resultou num crime de lesa-humanidade que ficou conhecido como o Massacre de Haximu. Garimpeiros assassinaram 16 yanomamis, entre eles mulheres, crianças e idosos, varados de balas e mutilados a golpes de faca. Um bebê foi atravessado por um facão.

Na época, o Ministério Público Federal conseguiu condenar alguns dos garimpeiros pelo crime de genocídio. Mas o garimpo nunca deixou os yanomamis em paz. E encontrou no governo passado mais do que um aliado. Sob Bolsonaro, o aparelho de Estado, por ação e omissão, foi agente promotor de uma política de extermínio, como mostram as chocantes fotografias de seres humanos descarnados neste holocausto amazônico, além da estimativa de quase 600 crianças mortas por fome e doenças.

Demétrio Magnoli –Fóssil

Folha de S. Paulo

O presidente Lula executou suas acrobacias habituais destinadas a legitimar as tiranias

"A esquerda brasileira permaneceu estagnada no tempo, ficou presa a um mundo que mudou", diagnosticou o ex-presidente uruguaio "Pepe" Mujica, antigo líder Tupamaro e ícone da esquerda latino-americana. A cúpula da Celac deu-lhe razão. Nela, um Lula fossilizado celebrou a democracia com uma face enquanto celebrava seus ditadores de estimação com a outra.

A palavra democracia pairou sobre o encontro. Os líderes repudiaram o ensaio golpista do 8 de janeiro em Brasília e a declaração final destacou o dever "para com a democracia e os direitos humanos". Mas um Lula sempre igual a ele mesmo desperdiçou a oportunidade de levantar a voz por eleições livres na Venezuela, uma abertura política em Cuba e o fim da selvagem repressão do regime de Ortega na Nicarágua.

Pablo Ortellado - Falar em genocídio não é exagero

O Globo

A omissão do governo Bolsonaro é compatível com a postura pessoal do presidente

A Polícia Federal instaurou inquérito para apurar se houve crime de genocídio pela crise humanitária na Terra Indígena Yanomami. Para muita gente, falar em genocídio — “intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso” — é exagero retórico que banaliza e desgasta um termo que deveria ser reservado para situações gravíssimas. Mas as evidências mostram que a omissão no governo Bolsonaro foi generalizada e, se tiver também sido deliberada, caracterizará genocídio.

A crise envolve o descaso e a omissão do governo federal, que levaram a um grave surto de malária, subnutrição e contaminação por mercúrio, no contexto de avanço descontrolado do garimpo ilegal. As imagens divulgadas por organizações indígenas no começo da semana lembram os momentos mais graves da fome na África subsaariana e o Holocausto.

Carlos Alberto Sardenberg - Os velhos erros

O Globo

É incrível que, neste Brasil, não se admita nem se tente corrigir uma visão de política econômica já testada e fracassada

Se ao menos fossem erros novos... Inevitável esse pensamento diante das propostas de política econômica que vão surgindo nas diversas esferas do governo Lula. Dirão: um erro é um erro, não importa se novo ou velho. Certo, na teoria. Na prática, não é bem assim. Um erro novo pode resultar de uma sincera tentativa de mudança. Não diminui o erro, mas diminui a culpa do autor. Pode ser admitido e corrigido. Mas é incrível que, neste Brasil, não se admita nem se tente corrigir uma visão de política econômica já testada e fracassada.

Por exemplo: agora estão falando em elevar a meta de inflação para facilitar... o combate à inflação! O argumento tem um disfarce. Sustenta que perseguir uma meta muito baixa exige taxa de juros muito elevada, o que atrapalha o crescimento. Não se define o que seja muito baixa ou alta, mas a ideia por trás é a mesma de quase 40 anos atrás, quando se fez, com o Cruzado, a primeira tentativa de criar uma moeda estável: tolerância com a inflação.

Eduardo Affonso - O golpe do ‘golpe’

O Globo

O PT poderia ter se empenhado de verdade para o afastamento de Bolsonaro, mas lhe era mais conveniente deixá-lo sangrar

Golpista — adjetivo e substantivo de dois gêneros — é uma palavra polissêmica. Serve tanto para designar quem, valendo-se de práticas ardilosas, obtém proveitos indevidos (via WhatsApp, Tinder, comissão de formatura ou inconsistências contábeis) quanto aquele que, munido de armas ou discursos, tenta derrubar um governo constitucional e democraticamente eleito. Qualquer que seja o golpe — de Estado, da pirâmide, da barriga, do baú —, ele sempre consistirá em um(a) espertalhão(ã) querendo passar a perna em alguém.

Ainda há cerca de mil golpistas presos, em Brasília, pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro. Um golpe felizmente não consumado — mais pela forma atabalhoada como foi desferido do que propriamente pela resistência por parte dos que deveriam defender as instituições e o patrimônio público.

Carlos Góes - O Mercosul real

O Globo

A confusa comunicação do governo parece mostrar uma inadequação na sua ordem de prioridades

Nesta semana, o presidente Lula fez sua primeira viagem internacional. Ele escolheu a Argentina e o Uruguai como destinos, sinalizando que o momento de distanciamento do Brasil de sua vizinhança está chegando ao fim.

Os países são nossos parceiros no Mercosul. Na década de 1990, após o fim de uma era de ditaduras, nossos países espelhavam a Europa e queriam usar o comércio para estreitar relações políticas historicamente conturbadas. O objetivo era a criação de um espaço de livre circulação de mercadorias, serviços, pessoas e capitais na nossa região.

Bolívar Lamounier* - O antes e o depois na história econômica

O Estado de S. Paulo.

O desfecho é igual. A democracia de joelhos ante um Estado agigantado. Economia fechada para proteger um empresariado débil

Certas pessoas acreditam que uma coisa boa é sempre seguida por outra coisa boa, e uma ruim, por outra ruim. Sei que são pessoas raras, pois tal enunciado é uma tolice sem tamanho.

Uma vez que o nosso interesse é a história econômica, podemos afirmar sem medo de errar que nessa área as coisas decididamente não se passam dessa forma. É mais plausível a hipótese de uma eterna contenda entre o primeiro e o segundo cenário, ou entre o diagnóstico e a solução, se preferem. Vezes sem conta, um ataque, um dilúvio ou algum outro evento inesperado destrói o bom começo e leva a um mau desfecho. Se o contrário fosse mais comum, lógico seria vivermos num mundo muito melhor do que este que conhecemos.

João Gabriel de Lima* - Da ‘era Maradona’ à ‘era Messi’

O Estado de S. Paulo.

Brasil e Argentina têm muito a aprender com os erros de um e de outro

Eu estava na Argentina no dia em que Maradona se despediu do futebol. Assisti ao jogo no estádio La Bombonera lotado. As estrelas da seleção argentina, que jogavam na Europa, se deslocaram para Buenos Aires. Em campo, faziam jogadas geniais e passavam a bola para Maradona – que, obeso e decadente, não conseguia completá-las. Era triste.

Isso foi há mais ou menos 20 anos. Fui a Buenos Aires cobrir a derrocada do peso, que gerou uma crise política – manifestantes tomavam as ruas para pedir a cabeça dos governantes. Impressionei-me com o nível educacional dos argentinos que entrevistei, engolidos pela catástrofe econômica – era igualmente triste. O capital humano foi um dos fatores que, no passado, transformaram a Argentina num dos países mais ricos do mundo.

Adriana Fernandes - Reforma neutra e as contas públicas

O Estado de S. Paulo.

Quando fala em reforma neutra, Haddad precisa definir qual será sua referência

Afala recente do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de que vai buscar uma reforma tributária neutra – sem aumento da carga tributária – já suscita a pergunta que deve alimentar o embate entre os setores que não querem saber de pagar mais imposto: a reforma será neutra em relação a qual patamar, de que ano?

O governo Bolsonaro fechou o seu governo com um nível de receita líquida de 18,9% do PIB em 2022. Os números foram puxados por receitas atípicas como alta dos preços de commodities, entre elas, o petróleo.

Em 2019, antes da pandemia, as receitas estavam em 18,2% do Produto Interno Bruto (PIB).

Marcus Pestana - Congresso Nacional: o centro da democracia brasileira

Nunca, desde 1985, a redemocratização tinha sido confrontada como nos tristes acontecimentos de janeiro em Brasília. A sua melhor defesa é a reafirmação das instituições republicanas na construção de respostas efetivas para os angustiantes e graves problemas da população. A democracia é, por definição, imperfeita. Tentativa e erro, experimentação e aprendizado, contradições e conflitos de interesse. Mas não há caminho melhor. O funcionamento do sistema democrático, da República e da Federação pressupõe a existência de instituições sólidas. Poderes independentes e harmônicos, freios e contrapesos, partidos políticos, entidades representativas da sociedade civil, imprensa livre, pacto federativo, Constituição respeitada.

A crise da democracia representativa não é monopólio brasileiro. A fragmentação da sociedade em uma multiplicidade imensa de grupos de interesse, a perda da capacidade de vocalização dos partidos, a comunicação individual direta com o advento das redes sociais, os efeitos colaterais da globalização, as brutais desigualdades, levaram a um “estranhamento” dos cidadãos em relação ao sistema político decisório, aqui e no resto do mundo democrático.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Pacote de leis pela democracia tem efeito incerto

O Globo

Não foi por falta de policiais que vândalos atacaram em 8 de janeiro, mas porque houve negligência

O governo federal apresentará ao Congresso um pacote de medidas para coibir novos ataques às instituições democráticas. O ministro da Justiça, Flávio Dino, entregou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva um documento com quatro propostas que, a partir de agora, serão debatidas. O governo segue um roteiro conhecido diante de fatos graves: a correria para criar instituições ou leis, como se o país tivesse sido vítima de um grande trauma devido à falta de ambas. Todos sabem que não foi bem assim.

Uma das propostas é descabida. Dino sugere criar uma guarda nacional para proteger a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes. A ideia parte de uma premissa falsa. Não foi por falta de policiais que ocorreram os ataques golpistas do dia 8 de janeiro. O problema foi a cooperação entre as forças de segurança e os vândalos. A simples criação de uma nova guarda não a tornaria imune ao golpismo. Tampouco eximiria as autoridades de restabelecer o comando nas instituições que falharam no dia 8. A guarda nacional ainda demandaria a contratação de cerca de 6 mil novos servidores, onerando os cofres públicos em momento de crise fiscal aguda.