segunda-feira, 27 de abril de 2009

PENSAMENTO DO DIA

“Mas quando Gramsci, com inteligência e coragem, corrigiu desse modo o texto consagrado do alfabeto comunista, a sua concepção apareceu como uma blasfêmia e ele foi punido,sepultando-se no silêncio sua obra e seu nome. De 1930 a 1945 – é preciso dizer sem subterfúgios, pelo menos uma vez, essa triste palavra -, a palavra de ordem foi, com efeito, nada dizer sobre ele, a não ser em termos rituais e quando das comemorações de praxe. E foi assim até que, com a virada democrática, o Partido – tendo se colocado na projeção estratégica e tática de sua revisão doutrinária – pôde perceber o quanto e por quão longo tempo fora marginalizado e repudiado aquele que é agora unanimemente colocado na própria origem do movimento comunista italiano.”

(Umberto Terracini, deputado e companheiro de prisão com Gramsci, presidente da Assembléia Constituinte, pós-guerra, no prefácio do livro “Antonio Gramsci, uma vida” de Lauren Lajolo, pág. 11 – Editora Brasiliense, S. Paulo, 1982)

PMDB: tempo para fazer avaliações

Adriana Vasconcelos e Gerson Camarotti
DEU EM O GLOBO


Principal aliado do governo Lula e cotado para dividir chapa com os petistas na sucessão presidencial, o PMDB recebeu com preocupação a notícia de que a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, enfrentará nos próximos meses uma batalha contra um câncer linfático. Assim como o PT, os peemedebistas já consideravam a candidatura de Dilma consolidada e não trabalhavam com nenhum plano B. Mas há quem vislumbre dentro desse novo cenário a possibilidade de o grupo favorável a uma aliança com o PSDB aproveitar o momento para ganhar espaço dentro do partido.

— Com certeza, isto fortalecerá o grupo do PMDB serrista, que vai tentar tirar vantagem — disse ontem o senador Wellington Salgado (PMDB-MG), numa alusão ao peemedebistas que torcem pelo lançamento da candidatura do tucano José Serra.

Dirigentes do partido adotaram tom de cautela Mesmo informalmente, líderes do PMDB passaram a manhã trocando ideias sobre o quadro político daqui para a frente. Mas a maioria evita falar em plano B, ou mesmo num crescimento do PMDB nesse novo cenário.

— Todos nós fomos tomados de surpresa pela notícia, que de certa forma é tranquilizadora.

Mas é preciso um pouco mais de tempo para uma avaliação mais precisa, talvez no início do segundo semestre. Hoje conversei com Michel Temer e, até para ajudar no estímulo psicológico, estamos todos na torcida pela recuperação da ministra Dilma — observou o líder do partido na Câmara, Henrique Alves (RN).

— Fica difícil neste momento fazer uma análise da situação à luz da eleição — reforçou Renan Calheiros (AL), que comanda a bancada do PMDB no Senado.

Para o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDBRR), seu partido não tem outra alternativa para a sucessão presidencial de 2010.

— Sem Dilma, não há nome.

Sua candidatura se fortaleceu porque não havia um nome natural. Era tudo japonês.

Como ela era a japonesa de Lula, emplacou. O processo continua aberto. É preciso aguardar como esse fato novo será metabolizado emocionalmente pela opinião pública.

Os próximos meses serão decisivos. Se a questão de saúde da Dilma for encaminhada positivamente, reforçará a imagem de que ela venceu a ditadura, a tortura e o câncer— previu Jucá.

Romero Jucá descarta ainda a hipótese de o PMDB lançar uma candidatura própria por falta de alternativa viável.

Sua aposta continua sendo a de que o partido poderá indicar um nome para ser o vice na chapa do PT.

PT sem alternativa a Dilma

Adriana Vasconcelos e Gerson Camarotti
Brasília
DEU EM O GLOBO

Surpreendidos com a notícia do tratamento contra o câncer linfático da ministra Dilma Rousseff, pré-candidata do PT à Presidência da República, petistas admitem que poderão ter dificuldades em achar eventual substituto da ministra na corrida presidencial. Apesar de o Palácio do Planalto descartar qualquer especulação sobre substituição, nos bastidores já começam debates sobre nomes que poderiam fazer parte de um plano B do presidente Lula

PT sem alternativas

Primeira avaliação é que haverá dificuldade em encontrar nome viável para 2010

Apesar do esforço, nas últimas horas, para reiterar a candidatura presidencial da chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, o governo e a cúpula petista devem iniciar esta semana uma análise mais profunda sobre o cenário político para 2010, ante a revelação de que a ministra terá de enfrentar nos próximos meses um câncer linfático. Isso porque os planos do PT ficam, a partir de agora, atrelados diretamente à capacidade de recuperação da ministra.

Embora a primeira avaliação seja de que hoje o partido não tem alternativa viável para Dilma, nos bastidores já começaram especulações sobre um eventual plano B do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os cotados para esse papel despontam os ministros Fernando Haddad (Educação), Tarso Genro (Justiça) e Patrus Ananias (Desenvolvimento Social), o deputado Antonio Palocci (PT-SP), o governador Jaques Wagner (PT-BA).

E, fora do partido, o deputado Ciro Gomes (PSB-CE). Mas são todos nomes difíceis de serem viabilizados.

Surpreendidos, petistas admitem que poderão ter dificuldade para achar um eventual substituto para Dilma, apesar dos problemas iniciais que a ministra enfrentou para consolidar seu nome dentro do partido. Isso porque a candidatura da chefe da Casa Civil foi construída pessoalmente por Lula durante um ano. Uma nova alternativa não teria consenso e poderia rachar o PT e a base aliada.

Única certeza: Lula será decisivo

O novo cenário político, dizem petistas, só será definido no prazo de no mínimo um mês. Nesse período, observam, haverá uma paralisia nas articulações sobre sucessão e negociações de alianças. Em qualquer mudança no xadrez político, só há uma certeza: a de que o presidente Lula será decisivo para a definição de sua própria sucessão. Hoje, no Palácio do Planalto, qualquer especulação sobre uma eventual substituição da candidatura de Dilma está descartada.

— Não há alternativa. O que aconteceu não afetará a sucessão presidencial.

A ministra Dilma vai manter seu ritmo de trabalho. Ela me disse que vai tirar de letra esse episódio. Está bem disposta e sua agenda é normal — diz o chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, que hoje viaja com Dilma e Lula para Manaus.

Apesar do otimismo palaciano, o clima na cúpula petista é de apreensão.

Segundo um integrante da executiva nacional, a ordem é aguardar uma definição do presidente Lula.

— Este é um dado novo na conjuntura.

Mas é cedo para cogitar uma mudança de cenário. Ninguém está se colocando.

Também não se cogita alternativa.

Por isso, até segunda ordem, não haverá nenhuma mudança — ressaltou o líder do PT na Câmara, deputado Cândido Vaccarezza (SP).

Tanta cautela de petistas não é por acaso. Hoje, todas as alternativas colocadas e até mesmo testadas antes da consolidação do nome de Dilma apresentaram dificuldades. Reservadamente, fala-se em lista de nomes para eventual substituição num quadro de dificuldade de manutenção da candidatura, mas todas as alternativas enfrentam algum tipo de dificuldade.

Quebra de sigilo prejudica Palocci

O ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, que chegou a ser o candidato natural do PT até 2006, é visto como nome problemático por causa da acusação de violar o sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Recentemente, obteve uma vitória política, depois do pedido da Procuradoria da República para que seja rejeitada a denúncia relativa à máfia do lixo quando ele era prefeito em Ribeirão Preto (SP). Mas avalia-se que ele ficará marcado com a denúncia da quebra do sigilo, mesmo sem ser aberto processo no Supremo Tribunal Federal.

O ministro Haddad é visto com desconfiança pelos petistas por nunca ter sido testado eleitoralmente, apesar da simpatia pessoal de Lula.

Sexta-feira, em Itumbiara, Lula afirmou que duvidava que um dia um presidente da República tenha tido um ministro da Educação da qualidade de Fernando Haddad.” Já Patrus Ananias tem pouca visibilidade nacional, apesar de coordenar o maior programa social do governo, o Bolsa Família. O nome de Tarso Genro teria forte resistência no PT, a começar pelo ex-ministro José Dirceu.

Outro petista da lista, o governador Jaques Wagner, apesar de próximo a Lula, tem feito uma administração muito voltada para a Bahia, de pouca repercussão nacional. Fora do PT, o deputado Ciro Gomes, tem temperamento explosivo, o que não ajuda a reduzir resistências de petistas em abrir mão da cabeça de chapa em favor de outra legenda. Há, porém, quem não queira nem ouvir falar na hipótese de substituir a candidatura Dilma. É o caso do líder do PT no Senado, Aloizio Mercadante, que diz ter certeza de que Dilma vai superar a doença.

Cientistas: para plano B, Ciro Gomes é inviável

Norma Moura /Viviane Monteiro
Brasília
DEU NO JORNAL DO BRASIL

PSB quer reforçar candidatura do polêmico deputado

Poucos ousam falar abertamente, mas a sucessão presidencial virou motivo de preocupação entre os políticos. A notícia da doença da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, não expôs apenas a existência do câncer que ela terá de combater, mas também a fragilidade do plano de sucessão do PT.

A revelação da doença da ministra-chefe da Casa Civil desmonta uma estratégia política traçada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva à sucessão presidencial ano que vem. O PT nega a existência de um plano B e mantém a ideia de que ela é a pré-candidata. Cientistas políticos afirmam que o partido não teria nomes com densidade eleitoral igual ao de Dilma, caso a ministra seja obrigada a desistir da candidatura em razão do tratamento do linfoma – um câncer nos gânglios linfáticos. O que pode favorecer a candidatura do ex-ministro e deputado federal Ciro Gomes (PSB-CE). Mas o PSB teria de trabalhar para emplacar a candidatura dele, tido como um homem intempestivo. Analistas ouvidos pelo JB acreditam que sua candidatura seria inviável como plano B.

– Para o presidente Lula conseguir um nome com densidade política igual ao de Dilma Rousseff, ele teria que começar tudo do zero (para construir um outro candidato) – avalia o cientista político Geraldo Tadeu, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Esse cenário foi lembrado também pelo deputado Júlio Delgado (MG), um dos expoentes do PSB.

– O PT trabalhou muito em cima do nome de Dilma e não previu um plano B – avalia Delgado. – Se a candidatura de Dilma não se confirmar, eles terão que escolher alguém da base aliada.

O senador Renato Casagrande (PSB-ES) pondera que ainda é prematuro falar em mudanças no cenário político, mas confessa que, caso ocorra, a desistência de Dilma pode colocar Ciro como uma alternativa do PT para a sucessão.

– Temos de trabalhar com o cenário da ministra sendo candidata, mesmo com um alto grau de imponderabilidade. Mas a proposta do PSB continua a mesma, a de colocar Ciro como uma candidatura viável. Ou o PT sai com um nome deles ou é o Ciro – defende Casagrande.

Destempero

Apesar do PSB apostar no nome de Ciro, há consenso entre os cientistas políticos de que a nomeação do parlamentar não vingaria pelo fato de ele ter um quadro emocional desenfreado, por não ter papas na língua, o que chamaram de "destemperado". Ciro chegou a dizer palavrões na semana passada, ao explodir diante de uma pergunta sobre a farra de passagens: "Ministério Público é o c... Não tenho medo de ninguém. Da imprensa, de deputados (...) Pode escrever o c... aí", esbravejou.

Por essa razão, especialistas acreditam que o cearense teria dificuldades para angariar apoio político. Pelo fato de não haver nomes fortes no PT para suceder o presidente Lula, a cientista política Lúcia Hippólito, do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj), até acredita na volta da discussão de "um terceiro mandato presidencial" dentro do PT.

– As conversas sobre o terceiro mandato podem voltar, pois em um momento de crise financeira mundial, as pessoas podem se questionar se não seria melhor continuar com o presidente Lula na Presidência – avalia a cientista. – A Dilma é, por enquanto, a escolha do presidente Lula. E ela é a única alternativa. Hoje o PT não tem um plano B – complementa.

O diretor do Centro de Pesquisas e Analises de Comunicação (CEPAC), o cientista político Rubens Figueiredo, trabalha com duas possibilidades neste novo quadro político:
– O eleitor pode analisar que a ministra não teria condições de ser eleita, por causa da doença. Ou a ministra pode sair vitoriosa dessa situação, ao superar todos os tratamentos de quimioterapia e sair como uma mulher guerreira que enfrentou um problema desse e por isso seria capaz de enfrentar a situação do país.

Com opinião semelhante, Geraldo Tadeu avalia que a superação da doença pela ministra pode, por um ponto de vista, humanizá-la perante a sociedade, já que ela é vista como uma pessoa técnica.

– Tudo vai depender de como a ministra vai reagir à doença.

Notícia da doença atrasa negociação sobre aliança

Ana Paula Scinocca
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A divulgação do problema de saúde da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, candidata do PT para a disputa presidencial do ano que vem, gerou insegurança entre os aliados do governo. Surpreendidos com a notícia no sábado, procuraram adotar o tom da cautela, mas se mostraram certos de que, pelo menos neste momento, a formação da aliança nacional de 2010 fica em compasso de espera.

"Tudo vai depender da evolução do quadro clínico da ministra. Estamos agora torcendo para que ela se recupere e que isso não influencie em nada (as negociações e a candidatura de Dilma para 2010)", resumiu o presidente da Câmara e uma das principais lideranças do PMDB, o deputado Michel Temer (SP). O PMDB é o partido mais cobiçado para a formação do palanque para a disputa presidencial de 2010. Integrantes da sigla têm sido cortejados tanto pelo PT, de Dilma e Lula, quanto pelo PSDB do governador de São Paulo, José Serra, principal nome tucano na corrida ao Planalto.

Embora o clima seja de insegurança, há quem aposte que a doença enfrentada por Dilma não mudará as articulações eleitorais de 2010. Líder do PTB no Senado, Gim Argello está entre os que apostam na tese de que tudo ficará como antes. "A ministra Dilma tem um problema pequeno e que, daqui a seis meses, será passado. Isso (a divulgação do linfoma) só foi notícia porque ela é candidata à Presidência", avaliou. Para o senador, Dilma demonstrou coragem ao vir a público falar sobre sua doença. "É apenas mais um desafio e os médicos deixaram claro que as chances de cura são superiores a 80%. Para nós não muda nada."

Além dos divididos entre a cautela e a esperança, entre os aliados há também aqueles que apostam que o episódio servirá para humanizar Dilma - vista até então como uma dama de ferro - como política. "Ela mostrou que tem raça e coragem e o povo brasileiro se identifica com isso", resumiu um aliado que preferiu não se identificar.

A batalha das previsões

Carlos Alberto Sardenberg
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O governo Lula não gostou nem um pouco do relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) que prevê uma recessão forte para o Brasil neste ano. Segundo o fundo, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro vai encolher 1,3%, um resultado pior do que a opinião média verificada entre economistas locais.

Na verdade, há hoje uma dispersão muito grande nos cenários, e não apenas no Brasil. Isso porque a crise é inédita, um evento cujos contornos essenciais não se encontram nos livros nem na experiência recente. Além disso, os governos mundo afora continuam lutando contra a crise com programas e pacotes que podem ou não mudar o curso das coisas.

Há aí uma dimensão propriamente econômica, mas também um lado político, especialmente para o presidente Lula, que leva tudo para o plano eleitoral. Se confirmada a previsão do FMI, seu governo terá obtido uma recessão pior do que a ocorrida na administração FHC.

É muito provável que o ano de 2010 seja de recuperação, mas moderada, de modo que, nessa hipótese, Lula e Dilma Rousseff chegarão às eleições presidenciais com um desempenho econômico mediano. E o plano deles era chegar ao pleito no auge do espetáculo do crescimento.

Como a crise tem uma origem externa, Lula poderia ter escapado desse problema. Entretanto, ao colocar como um objetivo de governo o crescimento de 2% neste ano e de 4,5% em 2010, o presidente assume a responsabilidade integral pelo PIB.

Fica claro que Lula acredita de fato na capacidade do governo de interferir na realidade econômica de um modo decisivo. Pode ser um equívoco, mas vem de longe. O presidente sempre acreditou que o recente crescimento brasileiro decorreu essencialmente de suas políticas e quase nada da boa onda mundial. Agora que a onda se tornou um refluxo, Lula acha, do mesmo modo, que pode escapar.

O peso da influência mundial está subestimado nos dois lados da história. Uma das principais viradas do Brasil foi nas contas externas. E como isso ocorreu? Primeiro, pelo forte crescimento das exportações, que trouxeram dólares abundantes para o Brasil - dólares que foram comprados pelo Banco Central (BC) para compor as reservas de mais de US$ 200 bilhões, o maior seguro anticrise.

Ora, as exportações decolaram porque o mundo estava em forte crescimento e assim demandou produtos brasileiros. Além disso, o Brasil se beneficiou da abundância de capitais baratos, trazidos para cá pela ciranda financeira. Em 2007, por exemplo, as empresas brasileiras captaram mais de R$ 70 bilhões vendendo ações na Bovespa, recursos utilizados para investimentos e novos negócios. E a maior parte desse dinheiro veio de fora.

Além dessas captações, as empresas e os bancos brasileiros tiveram enorme facilidade para obter financiamentos externos bem baratinhos.

A crise atinge o Brasil por esses dois canais: encolhe o mercado de exportação e seca o mercado de capitais. Não há como escapar de uma redução expressiva na atividade econômica, considerando-se que, antes da crise, o Brasil crescia a um ritmo de 6% ao ano.

Uma redução de quanto? - essa é a questão. Dentro do governo, a melhor análise econômica, disparado, está no Banco Central. Conforme o último Relatório de Inflação, o cenário dominante do BC indica um crescimento de 1,2% para este ano. E o BC, registre-se, tem um belo repertório de acertos.

Fora do governo há muita variação. Affonso Celso Pastore, um dos mais respeitados economistas brasileiros, escreveu na semana passada no jornal Valor Econômico que o PIB deste ano deve ter uma contração de 1,5%, um prognóstico próximo ao do FMI.

Mas há consultorias de prestígio que estão mais próximas do Banco Central, esperando um resultado positivo.

Já a economista-chefe do Bradesco Asset Management, Ana Cristina Boicenco, acredita que o PIB terá uma queda de 0,2% a 0,5% - e se trata de uma boa referência. A economista acaba de ganhar o prêmio da Agência Estado por ter obtido, em 2008, a maior margem de acerto nas previsões para PIB, inflação, dólar, juros, comércio externo e dívida pública.

As previsões para 2009 da campeã de previsões em 2008 são as seguintes, além do PIB citado acima: inflação (IPCA) em torno de 4%; taxa básica de juros, no final do ano, de 8,75% a 9%; dólar médio em R$ 2,38, esperando, pois, uma desvalorização do real daqui em diante; e a relação dívida líquida do setor público/PIB subindo um pouco para 37,3%.

E para 2010? Ana Cristina Boicenco espera uma moderada recuperação, com o PIB crescendo em torno dos 2%.

Para todo esse cenário, a economista considera que os programas do governo para estimular a economia vão, sim, produzir seus efeitos.

Tudo considerado, ninguém está esperando um desastre para o Brasil. Ao contrário do que ocorria em crises externas anteriores, o País não vai quebrar pelas contas externas, não vai ao FMI. Ao contrário, vai emprestar dinheiro ao fundo.

A reação brasileira será a de um país com estabilidade macroeconômica. Sofre com a perda de mercados e de crédito, reduz a atividade econômica, com a consequente alta do desemprego, mas tudo sendo uma "crise normal", digamos assim. Comparando com o resto do mundo, é um desempenho mais do que razoável.

Mas, politizando a questão, Lula corre o risco de uma derrota onde poderia ter, no mínimo, um bom empate. Ou não está bem informado sobre a crise ou, de novo, confia no seu discurso não para mudar as coisas, mas a aparência delas.

Sua sorte é que a oposição parece não ter a menor noção do que ocorre e de como lidar com os efeitos da crise.

*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista

Princípios no coração da matéria

Luiz Werneck Vianna1
DEU NO BOLETIM CEDES/IUPERJ – março/abril

A institucionalização da democracia política no país com a Carta de 1988 não só importou a criação de novos direitos e de novos procedimentos destinados a lhes conceder eficácia, como também tem ensejado um ambiente propício para que antigas instituições renovem sua forma de atuar e se atualizem na complexa cena contemporânea. Este é bem o caso da Justiça do Trabalho, do que é testemunha a legitimação das ações civis públicas como recurso dos sindicatos, inovando o sistema de defesa dos direitos dos trabalhadores.

Mais recentemente, exemplar dessa mutação, estão aí as decisões dos Tribunais Regionais do Trabalho da 15ª e 3ª Regiões que suspenderam, por medida liminar, respectivamente, as demissões de 4723 empregados da Embraer e de 1500 da Usiminas.

Decerto que essas liminares foram cassadas pelo plenário desses dois tribunais, mas o precedente está aberto e se acumulam as evidências de que a jurisprudência pode vir a se mover no sentido sinalizado por aquelas decisões. Em particular, porque nos dois casos foi imposta a realização de audiências de conciliação, com a presença de líderes sindicais e do Ministério Público do Trabalho, exigida das empresas a apresentação de balanços patrimoniais e dos demonstrativos contábeis dos últimos anos, e a relação dos empregados dispensados, indicando-se o seu tempo de serviço.

De fato, a questão envolvida se acha instalada no coração da matéria das relações trabalhistas, na medida em que afeta o direito discricionário do empregador de demitir os seus trabalhadores. Substantivamente, as decisões dos dois Tribunais não reconheceram esse direito, obrigando a Embraer e a Usiminas a justificarem os motivos da demissão dos seus empregados perante os sindicatos e o poder público.

No entanto, a demissão imotivada de que trata a convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que a proíbe, salvo em casos especiais, embora tenha sido ratificada pelo governo brasileiro em 5 de janeiro de 1995, foi denunciada por ele, após forte reação do empresariado à sua implementação, no ano seguinte. Sem ela, o que vige são as práticas das demissões imotivadas, sujeitas apenas às multas previstas na lei do FGTS, responsável, como muitas vezes demonstrado, pela alta rotatividade no emprego do trabalhador brasileiro, com óbvias repercussões salariais, uma vez que os novos contratos de trabalho estipulam, em geral, uma remuneração inferior a que o empregado recebia no emprego anterior.

Contudo, no capítulo dos direitos sociais, a Constituição dispõe que a relação de trabalho deve ser protegida da demissão arbitrária – art. 7º, inciso I –, matéria a ser regulamentada por lei complementar. À falta desta lei, passados mais de vinte anos de vigência da Carta de 88, que é o caso, circunstância qualificada pela denúncia do governo da convenção 158, que preencheria este vazio legislativo, cria-se a possibilidade para uma intervenção criativa do juiz, especialmente diante de uma crise econômica de largo alcance que põe sob ameaça o emprego e o mercado de trabalho.

A estratégia dos Tribunais diante de uma “situação difícil” – a demissão de milhares de trabalhadores – foi a de obrigar, em nome do princípio constitucional da “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, inciso III), as empresas a motivarem as demissões. Este princípio, entretanto, não foi mobilizado em terreno juridicamente vazio, apenas uma intervenção da especulação hermenêutica, pois é a própria Constituição que declara a sua intenção de proteger o trabalhador da demissão arbitrária.

Não são apenas nos “casos difíceis”, litígios tópicos diante dos quais o direito ainda hesita sobre a interpretação a adotar, que os princípios devem ser chamados a fim de participar das decisões. “Situações difíceis”, com origem em litígios sistêmicos, como a da segregação racial na sociedade americana nos anos 1950, podem, de igual modo, reclamar deles a sinalização para a melhor solução – no limite, a única – para que o justo prevaleça. A insegurança jurídica, tema da reação dos empresários às decisões dos dois Tribunais que interpelaram princípios – mas, não só –, não é sentida apenas por uma das partes contratantes nas relações de trabalho. A segurança por que demandam os trabalhadores é a de terem, em especial nas demissões coletivas, a justificação comprovada da sua necessidade e uma justa indenização por seus anos de serviço.

1 Professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e coordenador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES/IUPERJ).

Centrais Sindicais e Mundo do Trabalho: disputas e dilemas em um quadro de fragmentação

Fernando Perlatto1
DEU NO BOLETIM CEDES/IUPERJ - março/Abril

Recentemente, duas notícias que ganharam certa repercussão na imprensa, evidenciaram a agitação em que se encontra o mundo sindical, em decorrência de disputas que têm sido travadas no âmbito das centrais sindicais. Por um lado, a recente decisão da Central Única dos Trabalhadores (CUT) de institucionalizar o PROIFES (Fórum de Professores das Instituições Federais de Ensino Superior) como sindicato nacional dos docentes universitários do ensino público, com o intuito de disputar a base do ANDES-SN (Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior), outrora vinculada à CUT e hoje “submetida” à Coordenação Nacional de Lutas (CONLUTAS).

Por outro lado, chamou atenção a resolução da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), em seu último Congresso Nacional, encerrado em Brasília, no dia 14/03/2009, aprovando a desfiliação da CUT e, ainda que continue mantendo laços privilegiados com esta central, passa também agora a fazê-lo com a Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB).

Essas movimentações evidenciam que o mundo sindical encontra-se permeado por diversas disputas internas, cuja conseqüência mais evidente refere-se ao enfraquecimento da CUT, que já não conta mais com a mesma força de outros tempos, no sentido de hegemonizar o movimento sindical no âmbito da esquerda. As divergências entre as diversas correntes do mundo sindical com esta central foram exacerbadas principalmente após a ascensão de Lula ao poder, em 2002, fazendo com que, a partir de então, o quadro de fragmentação do mundo sindical se intensificasse ainda mais. Os desacordos entre estas correntes que outrora compunham a CUT vão desde a avaliação do Governo Lula até a posição das mesmas frente ao imposto sindical e à liberdade sindical, passando pela divergência no plano internacional, até chegar às disputas relacionadas às verbas do fundo sindical. Independente dos motivos existentes – sejam eles programáticos ou pragmáticos – fato é que hoje ocorrem diversas movimentações, que têm contribuído para alterar a cena sindical nacional.

Em 2004, setores ligados ao Partido Social dos Trabalhadores Unificados (PSTU) desligaram-se da CUT e constituíram a CONLUTAS, acusando a central de “pelega” por ter se transformado em “chapa branca” diante dos ataques “neoliberais” das reformas sindical e trabalhista propostas pelo Governo Lula. Desde então, esta “Coordenação Nacional de Lutas” vem buscando se constituir como um pólo alternativo à CUT, articulando, para tanto, diversos movimentos sociais, rompendo, dessa forma, com a idéia de uma central exclusiva de trabalhadores. Tecendo críticas semelhantes ao “governismo” e ao “burocratismo” que teriam tomado conta da CUT, sobretudo após a vitória de Lula em 2002, setores ligados ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) criaram a Intersindical, visando colocar-se contra as “reformas neoliberais” do governo petista apoiados por seu braço no movimento sindical. Este quadro de fragmentação foi agravado pelo rompimento recente da Corrente Sindical Classista (CSC), ligada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), da CUT para a criação da Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB).

O cenário sindical configura-se hoje, por conseguinte, com quatro organizações sindicais no espectro da esquerda, cada qual com maior proximidade de um partido político (CUT/PT, CTB/PCdoB, CONLUTAS/PSTU, Intersindical/PSOL)

Além destas movimentações à esquerda, convém destacar a constituição da Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST), assim como a formação da União Geral dos Trabalhadores (UGT), através da fusão das centrais sindicais Confederação Geral dos Trabalhadores
(CGT), Social Democracia Sindical (SDS) e Central Autônoma dos Trabalhadores (CAT), estas duas últimas antigos “rachas” da Força Sindical (FS), outrora tida como principal representante do conservadorismo no movimento sindical. As recentes movimentações da FS evidenciam o quadro confuso em que se encontra hoje o mundo sindical, haja vista sua guinada política, quando de ferrenha opositora da CUT e do Governo Lula passou para a base aliada após a indicação de Carlos Lupi (PDT) para o Ministério do Trabalho.

De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), publicados no Diário Oficial da União (DOU), no último dia 15, a representatividade das centrais sindicais, reconhecidas pelo Governo – e que atenderam, portanto, aos requisitos previstos na Lei nº. 11.648/2008, que reconhece as centrais sindicais no Brasil – divide-se hoje, aproximadamente, da seguinte forma: CUT (36,79%), Força Sindical (13,10%), UGT (7,19%), CTB (6,12%), NCST (5,47%) e CGTB (5,02%)3. Obviamente este quadro de fracionamento, sobretudo no campo da esquerda, pode ser prejudicial para a classe trabalhadora como um todo, na medida em que a pauta sindical deixa de ser somente a luta pela valorização do trabalho e passa a se dar em torno da disputa entre as máquinas sindicais pelas entidades de bases afiliadas, posto que de acordo com a regulamentação das centrais sindicais, cada sindicato de base deverá declarar a qual central está ligado4. Estas disputas tendem a afastar cada vez mais a base dos sindicatos, que passam a ser vistos por muitos trabalhadores somente como espaços de lutas políticas internas, deixando de lado as reivindicações em prol da classe operária.

Em contrapartida, contudo, o atual quadro de fracionamento não impede que atos conjuntos possam ocorrer, envolvendo diferentes centrais sindicais. No dia 30/03/2009, dirigentes de diversas centrais sindicais – como CUT, Força Sindical, CGTB, CTB, NCST, UGT, Intersindical, CONLUTAS – protagonizaram um ato unitário com lideranças de outros movimentos sociais em defesa da geração de empregos, da valorização dos salários e da garantia de direitos trabalhistas. Muitas destas pautas foram entregues pelas centrais sindicais em reunião com o presidente Lula no último dia 08/04, na qual às reivindicações em torno da aprovação das questões relacionadas ao mundo do trabalho, somaram-se aquelas referentes à necessidade da redução dos juros e dos spreads bancários, à expansão do crédito e ao fortalecimento do papel do Estado neste contexto de crise.

Espera-se que o referido ato do dia 30 atue como um catalisador de novas movimentações no sentido de construir pautas comuns capazes de unificar o movimento sindical e social em relação às suas reivindicações. Resistir de maneira unitária às pressões pela flexibilização da legislação trabalhista e travar a luta em torno de pautas propositivas, como a ratificação das convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – em especial a 1515 e a 1586 – e a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas, sem redução de salários, parece ser o caminho mais promissor para um movimento sindical que ainda se coloca como um ator relevante na disputa hegemônica entre capital e trabalho na sociedade brasileira.

1 )Mestrando em Sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES).

2 )Nas eleições presidenciais de 2006, a CUT apoiou Lula, enquanto que a CONLUTAS e a Intersindical apoiaram Heloísa Helena. A CTB fazia parte da CUT e também apoiou a eleição de Lula. A Força Sindical deu seu apoio a Geraldo Alckmin.

3 )A CONLUTAS e a Intersindical não participaram desse processo de reconhecimento das centrais sindicais, apontando para a possibilidade de ingerência do Estado sobre as mesmas, da forma como o projeto foi aprovado. Daí, estarem excluídas deste cálculo de representatividade.

4 )A “representatividade” das centrais sindicais, de acordo com suas bases, define a parte do bolo (10%) do imposto sindical arrecadado que caberá a cada central sindical. Caso se tome como parâmetro a arrecadação de 2007, as centrais irão receber, na proporção de sua representação, R$ 144,1 milhões.

A hora da verdade pobre

José Arthur Giannotti
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / MAIS!

Turbulência financeira deveria levar Estados a tomar decisões e oferecer oportunidade de mudanças políticas

Estamos acostumados à ideia de que a crise do sistema capitalista de produção é ensejo para que a sociedade capitalista se passe a limpo.

Na crise, o capital mostra o que ele é: um sistema quase automático de produção de riqueza que, em seu processo de reposição, expande o crédito, incha o capital financeiro, que, chegando às alturas, estoura para que as transações econômicas voltem a tomar pé na realidade, reajustando oferta e demanda dos bens produzidos e consumidos.

Não há responsabilidade pessoal no excesso. À medida que cada um trata de seus interesses, nada mais natural que procure as brechas do sistema visando a aumentar seus lucros, seu salário, os juros de seus investimentos, os benefícios sociais.

Mas a famosa equação segundo a qual a trama dos interesses privados resulta no reforço dos interesses públicos se desfaz durante a crise, quando se torna do interesse público salvar o que puder dos interesses privados. Mas quais deles?A redução da economia a seu tamanho real, inclusive com queima de ativos que se mostram inadequados à retomada do círculo econômico, prejudica toda a população, mas de forma tremendamente desigual, tanto do ponto de vista econômico como do social.

Um banqueiro, um investidor, um industrial podem perder milhões, mas os assalariados perdem seus empregos. A crise econômica se transforma em crise social.

Até o início do século passado, a crise social ameaçava o sistema político como um todo.

O espectro do socialismo rondava a Europa, mas, no final das contas, o resultado foi sempre um reforço violento do Estado, quer sob forma mais democrática, implementando políticas keynesianas, quer simplesmente sob forma ditatorial: nazismo ou socialismo real.

Hoje em dia o panorama é diferente. Os assalariados prejudicados não se organizam como classe antagônica ao capital, mas pressionam pela manutenção dos direitos sociais adquiridos, de sorte que reforçam o Estado sem reivindicar sua transformação.

Na Europa, mesmo que isso venha a prejudicar o processo de integração europeia, consolidam-se o foguetório do presidente francês Nicolas Sarkozy ou a caricatura do premiê italiano Silvio Berlusconi.

Na Ásia, com algumas exceções que nada têm a ver diretamente com a crise, firmam-se a ditadura comunista ou o jogo brutal do sistema político japonês. Na América do Sul, se reforça o novo populismo, que, já antes da crise, crescia para dar conta das demandas dos menos favorecidos.

Sociedade de consumo

Para todos importa salvar a sociedade de consumo. Vale o Estado que se tem, desde que consiga colocar a economia nos eixos.

Uma diferença ocorre nos Estados Unidos.

Obviamente, não há demandas por transformação do Estado, mas a política de Barack Obama rompe com a política de George W. Bush, promove maciça intervenção estatal no sistema financeiro -que, se não estatiza os bancos, é porque talvez possa ter controle sobre eles sem que haja completa transferência da propriedade para as mãos do Estado.

Uma das alterações básicas na dinâmica do jogo político ocorre justamente porque a questão da propriedade deixa de ter a importância de antigamente. Os meios de produção se socializaram não porque passaram para o controle democrático da população, mas simplesmente porque caíram nas mãos das burocracias impessoais.

Os bilionários do momento são apenas pontas do iceberg tecnoburocrático que conseguiram montar. Bill Gates desapareceria em pouco tempo se a Microsoft não conseguisse produzir a renovação de seus produtos no ritmo imposto por seus adversários.

O núcleo da propriedade está nos meios da renovação tecnológica que tende a se repor por si mesma.

No entanto, ao menos uma mentira foi desmascarada: a pretensão neoliberal de que os mercados possam crescer sem cair no abismo. Parece-me, contudo, no sentido inverso do que se tem pretendido. Por si só o capital tende a se globalizar.

Com o desenvolvimento da tecnociência, em particular com a extraordinária expansão dos meios de comunicação eletrônicos, era inevitável que o sistema produtivo globalizasse suas bases e o sistema financeiro passasse a operar continuadamente.

As regulações anteriores, inclusive o acordo de Basileia [acordo de 1988 que regulamenta a atividade bancária, substituído em 2004 pelo Basileia 2; atualmente se discute a criação de um acordo de Basileia 3], se tornaram obsoletas; a inventividade dos operadores financeiros levou ao limite a expansão imaginária da riqueza social.

Esse fenômeno de autoalimentação fantasiosa do capital financeiro, que Marx admiravelmente descreveu como a forma mais perfeita da alienação do capital, caminhou por si só até que ele próprio encontrasse seus limites.

As hipotecas sobre hipotecas sobre hipotecas avançaram até pôr em xeque o sistema de crédito. Quando esse faliu, a economia como um todo se travou.

Discurso e ideologia

A ideologia neoliberal, o Consenso de Washington e suas outras manifestações apenas legitimavam o que se dava per se. As políticas de contenção do crédito e de ajuste das cadeias produtivas só tiveram efeito na margem.

Fosse qual fosse a ideologia dos governantes, todos eram levados pelo mesmo roldão.

Exemplo significativo é o caso brasileiro, pois desde Collor [1990-92], passando por Fernando Henrique até Lula, a mesma política econômica foi mantida nas suas bases. As diferenças se deram no gogó. Agora a ideologia evaporou porque a travação imaginária do capital se colocou em xeque.

Não tenho ilusões. A crise demanda intervenções políticas, que tendem a se fazer, contudo, nos quadros de um Estado preexistente. Ela passará conforme o capital for reforçado e renovado.

Mas, nesse movimento de reflexão, se cria a oportunidade de reformar o sistema e o jogo políticos, à medida que eles revelam suas dimensões imaginárias e opressoras.

O reforço da política, mesmo passageiro, permite que se aprofunde ou se mistifique a democracia, o controle popular dos mecanismos econômicos e da trama das instituições burocráticas.

A hora é agora. Mas não vejo no horizonte, quer na verborragia do governo Lula, quer no vazio abissal das oposições, uma brecha que de fato aumente o controle popular sobre nossos processos de governar.

Pelo contrário, a política entre nós se torna uma deslavada mentira.

José Arthur Giannotti é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.

Na democracia da chupeta, a ordem é desfrutar

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

O país do abuso despudorado da coisa pública tem até hino nacional da mordomia: a marchinha ?Mamãe Eu Quero Mamá?

O uso de recursos públicos para benefícios privados, como neste caso das passagens aéreas pagas pela Câmara para viagens de parentes de parlamentares até para o exterior (e o caso dos celulares), escandaliza muito mais pela surpresa que demonstraram os escandalizantes com o escândalo noticiado. As manobras, legais é bom que se diga, para dar um revestimento de decência e correção ao abusivo bem demonstram quanto se trata do que é tido como direito costumeiro, o direito de abusar. O erro não estaria no conteúdo, mas na forma. Por isso, suas excelências até abrem mão da mordomia, porém recompensando-se com o aumento dos vencimentos.

Não é só o Legislativo que vai além das pernas no uso da coisa pública. O Executivo também abusa. Muitos ainda se lembram de Lula transportando amigos dos filhos em avião do governo para viagem a Brasília e temporada no próprio Palácio da Alvorada, como se o palácio presidencial fosse hotel turístico, pago pelo povo para desfrute de parentes, cupinchas e cortesãos.

Foi o próprio Partido dos Trabalhadores que difundiu o rótulo de maracutaia para definir a pilantragem que se esconde por trás de ações que mostram o supérfluo e escondem o essencial. É relativamente recente o conceito popular de "mordomia" para designar os benefícios pessoais dos que, no poder, estendem por conta própria o elenco dos privilégios associados ao exercício da função pública. Existe até mesmo o hino nacional da mordomia, o Mamãe Eu Quero Mamá, do alagoano José Luís Rodrigues Calasans, o Jararaca, da dupla Jararaca e Ratinho. Embora mais antiga, a música só foi gravada em fins de 1936. É o hino do deboche brasileiro em relação aos que, no poder, ultrapassam o limite da decência no uso do que é público. É o nosso "quero meu dinheiro de volta" do neoliberalismo da sra. Thatcher. Mas aqui, ao contrário, muitos querem entrar na mamata, palavra brasileira que nos diz quão arraigada é entre nós a relação entre poder e desfrute.

O abuso no exercício do poder tem tido seus críticos e adversários, os arautos da decência no cumprimento de mandatos políticos. Mas a nódoa do abuso carimba todos os políticos, até os que não merecem, com a marca destrutiva da rejeição pública da instituição maculada.

A coisa entre nós é antiga e faz parte de uma sólida cultura política que não separa o público do privado. O que inclui a corrupção, o nepotismo, o uso descabido da coisa pública, o clientelismo. São práticas que desfiguram a representação política e reduzem nossa democracia ao meramente teatral, em que quem vota elege quem não foi votado. A cultura da mordomia é a cultura do desprezo pelo eleitor e pelo cidadão, pois é uma prática anticidadã que difunde a concepção de que a política é uma fraude e a representação política é uma trapaça, mesmo que isso seja injusto em relação a muitos políticos.

As práticas todas do clientelismo constituem forma de distribuir favores no varejo para desfrutar privilégios no atacado. Uma coisa legitima a outra, cooptando o eleitor. Essa é uma cultura de minimização do cidadão, forma de atá-lo ao cabresto de um poder que não reconhece nele a republicana condição de sujeito de vontade própria. Muita gente boa entrou nessa. Rui Barbosa, senador da República, foi aquele que disse: "De tanto ver triunfar as nulidades (...) de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto". Mas que desdisse o dito ao escrever um dia ao barão de Jeremoabo, no sertão da Bahia, pedindo-lhe que reservasse todos os votos da região para si. Votos de cabresto, o eleitorado na canga do mandão político, roubado em sua vontade política.

Os truques legais para manutenção da farra do poder têm sido vários. Na República Velha, os políticos inventaram a chamada verificação de poderes. Não bastava ser eleito pela suposta vontade popular. O próprio Legislativo tinha que legitimar o voto e assegurar, ou não, ao eleito que eleito estava. Quem pudesse representar risco ao poder estabelecido e às conveniências internas, que faziam da representação política não uma representação da vontade popular dos cidadãos, mas a legitimação da ordem e dos acordos estabelecidos, tinha pouca possibilidade de assumir o mandato. Foi necessária a Revolução de Outubro de 1930 para romper essa malandra distorção do poder.

A base dessas distorções estava no caráter estamental do poder político. Durante larguíssimo período, na Colônia, só podiam votar e ser votados os chamados "homens bons", limpos de sangue e puros de fé, os senhores de terra e de gente, os chamados "pais da pátria", os bem nascidos. A imensa massa do povo era mal nascida, gente sem qualidade, como se dizia, constituída de escravos indígenas, negros e de pessoas livres, mas consideradas degradadas pela mestiçagem, não raro recenseadas como bastardas. Mesmo os brancos que fossem oficiais de profissões manuais estavam interditados para o poder, porque se atribuía um caráter diabólico e degradante aos trabalhos feitos com as mãos, na ação de trabalhar e transformar.

O mundo do bem era o mundo da ordem, cada qual e cada coisa em seu lugar, estamental, as camadas sociais rigidamente superpostas por razões de nascimento. O mundo do trabalho era o mundo subversivo da desordem, da produção, da transformação de coisas em coisas diversas, o mundo da imaginação.

O que estamos presenciando no Brasil, nesses abusos cometidos no âmbito do poder, é justamente a contínua regeneração da sociedade estamental, a reestamentalização do Brasil, o contínuo restabelecimento de uma ordenação social baseada em privilégios. Mesmo que os privilégios já não sejam os do nascimento, como se vê na Presidência, na Câmara e no Senado, ficaram eles "grudados" nas instituições, de modo que quem lá chega, em vez lutar para revogá-los e democratizar a concepção do mandato político, trata de agarrar-se a eles.

Sentem-se mais eleitos para desfrutar do que para representar.


*Professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

STF, universalismo e representação

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Há, a meu ver, diferença relevante entre a crise do Congresso, culminando com as denúncias relacionadas às passagens aéreas, e a aparente crise do Judiciário que o enfrentamento entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa no STF aponta. No caso do Congresso, é possível dizer que se trata de mais do mesmo, não obstante os indícios a sugerir que as coisas teriam alcançado um ponto extremo, com a insensibilidade revelada até por parlamentares supostamente "éticos" (e não obstante, igualmente, a necessidade de alguma concessão aos que enxergam exagero nas cobranças da imprensa e da chamada opinião pública no que se refere às passagens). No caso da briga no STF, contudo, trata-se de algo sem dúvida grave, cuja aspereza, à parte os ingredientes pessoais envolvidos, explicitou de modo dramático divergências doutrinárias sobre os próprios princípios a serem invocados na atuação de uma aparelhagem judiciária que se tem mostrado, em diversos níveis, francamente ativista.

Não sendo viável aderir sempre a um princípio "deliberativo" que remete ao debate entre os cidadãos e à produção racional de consenso, ou mesmo exclusivamente ao expediente da representação e da regra da maioria como substitutos mais ou menos precários para aquele princípio, a sociedade democrática trata de criar nichos em que se privilegia um critério de competência e em que as decisões são deixadas a cargo de pessoas vistas como qualificadas para, ao decidir, ponderar com acuidade os argumentos relevantes - ou seja, pessoas supostamente capazes de se envolver com sucesso num hipotético debate de desfecho unânime.

O Judiciário é a esfera institucional mais nitidamente distinguida, em princípio, por essa orientação.

Ocorre, porém, que ele não pode escapar à impregnação por um componente de "representação", e essa impregnação surgiu com força no bate-boca dos ministros. Não se pode esperar que o cidadão aceite que alguém mais decida em seu nome (ou o represente) em questões nas quais seus interesses ou valores se acham em jogo senão com base na suposição de que esse alguém de alguma forma se identifica com ele e terá seu "melhor interesse" diante dos olhos, o que prevalece mesmo sobre a exigência de que o representante seja um perito dotado dos conhecimentos relevantes na área em que ocorre a decisão: num exemplo negativo extremo, os conhecimentos médicos de um Josef Mengele dificilmente seriam razão para que o prisioneiro num campo de concentração se entregasse confiante em suas mãos. Mas como esperar que essa cláusula de "representação" seja bem servida por órgãos judiciais numa sociedade complexa, composta de categorias diversas e potencialmente antagônicas, ou, em particular, marcada por intensa desigualdade?

Em abstrato, há uma resposta de certa forma simples: a da "representação virtual", em que o juiz, como o parlamentar de Edmund Burke, supostamente servirá melhor ao interesse de cada qual ao identificar-se universalisticamente com a coletividade como um todo e buscar decidir de maneira imparcial com os olhos tecnicamente competentes postos na lei. Embora de maneira não de todo consistente com o reclamo de uma equívoca responsabilidade "política" para o STF e seu presidente, o ministro Gilmar Mendes, como já notei aqui, tem falado de uma "representação argumentativa" que iria nessa direção - e que ecoa numa das primeiras manifestações desagradáveis do bate-boca da semana passada, a de que "esse discurso de classe não cola".

Contudo, cabe contar aqui com divergências, e a conexão entre particularismo e universalismo se mostra mais complicada do que sugere a perspectiva da representação virtual. O ativismo do STF, que tem tido em Gilmar Mendes um agente empenhado e que Maria Cristina Fernandes passava em revista em coluna de 3 de abril no Valor, tem dado alguns bons frutos (liberação da pesquisa com células-tronco, proibição do nepotismo nos três poderes, distribuição gratuita do coquetel contra o vírus da Aids), ao lado de outros discutíveis. Mas o desafio de conciliar o universalismo com a atenção para a diferença e a desigualdade dá origem a ativismos de outra orientação, que o presidente do STF tem hostilizado, mas cujo alcance não se esgota no desfrutável sentido de missão e no tosco esquerdismo de alguns integrantes dos vários escaninhos de nossa aparelhagem jurisdicional. O próprio desenvolvimento da socialdemocracia, como, entre muitos outros, assinala Thomas Meyer em volume recente ("The Theory of Social Democracy", 2007), mostra o desdobramento da lógica do universalismo em termos que levam à redefinição dos direitos civis e políticos fundamentais em direitos sociais, num embate que envolve reconstrução legal (e que inclui, vale registrar, episódios dramáticos de ativismo judicial). Sem falar de experiências de convívio de diferenças étnicas e identidades diversas, menos ou mais associadas com relações de desigualdade, em que a bem sucedida resposta institucional do chamado "consociativismo" tem imposto a "discriminação" deliberada contida em lidar igualitariamente, em termos legais e de representação, com os diferentes e os desiguais.

De toda forma, trata-se de problemas difíceis e fatalmente envoltos em conflitos sociais potenciais ou reais. Não é de estranhar, assim, que as tensões que temos visto nas relações do STF com outras instâncias do poder judiciário e do poder do Estado em geral acabem irrompendo dentro do próprio STF. E, em vez da aposta claramente excessiva na competência e na capacidade dos juízes para exercitar o equilíbrio adequado entre isenção social e política e compromisso "representativo", é com certeza preferível apostar no recurso explícito ao debate baseado na representação direta dos interesses e identidades no Legislativo, tratando de fortalecê-la e de contornar, até onde possível, as limitações e distorções nela envolvidas.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Por que falhou a globalização financeira?

Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Porque ela provoca crises de balanço de pagamentos, com graves consequências sobre as taxas de expansão do país

DESDE O início desta década, venho argumentando que a globalização financeira não promove o crescimento, mas prejudica os países em desenvolvimento. A crise global que estamos presenciando mostrou que prejudica também os países ricos -que o instrumento financeiro que tradicionalmente utilizaram para dominar os demais países voltou-se contra eles.

Ao fazer a crítica da abertura financeira, eu também criticava a política de crescimento com poupança externa, que, em vez de promover o aumento da taxa de investimento, aumenta o consumo. Recentemente, Dany Rodrik e Arvind Subramanian ("Why did financial globalization disappoint?") somaram-se a essa crítica e listaram pesquisas empíricas que confirmam as nossas. Entretanto, as razões que apresentaram para que a poupança externa não cause o crescimento são secundárias.

Corretamente, eles afirmam que o ponto de estrangulamento das economias em desenvolvimento não é a falta de poupança, mas de oportunidades de investimento. Foi isso, essencialmente, o que descobriu Keynes há 70 anos. Enganam-se, porém, em atribuir a falta de investimentos: 1) à existência de instituições desfavoráveis nos países em desenvolvimento que não garantem a propriedade e os contratos; e 2) às imperfeições de mercado, principalmente à falta de investimentos públicos e de investimento em educação (externalidades positivas) que viabilizem os investimentos.

Não vou perder tempo com o argumento neoliberal de falta de garantia aos investimentos. Se o argumento fosse relevante, não haveria nunca "catching up". Por outro lado, a referência à teoria dos pioneiros da teoria do desenvolvimento econômico dos anos 1940 quanto à necessidade de um conjunto de investimentos entrecruzados para viabilizar sua rentabilidade é interessante, mas ignora que essa teoria se aplica a países pobres, não a países de renda média.

Além disso, esses economistas não dispunham ainda da crítica ao crescimento financiado por empréstimos e investimentos diretos.

Minha crítica à globalização financeira e à política de crescimento com poupança externa se opõe à teoria econômica convencional e à dos pioneiros do desenvolvimento. Está baseada em raciocínio simples: quando um país apresenta um déficit em conta corrente (ou seja, está recebendo poupança externa) que é financiado por entradas de capital, sua taxa de câmbio se aprecia. Em consequência, duas coisas complementares ocorrem: a) os salários reais aumentam, cresce o consumo e cai a poupança interna; e b) diminuem as oportunidades de investimentos lucrativos orientados para a produção de bens comercializáveis internacionalmente.

Em consequência, a poupança externa substitui a interna, enquanto o país se endivida para consumir. Os influxos de capital transformam-se em consumo, inclusive os investimentos diretos, porque são compensados pela diminuição de investimentos nacionais. A taxa de substituição é geralmente alta; em certos casos, como no Brasil na segunda metade dos anos 1990, foi de 100%.

Em segundo lugar, os fluxos causam fragilidade financeira, elevando assim a dependência do país em relação aos credores externos e levando o governo local a adotar a política do "confidence building" e, assim, transferindo o centro das decisões sobre o interesse nacional para a metrópole. Finalmente, a globalização financeira e a política de crescimento com poupança externa provocam crises de balanço de pagamentos, com graves consequências sobre as taxas de expansão do país.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

Presença de Gramsci

Luiz Sérgio Henriques
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL

Antonio Gramsci esteve bem presente no debate brasileiro há cerca de 20 anos. As razões para tanto, esquematicamente, eram de duas ordens. Por um lado, o auge do eurocomunismo, trazendo a perspectiva de um comunismo democrático que socializasse não apenas a economia como também a política, devia atrair a atenção para o original político e teórico que estava na base de todo o projeto.

Também indiscutível, por outro lado, a demanda "interna" por idéias como as de Gramsci. Vivia-se o fim do período autoritário e era a hora do balanço dos anos de modernização conservadora a que o país fora submetido. Conceitos como "sociedade civil", "hegemonia", "bloco histórico", além de seu uso analítico, logo passaram a integrar o léxico da política brasileira. Claro, não haviam sido inventados por Gramsci, mas a marca gramsciana estava bem visível no modo como eram empregados.

Vieram os anos 80 e 90, e com eles um paradoxo. Gramsci quase desaparece como referência tanto do cenário acadêmico quanto do político. No Brasil, afora alguns trabalhos de mérito ligados aos nomes de Carlos Nelson Coutinho, Luiz Werneck Vianna ou Marco Aurélio Nogueira, Gramsci parece relegado ao esquecimento. E na Itália desaparece não só a perspectiva eurocomunista mas também o próprio partido de Gramsci. O PCI, como se sabe, tem hoje dois herdeiros: os democratas de esquerda do PDS e a Refundação Comunista, por sinal parceiros um tanto briguentos na atual coalizão de governo.

O paradoxo consiste no fato de que a maré que fez submergir Gramsci pode ser atribuída a todo um movimento que não seria descabido chamar de "gramscismo de direita". Em outras palavras, a direita neoconservadora, profundamente isolada nos anos do consenso keynesiano, preparou-se obstinadamente para uma longa "guerra de posições", agrupando-se em departamentos universitários ou em "think tanks", de resto muitíssimo bem financiados, nos quais pontificavam Hayek, Popper, Friedman, entre outras figuras de relevo. A solidão intelectual que no imediato pós- guerra, por exemplo, cercou o lançamento de uma obra como "O caminho da servidão", de Hayek, está em óbvio contraste com a hegemonia conquistada e hoje arrogantemente exercida por corifeus e discípulos do ultraliberalismo.

Nem de longe aqui sugerimos que a mudança verdadeiramente epocal de nossos dias foi decidida por finas escaramuças conceituais no Olimpo das idéias. O processo complicado que levou ao esgotamento da experiência soviética, à crise do compromisso social-democrata e à afirmação planetária do mercado capitalista -- aquele processo, evidentemente, nasce de mudanças no mundo da produção, de alterações no modo de acumulação, com a progressiva financeirização do capital e seu descolamento da vida produtiva. No entanto, o arsenal de idéias para explicar e gerir a nova situação estava substancialmente pronto, quando a partir de meados dos anos 70 os velhos equilíbrios entre classes sociais e forças políticas chegaram ao fim.

Gramsci, porém, resiste. Num plano imediato, não deixa de ser interessante que o próprio Fernando Henrique Cardoso volta e meia se refira ao pensador italiano como possível inspirador de uma esquerda moderna, que, a seu ver, faltaria ao país. A polêmica é boa: sem querer aprofundá-la, certamente haverá uma longa marcha -- nas instituições e na própria sociedade -- antes que amadureça uma esquerda plural, capaz de ser ao mesmo tempo, como dizia admiravelmente bem um lema caro ao velho PCI, força de luta e de governo. Mais duvidoso, contudo, é o verniz liberal-democrático, ou social-liberal, que nosso presidente parece querer passar num comunista como Gramsci.

O pensador italiano resiste ainda -- e muitíssimo bem -- a um teste muito apreciado na ciência social contemporânea: a quantidade de livros, ensaios e artigos sobre Gramsci não pára de crescer, mesmo em tempos tão bicudos. Em recente seminário na Universidade Federal de Juiz de Fora, Guido Liguori, redator-chefe da tradicional revista "Critica marxista", lembrava que a fortuna crítica de nosso autor, medida quantitativamente, tem poucos paralelos no mundo: trata-se de 12 mil títulos em cerca de 30 línguas. (Para os internautas, aliás, vale uma sugestão: a Bibliografia Gramsciana, organizada pelo historiador americano John Cammett, está em http://www.soc.qc.edu/gramsci)

E o dado qualitativo, decisivo, que suporta a idéia da nova vitalidade de Gramsci continua a ser o fato de que em sua obra, particularmente nos "Cadernos do cárcere", existem refinados instrumentos analíticos não só para a compreensão de sociedades complexas -- mas também para a indispensável tarefa de sua transformação.

Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.

Lendo Gramsci no contexto chileno

Ana Amélia M. C. Melo
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL


Antonio A Santucci. Gramsci. Santiago do Chile: LOM, 2005. 110p.

A publicação este ano, no Chile, de mais uma biografia política de Gramsci tem um interesse que configura a necessidade de refletir sobre o espaço da política atual chilena. Não é desconhecida a vasta produção de Antonio Santucci, recentemente desaparecido, sobre Gramsci e menos ainda a reconhecida importância da contribuição por ele dada à interpretação do pensamento do marxista italiano. Este livro, mais uma vez, repete a fina interação entre a vida do homem, sua produção intelectual e atividade política. Sucinto, não deixa de interessar a iniciados ou familiarizados conhecedores de Gramsci.

Se nestes tempos de exaltada fé no triunfalismo, a vida de um homem como Gramsci pode parecer a de um derrotado, é ela, no entanto, que vem revelar sua extraordinária força moral e rigor intelectual. Foi ele capaz de enfrentar, com sobriedade, sua prisão em 1926, ousando reelaborar a teoria marxista na solidão do cárcere [1].

A publicação da biografia política de um dos maiores pensadores marxistas deve, mais uma vez, servir como uma chamada à reflexão sobre o mundo político, sobre o lugar da política, essa atividade que originariamente significava, de maneira honrosa, interesse pela coisa pública e que hoje se vê carregada de sentido pejorativo. O interesse pelo pensamento de Gramsci na América Latina esteve sempre vinculado à originalidade de seu pensamento, ao apelo a uma política convocatória das massas e ao papel da cultura. Não é por acaso que a primeira publicação em língua estrangeira faz-se em Buenos Aires entre os anos de 1958 e 1962 [2].

Para Santucci, é possível destacar dois enfoques em Gramsci. O primeiro, na pauta diária dos comunistas por largos anos, é composto pelos textos iniciais do jovem Gramsci voltados para a análise das questões do Partido Comunista Italiano; o outro, que hoje em dia ganha relevo, é a do pensador sobre a política em sentido amplo. Se os primeiros textos eram mais circunstanciais, os da segunda fase demarcam uma maturidade e amplitude de conceitos que despontavam no cenário de suas discussões partidárias de juventude. Claro está que, pela própria concepção de Gramsci, estes dois campos da atividade humana são inseparáveis. Porém, no marco atual, com a falência dos partidos comunistas aos quais o pensamento de Gramsci esteve sempre vinculado e que, por isso, serviam de filtro para a interpretação de suas idéias, os conceitos sobre o significado da política e o seu affaire adquirem relevância.

No contexto globalizado das sociedades contemporâneas – especialmente no caso chileno, onde a transição política da ditadura para a democracia fez-se de modo lento e negociado em prol de uma estabilidade institucional e com altos custos para a sociedade civil –, o pensamento de Gramsci faz-se notar como uma reflexão capaz de iluminar de alguma maneira o mundo da política, de propor uma maneira alternativa e mais democrática de participação social.
A tônica do governo atual tem sido a do crescimento econômico. O preço da transição para a democracia foi a sustentação de um processo de autonomia da economia, que o presidente Lagos tem referendado nestes últimos anos. Neste sentido, a política tem ocupado um lugar, antes de tudo, coadjuvante. O que se afirma constantemente é a necessidade de despolitizar as questões referentes aos destinos do país. Esta impropriedade é surpreendente quando surge de um governo socialista, que se propunha romper com essa fissura chilena entre a sociedade e a política, herança da ditadura pinochetista.

É neste sentido que o pensamento de Gramsci recobra importância. A proposta, em primeiro lugar, da política como espaço essencialmente humano e, em segundo, de uma política com ampla participação das massas, de “ascenso civil dos estratos desfavorecidos da sociedade”, deve ser relembrada. Da mesma forma, é preciso destacar a importância da categoria de sociedade civil como esfera de organização com base no consenso espontâneo.

A ênfase de Gramsci na inter-relação entre o Estado e a sociedade civil, recusando a noção de Estado estritamente como governo e ressaltando a necessidade de desenvolvimento da sociedade civil, não apenas aponta para a atualidade de seu pensamento, como também, e mais do que isso, ajusta-se ao modo de organização das sociedades globais, aos novos movimentos sociais, às organizações por categorias, por gênero, etnias, etc.

A busca de uma alternativa ao processo de despolitização da sociedade chilena – que reiteradas vezes vem revelando baixos índices de alistamento eleitoral de jovens, bem como descrença nos tradicionais partidos políticos – pode ser encontrada na promoção do desenvolvimento da sociedade civil, na sua organização e amadurecimento. É através dela que é possível revolucionar mais uma vez, agora em nova chave, a sociedade chilena, rompendo a herança de silêncio e conformismo da ditadura. O Estado aqui, seguindo as proposições gramscianas, pode ocupar sua função ética de “educar a opinião pública e influenciar a esfera econômica” no sentido de uma ampliação da democracia.

Na concepção gramsciana a sociedade civil está em articulação com o Estado. No entanto, no cenário atual da globalização, e no caso chileno, este Estado tem priorizado a dinâmica deste processo global e, mais do que isso, tem se tornado refém dele [3].

Assim, a política tem se transformado em uma atividade que, se por um lado releva a preocupação do governo Lagos “pelo social”, por outro reduz os pobres à mera função de objetos de programas de superação da pobreza. Neste caso, a qualidade de sujeito da política é irrelevante, já que o governo e seus técnicos conhecem perfeitamente o que as pessoas desejam e precisam. Conseqüentemente, aos políticos “profissionais” e tecnocratas é encomendada a tarefa de administrar e resolver os problemas dos mais desfavorecidos.

A leitura de Gramsci, neste contexto, é mais do que esclarecedora. Ela pode questionar o domínio quase dogmático do modelo de globalização, propondo uma via mais humana e democrática, com o fortalecimento da cidadania e com a participação das massas.
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Ana Amélia M. C. Melo é historiadora e doutora pelo CPDA/UFRRJ, professora.de história da UFC
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Notas
[1] Melo, Gilvan. “Gramsci: um inovador”. Jornal do Comércio, Recife, 8 maio 1988, p. 7.
[2] Massardo, Jaime. "Presentación". In: Santucci, Antonio. Gramsci, cit.
[3] Manuel Castells. Globalización, desarrollo y democracia: Chile en el contexto mundial. Santiago de Chile: Fondo de Cultura Económica, 2005, p. 22.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

Gramsci

Gilvan Cavalcanti Melo
DEU EM GRAMCI E O BRASIL

Seremos marxistas? Existirão marxistas? Tolice, só tu és imortal. (Gramsci)

Em 27 de abril de 1937, morria aos 46 anos Antonio Gramsci, o mais importante, talvez o maior pensador da tradição marxista ocidental do século passado. A morte o derrotou no instante em que conseguira a liberdade: dois dias antes, recebera o documento com a declaração de que não havia mais qualquer medida de segurança em relação a ele, assinado pelo juiz do Tribunal Especial de Roma. Fora preso por ordem de Mussolini, em 8 de novembro de 1926. No processo-farsa montado pelo Estado fascista, o acusador pediu aos juízes sua condenação e, diante de Gramsci, sentenciou: “É preciso impedir este cérebro de funcionar”. Condenaram-no, é verdade, mas não conseguiram impedir que, de dentro da prisão, fosse escrita uma obra monumental.


Encarcerado, fez com que sua inteligência penetrasse na densidade sombria da realidade. Recusou a vaidade demagógica de uns e o dogmatismo degenerado de outros. Não pensou em formular uma nova e original concepção da práxis. Só mais tarde manifestou a consciência do valor de sua produção intelectual. Ousou, de dentro do cárcere, na solidão política, desafiar a ignorância e as banalidades stalinistas. Foi também por muito tempo negligenciado e desconsiderado inclusive por muitos companheiros, os quais deveriam tê-lo valorizado e amado mais intensamente. Em primeiro lugar, comovendo-se por aquele homem frágil, sofredor e perseguido. Em segundo, admirando sua coragem e combatividade. Em terceiro, admirando seu pensamento denso e profundo, bem como seus ensinamentos e a visão inovadora sobre a filosofia de Marx.


Nada mais justo, ao se completarem setenta anos de sua morte, do que recordar algumas contribuições daquele pensamento inovador na tradição de Marx.


Há uma controvérsia sobre o porquê da recusa de Gramsci em usar o termo “materialismo” ou “marxismo”. Parte dos estudiosos explica o fato como uma maneira de ultrapassar a rigidez da censura. Entretanto, é preciso ressaltar que aqueles termos estavam relacionados a uma leitura economicista, dogmática e ortodoxa de Marx. O símbolo mais conhecido era o Manual (ou Ensaio popular) de Nikolai Bukharin. Em defesa do novo conceito foi buscar o exemplo de Marx no prefácio de O capital. Ali estavam explicitados os termos “dialética racional” e “dialética mística”, em vez de “dialética materialista” e “dialética idealista”. O próprio Marx não quis se identificar com o materialismo vulgar.


Há outra convicção: o uso do termo “filosofia da práxis” foi uma consciente revalorização da atividade cultural e da dimensão ético-política. Ao mesmo tempo que travava uma batalha contra os dogmáticos, não deixou de considerar, também, que a filosofia da práxis deveria reconquistar a força criadora que marcava o pensamento moderno, mesmo que preconceituoso e desfavorável a priori em relação a Marx: Bergson, Sorel, Croce, Weber, Veblen, Freud, William James e, através de Spengler, também Nietzsche.


Seria interessante relacionar a crítica que Gramsci fez a duas correntes filosóficas existentes: uma ortodoxa, outra eclética. A primeira tendência era representada por Plekhanov, cujo ensaio mais conhecido era Os problemas fundamentais do marxismo. A obra não foi poupada por Gramsci, que a chamou de materialista vulgar e típica do método positivista. A segunda, que queria ligar a “filosofia da práxis” ao kantismo e outras correntes não positivistas e não materialistas, era representada por Otto Bauer, o qual chegou a afirmar que o marxismo poderia ser fundamentado e integrado por qualquer filosofia. Daí sua preocupação em colocar em circulação o pensamento de outro italiano: Antonio Labriola. Era o contraponto ao grupo intelectual alemão que exercia uma forte influência em determinada leitura de Marx, na Rússia. Por isso, Gramsci valoriza a idéia de Labriola de que a filosofia da práxis era independente de qualquer outra filosofia, sendo auto-suficiente.


Qual o núcleo central do pensamento gramsciano? A palavra-chave é o homem como bloco histórico, categoria que adquiriu de Sorel e a que deu outra dimensão. Discutiu o tema, contrapondo-se à teoria da dualidade, presente inclusive em Georg Lukács. E assim se expressou: “Deve-se estudar a posição do professor Lukács em face da filosofia da práxis. Lukács, ao que parece, afirma que só se pode falar de dialética para a história dos homens, não para a natureza. Pode estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um dualismo entre a natureza e o homem, ele está equivocado porque cai em uma concepção da natureza própria da religião e da filosofia greco-cristã, bem como do idealismo, que realmente não consegue unificar e relacionar o homem e natureza mais do que verbalmente. Mas, se a história humana deve ser concebida também como história da natureza (através também da história da ciência), como então a dialética pode ser destacada da natureza? Lukács, talvez, por reação às teorias barrocas do Ensaio popular, caiu no erro oposto, em uma forma de idealismo” [1].


Reafirmou sua concepção unitária do homem, quando escreveu: “É possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central. Neste sentido o verdadeiro filósofo é — e não pode deixar de ser — nada mais do que o político, isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte. Se a própria individualidade é o conjunto destas relações, conquistar uma personalidade significa adquirir consciência destas relações, modificar a própria personalidade significa modificar o conjunto destas relações” [2]. Aí também está presente uma leitura antipragmática, uma reelaboração inovadora da teoria do conhecimento expressa por Marx na décima-primeira tese sobre Feuerbach: “Os filósofos de limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo” [3]. Isto é, o conceito unitário: conhecer a realidade e transformá-la.


O bloco histórico está presente na relação entre intelectuais e não intelectuais, através dos conceitos de senso comum e bom senso. Gramsci evidenciou que todos os homens são filósofos, inconscientemente, e definiu os limites e as características dessa peculiaridade. Esta singularidade está contida, em primeiro lugar, na própria linguagem, que é um conjunto de conceitos com conteúdos; ou seja, em qualquer simples manifestação intelectual fica explícita uma concepção de mundo. Em segundo lugar, a religião popular, com todo o sistema de crenças, superstições, etc. E encontrou a chave para unificar, criticamente, essas duas instâncias. Resolveu a questão de maneira muito original. Estabeleceu uma relação entre a passagem do saber ao compreender e ao sentir, e, ao mesmo tempo e inversamente, do sentir ao compreender e ao saber.

Destacou que o popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe. O intelectual sabe, mas nem sempre compreende, em especial, sente. É indispensável, portanto, reconciliar senso comum e bom senso. Sem essa conexão entre intelectuais e a grande maioria da população, não se faz política.


Essa relação unitária perpassa todo o trabalho e a formação de outros conceitos e categorias. Está presente, também, no estudo da estrutura e superestrutura. Outro exemplo claro é quando se refere às “ondas” dos movimentos históricos: de um lado, chamou a atenção para o exagero do economicismo ou do doutrinarismo pedante, e, de outro lado, para o limite extremo de ideologismo. Essa separação poderia levar a graves erros na arte política de construir a história presente e futura e daria lugar a fórmulas infantis de otimismo.


Outra contribuição importante: estabeleceu uma distinção metodológica de dois momentos para a análise de uma situação concreta, circunstância ou conjuntura: a) um momento unido à estrutura objetiva, de acordo com o grau de desenvolvimento das forças materiais de produção: a formação dos agrupamentos sociais, suas funções e posição na produção. Essa análise permite dizer se, numa determinada sociedade, já existem as condições indispensáveis e suficientes para sua transformação; b) outro momento é a relação política de forças, a avaliação do grau de homogeneidade, autoconsciência e organização adquirido pelos diferentes grupos sociais. Na vida real, entretanto, considerou que estes momentos se confundiam reciprocamente.


E, com base na análise de conjuntura, procurou resolver duas questões apresentadas por Marx no “Prefácio” de Para a crítica da economia política: a) “uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente desenvolvida, e novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade”; b) é por isso que “a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou, pelo menos, captadas no processo do seu devir” [4]. Na sua enorme pesquisa fragmentada, apresentou e desenvolveu a categoria de revolução passiva. Inferiu-a dos dois princípios estabelecidos por Marx no “Prefácio” de 1859, reportando-a à descrição daqueles dois momentos que podiam distinguir a situação concreta e o equilíbrio das forças, com a máxima valorização do segundo momento [5].


A chave bloco histórico serviu-lhe para resolver um falso problema da separação entre Estado e sociedade civil, separação que só existe metodologicamente. Mas deixou muito bem explicitado que esta relação dialética exigia um reconhecimento do terreno nacional. Ao analisar as formações sociais pouco desenvolvidas e comparando com as mais desenvolvidas, chegou a uma conclusão importante: nas primeiras, o Estado é tudo, a sociedade civil é primitiva, gelatinosa, sem consistência; nas segundas, há entre o Estado e a sociedade civil uma relação de disputa, pendência, e, diante de qualquer tremor ou oscilação do Estado, imediatamente descobre-se uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado é apenas um posto avançado, por trás do qual se situa uma poderosa rede de proteção blindada.


A partir dessa leitura, reexaminou o conceito leniniano de hegemonia. E, entre os elementos força e consenso, deu ênfase aos ordenadores do sistema de hegemonia: a) as organizações e instituições políticas e culturais, nas quais esse sistema se materializou; b) os sujeitos, forças sociais e instituições que o construíram e o reproduzem. Mas demonstrou, também, que os sistemas hegemônicos não eram eternos, mas históricos, bem como salientou os processos e possibilidades de se construir novas hegemonias político-morais.


Através de uma série de problemas do pensamento filosófico examinados por Gramsci no início da década 30, foi possível antecipar as novas contradições das sociedades modernas, suas complicações, crises econômicas e morais, bem como a passagem do velho individualismo econômico para a economia programática, uma nova hegemonia. Vislumbrou as grandes transformações capitalistas. Em Americanismo e fordismo demonstrou sua enorme capacidade de olhar o mundo além do seu tempo.


A mesma coerência unitária esteve presente na sua visão de partido político. Recusou um tipo de organização oriental, burocrática. Iniciou a análise partindo do questionamento da necessidade histórica da sua existência e propôs algumas condições, entre elas a possibilidade de triunfo ou, pelos menos, a perspectiva de alcançá-lo. Mas, para isso, era necessária a unidade de três grupos de elementos: a) um elemento de homens comuns, cuja participação seria caracterizada pela disciplina e fidelidade; b) o elemento principal de coesão, que unificaria no campo nacional, tornando-o eficiente e poderoso, um conjunto de forças. Este grupo seria dotado de determinadas premissas, como criatividade, perspectiva e união; c) um elemento médio, que articularia o primeiro grupo com o segundo, colocando-os em sólido contato intelectual e moral.


Seu pensamento avançava por fragmentos, abandonados logo em seguida; em outros casos, aperfeiçoava-os. Não era uma obra sistemática. Por isso, há estudiosos e especialistas de sua obra que apresentam grande diversidade de interpretações: uns, com matizes, formas e graus diferentes, colocam-na no campo exclusivo do leninismo; outros interessam-se, fundamentalmente, pelas inovações que ele introduziu na análise das superestruturas; e ainda há quem o prefira como filósofo da sociedade industrial. A controvérsia é natural numa obra inconclusa.


O que é o homem? Para Gramsci, era a grande questão, a primeira e principal pergunta da filosofia. E questionou: como respondê-la? Sua conclusão foi resumida em ritmo de novas perguntas, mais ou menos assim: o que o homem pode se tornar? o homem pode controlar seu próprio destino? ele pode se fazer? ele pode criar sua própria vida? E concluiu que o homem é um processo — exatamente, o processo de seus atos. Em suma, a humanidade se reflete em cada individualidade e é composta de distintos elementos: a) o indivíduo; b) os outros homens; c) a natureza [6]. Isto é, em outras palavras, o bloco histórico. Só metodologicamente é possível fragmentá-lo.


Não deixou de polemizar com o pensamento mais rigoroso e mais fecundo que formava as grandes correntes de opinião. Assim o fez quando estudou o conceito de classe política de Gaetano Mosca, relacionando-o com o conceito de elite de Vilfredo Pareto. Foi Benedetto Croce seu principal interlocutor. O conjunto dos Cadernos do cárcere, na verdade, é um combate em duas frentes: contra o pensamento especulativo e idealista (Croce) e a chamada ortodoxia vulgar e positivista do marxismo.


E, hoje, as categorias gramscianas são reconhecidas e estudadas nos meios acadêmicos e políticos como instrumentos de análise da modernização conservadora brasileira e suas complexas superestruturas.


Sua vida, pelo modo, lugar e tempo de sua concretização, poderia ser designada como a de um homem derrotado. Na escuridão de uma época, fez valer a extraordinária força moral e o rigor intelectual do homem que, sem se deixar abater, fez de suas derrotas novas fontes de energia para recomeçar e avançar. Suportou seu destino com coragem e sobriedade intelectual, sem concessões ao vulgar e ao patético, conservando sempre o controle racional dos sentimentos. Diante disso, como resistir à tentação de falar sobre Gramsci e sua obra tão rica e fecunda, dando-lhe, ao mesmo tempo, o papel de herói num mundo cheio de vilões teóricos?


Referindo-se a Marx, Norberto Bobbio diz que, para garantir um lugar entre os clássicos, um pensador deve obter o reconhecimento de três qualidades: a) deve ser considerado como intérprete tão importante da época em que viveu que não se possa prescindir de sua obra para conhecer o “espírito do tempo”; b) deve ser sempre atual, no sentido de que cada geração sinta necessidade de relê-lo, e, relendo-o, dedique-lhe uma nova interpretação; c) deve ter elaborado categorias gerais de compreensão histórica das quais não se possa prescindir para interpretar uma realidade mesmo distinta daquela a partir da qual derivou essas categorias e à qual as aplicou [7]. Esta afirmação caberia também para Gramsci? Ninguém hoje duvida de que deva ser considerado um clássico na história do pensamento.


Finalmente, nessa pequena homenagem, não poderia faltar um trecho de sua carta de 10 de maio de 1928, enviada para a mãe: “Gostaria muito de abraçá-la bem apertado para que sentisse o quanto eu gosto de você e como gostaria de consolá-la por esse desgosto que lhe dei, mas não podia agir de outro modo. A vida é assim, muito dura, e os filhos algumas vezes têm de dar grandes desgostos às suas mães, se querem conservar a sua honra e a sua dignidade de homens” [8].


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Gilvan Cavalcanti de Melo, 71 anos, é membro efetivo dos Diretórios Nacional e Regional/RJ do PPS e do Conselho Editorial da revista Política democrática.
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[1] Gramsci, Antonio. Concepção dialética da história. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 173.
[2] Id., p. 40.
[3] Marx, Karl. “Teses sobre Feuerbach”. 2. ed. São Paulo, Abril (Col. Pensadores), 1978, p. 53.
[4] Marx, Karl. “Prefácio” de Para a crítica da economia política, ib., p. 130.
[5] Vianna, Luiz Werneck. A revolução passiva — iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 18-88.
[6] Gramsci, Antonio. Concepção dialética da história, cit., p. 39.
[7] Bobbio, Norberto. Teoria geral da política. A filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 114.
[8] Fiori, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 360.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.