sábado, 18 de junho de 2022

Entrevista | Christopher Thornhill: Risco autoritário

Historiador e pesquisador britânico de temas como populismo e direito constitucional diz que solidez das instituições barra pressões contra democracia

Reynaldo Turollo Jr. / Revista Veja

Em temporada no Brasil para ministrar um curso no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília, em homenagem ao ministro aposentado do STF Celso de Mello, o professor de direito da Universidade de Manchester, na Inglaterra, e conceituado pesquisador de temas como populismo e democracia, Christopher Thornhill, afirma que o presidente Jair Bolsonaro busca uma ruptura, mas não tem tido sucesso devido à solidez das instituições do país. “Sou otimista”, diz. Numa conversa presencial, ele falou a VEJA sobre as perspectivas das eleições no país, analisou a participação dos militares no governo Bolsonaro e explicou como os movimentos antidemocráticos vêm ganhando tração em vários países, inclusive no Reino Unido e nos Estados Unidos.

Como estudioso dos ataques que governantes fazem na atualidade contra a democracia, acha um exagero a análise que muitos setores fazem no Brasil de que Jair Bolsonaro ensaia uma ruptura institucional? De forma especulativa, pode-se dizer que ele vem tentando isso. Mas, até o momento, esse esforço não levou a uma suspensão do processo democrático no Brasil. Bolsonaro tentou realizar algum tipo de ruptura constitucional, mas a extensão foi limitada até aqui. Não acho que será bem-sucedido se insistir nesse caminho. E isso tem a ver com a robustez relativa das instituições do país. Sou um otimista.

Nos últimos tempos, o presidente vem aumentando o tom das ameaças, na tentativa de minar a confiança em nosso sistema eleitoral. Mesmo assim, o senhor continua otimista a respeito da capacidade de as instituições do país resistirem? Não concordo com a visão apocalíptica que muitas pessoas do seu país têm a respeito do estado da democracia no Brasil. Ao longo das últimas décadas, ela se solidificou e, em certos aspectos, se transformou numa democracia extremamente avançada, cujas estruturas institucionais se desenvolveram além da simples consolidação constitucional da democracia. São sinais de uma democracia relativamente robusta. Quando uma democracia nova como a brasileira muda de direção, como ocorreu na transição do governo de Fernando Henrique Cardoso para o de Luiz Inácio Lula da Silva, em algum momento tal processo desencadeia uma reação. E o Bolsonaro foi a reação.

Qual será a reação internacional se o presidente não aceitar o resultado das eleições, em caso de derrota? O Brasil é uma das democracias-chave do mundo. Tem um papel importante não só na América do Sul, mas em todo o Hemisfério Sul. Na hipótese de não aceitarem o resultado das eleições, a reação internacional certamente será de ultraje. Mas acho improvável chegarmos até esse ponto.

Oscar Vilhena Vieira*: Guardiões e soldados

Folha de S. Paulo

Não há nada que autorize nossos soldados a supervisionar o Supremo Tribunal Federal no exercício de sua missão de guardar a Constituição

A erosão das democracias constitucionais é normalmente precedida por um forte processo de descrédito de suas instituições.

Entre os alvos preferidos dos novos populistas autoritários encontram-se os tribunais e cortes constitucionais, responsáveis por defender, em última instância, as regras do jogo democrático. Quanto mais proeminentes, mais atacadas serão.

O roteiro é conhecido. Hugo Chávez ascendeu ao poder em fevereiro de 1999. Em menos de 10 meses conseguiu aprovar, por meio de um plebiscito, uma nova Constituição que lhe atribuiu extensos poderes, inaugurando o que David Landau chama de "constitucionalismo abusivo", com amplo apoio de militares.

Em 2004, após um longo período de embate com o Supremo Tribunal de Justiça, aprovou lei orgânica, aumentando o número de juízes do Supremo e alterando a regra para a nomeação e destituição de magistrados. O tribunal, desde então, assumiu uma postura servil ao regime.

Alvaro Costa e Silva: As coisas de que Bolsonaro mais gosta na vida

Folha de S. Paulo

Fugir do trabalho, descumprir as leis e destruir a Amazônia

Em 25 de janeiro de 2012 Bolsonaro estava fazendo a segunda coisa de que mais gosta na vida: fugir do trabalho. Deputado federal do baixíssimo clero, que nem em seus sonhos mais delirantes aspirava chegar à Presidência da República, ele pescava dentro da Estação Ecológica de Tamoios, entre Angra dos Reis e Paraty, descumprindo a lei —a primeira coisa de que mais gosta na vida— que proíbe anzol e isca no local.
Bolsonaro tentou dar uma carteirada, dizendo que tinha uma autorização especial para estar ali, mas não colou. José Olímpio Augusto Morelli, engenheiro agrônomo especialista em direito ambiental e servidor do Ibama havia 17 anos, nem sequer conhecia o deputado. Fez seu trabalho. Autuou e multou o infrator —fotografado dentro de um bote inflável com varas de pescar— em R$ 10 mil.

Cristina Serra: À memória de Bruno e Dom

Folha de S. Paulo

Estrutura da Funai está a serviço de uma política de extermínio

O dossiê "Fundação Anti-indígena", organizado pela INA (Indigenistas Associados) e pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), expõe com profusão de detalhes e documentação como a Funai, sob Bolsonaro, se transformou numa máquina de guerra contra os povos indígenas.

A estrutura do órgão está a serviço de uma política de extermínio, que impede novas demarcações e facilita a invasão dos territórios e a implantação de atividades predatórias e criminosas. O dossiê também mostra as perseguições contra funcionários que tentam resistir ao projeto de etnocídio, como foi o caso de Bruno Pereira.

Outro exemplo de acosso é o do indigenista Ricardo Henrique Rao. Em entrevista ao portal Sul21, ele conta que buscou asilo na Noruega, no fim de 2019, logo após o assassinato do líder indígena Paulo Paulino Guajajara, no Maranhão, e depois de denunciar a atuação de milícias (supostamente do Rio de Janeiro) associadas ao narcotráfico e a desmatadores em terras indígenas no estado. Sem o respaldo da Funai e sofrendo intimidações até da Abin, Rao decidiu deixar o Brasil.

Demétrio Magnoli*: Na Amazônia, a paisagem do crime

Folha de S. Paulo

A política de Bolsonaro é o fruto final de uma tradição de abandono de três décadas

Na cena do crime, entre duas curvas do rio Itaquaí, encontrou-se uma mochila, roupas, documentos pessoais e os restos mortais de Dom Philips e Bruno Pereira. Há, ainda, uma lancha submersa e dois suspeitos, pescadores, habitantes da comunidade ribeirinha de São Gabriel. Já a paisagem do crime, mais complexa, compõe-se de um espaço internacionalizado e de um tempo histórico. Suas balizas foram tortuosamente indicadas nas declarações de Bolsonaro e Hamilton Mourão.

O presidente classificou o triângulo do Javari como região "selvagem", onde "tudo pode acontecer", definindo a viagem do indigenista e do repórter como uma "aventura". O vice qualificou a região como "inóspita" e "perigosa", "afastada de tudo", na qual "uma serie de ilegalidades acontece", para lançar às vítimas a acusação implícita de irresponsabilidade. De fato, ambos estão dizendo que o Estado renunciou à soberania sobre extensas faixas da Amazônia brasileira.

No palco do teatro político, podemos encerrar o assunto proclamando que Bolsonaro tem "as mãos sujas de sangue de Dom e Bruno". O veredito fácil produz aplausos virtuais em redes sociais, inscrevendo-se no clima da campanha eleitoral. Alternativamente, existe o caminho de iluminar o percurso que fabricou a paisagem do crime.

João Gabriel de Lima*: Muito além da corrida de cavalos

O Estado de S. Paulo

Pesquisas ajudam na tomada de decisões, pois o voto útil é ferramenta legítima nas democracias

Em época de eleições, a reação dos políticos às pesquisas segue um padrão. Quem está ganhando compartilha os resultados em suas redes. Quem está atrás inventa teorias conspiratórias para minar a credibilidade dos institutos. Tais teorias costumam se basear num mito: o de que as pesquisas são capazes de prever os resultados das eleições. Se “erram”, é porque não prestam.

Trata-se de uma concepção equivocada. Pesquisas não são oráculos. “Elas trazem informações que vão além da posição de cada candidato na corrida de cavalos”, diz Thomas Traumann, analista de risco político e autor de relatórios para empresários e o mercado financeiro. Ele é o entrevistado no minipodcast da semana.

Através das pesquisas é possível entender o humor do eleitor – e saber, assim, qual o tema dominante em cada pleito. Nesta eleição, segundo Traumann, será difícil fugir da agenda econômica. “Quando mencionamos a economia, falamos na verdade em emprego e nos preços do supermercado”, diz ele – e não temas abstratos como teto de gastos ou âncoras fiscais.

Bolívar Lamounier*: Os cinco nomes do marechal

O Estado de S. Paulo

Se o enredo de 2022 for igual ao de 2018, vamos ser forçados a recordar que a situação de 1964, comparada à atual, foi só um festival de blefe

Naquele longínquo 31 de março de 1964, estagiando num jornal, eu sofria com a inexperiência e a timidez. Quando sobreveio o golpe, tomei coragem e perguntei a um político importante quem, ao ver dele, seria o presidente da República. A resposta veio em três segundos: o Exército só aceitará cinco nomes, Humberto Carlos de Alencar Castello Branco.

Para mim, todo golpe é ruim. Abomino todos os regimes de exceção. Mas antes ter um Castelo Branco, que pairava metros acima dos demais, que muitos outros que nada tinham entre as orelhas. Castelo garantia que a intervenção militar seria de curta duração, dois ou três anos para acabar com o comunismo e a corrupção e implantar algumas reformas na economia.

Pouco tempo antes, chegara ao Brasil o brasilianista Alfred Stepan, que iria fazer uma tese sobre os militares. Tornamo-nos amigos até o recente falecimento dele. Stepan admirava Castelo e não tardou a conseguir acesso à alta oficialidade. Mas, sobre a promessa de Castelo de manter o Exército no poder por um curto período, Stepan não acreditava que ele lograsse tal proeza. Outros oficiais-generais lhe haviam dito precisamente o contrário. Não devolveriam o poder aos civis em menos de 20 anos.

Bruno Boghossian: Blitz governista faz de Petrobras inimiga

Folha de S. Paulo

Com ameaça eleitoral da inflação, Bolsonaro fabrica rivalidade com a estatal

disparada dos combustíveis se tornou uma ameaça eleitoral tão perigosa que fez Jair Bolsonaro (PL) assumir de vez uma batalha com a Petrobras. Na blitz governista feita sobre a empresa nos últimos dias, o presidente e seus aliados passaram a tratar a estatal como uma adversária política.

O novo aumento de preços anunciado pela empresa nesta sexta-feira (17) reforçou a percepção de que o governo está sem saída na busca de soluções para o ciclo de altas que tira o sono de Bolsonaro. Nem mesmo a intensa pressão feita por ministros e parlamentares foi capaz de frear a decisão da Petrobras.

O próprio Bolsonaro já vinha tratando a estatal como inimiga em discursos e entrevistas, mas o tom ficou mais explícito. Na véspera do aumento, o presidente disse que um reajuste de preços seria sinal de um "interesse político para atingir o governo federal".

O comportamento é parte de uma conhecida tática de Bolsonaro. Quando o governo está enfraquecido ou não é capaz de elaborar respostas eficazes para um problema, o presidente costuma fabricar uma rivalidade no terreno da política.

Adriana Fernandes: A guerra do petróleo

O Estado de S. Paulo

Nessa guerra, o governo trata estatal como inimiga e o Congresso tenta tirar proveito

A declaração de guerra de Jair Bolsonaro e Arthur Lira à Petrobras, que envolveu até o ministro André Mendonça, do STF, deverá ter como principal desfecho a concessão de um subsídio para segurar o preço do diesel bancado pelo governo federal. Essa era a solução política que estava na mesa desde o início da guerra da Rússia com a Ucrânia.

O reajuste do diesel e da gasolina, comandado por um presidente da Petrobras demissionário e inconformado por ter perdido o cargo um mês após a posse, jogou por terra os planos do governo de fazer uma troca rápida na direção empresa para segurar uma nova alta de preços com janelas de reajustes mais esparsos. A medida seria combinada com o impacto da queda de tributos sobre combustíveis com o projeto do teto do ICMS aprovado esta semana.

Bolsonaro não escondeu os planos numa das declarações ao longo desta sexta-feira: “Com a troca de presidente podemos colocar gente competente para não reajustar”.

Ascânio Seleme: A Amazônia não é brasileira

O Globo

Presidente defende garimpeiros, madeireiros, grileiros e os que querem expandir a fronteira agrícola para o interior da floresta

São tolos e mal informados os que pensam que a Amazônia é brasileira. Não. A floresta não pertence ao Brasil ou Colômbia, Venezuela, Peru, Equador e Guianas. Sua imensidão territorial se estende por estes países e colônias, mas sua importância ultrapassa toda e qualquer fronteira. Parece que vai demorar muito ainda até que se perceba que para salvar o mundo será necessária uma política globalmente estruturada para defender a Amazônia. Pode ser tarde. Por ora, quem tenta proteger a floresta de seus algozes são homens bons como Bruno Pereira e Dom Phillips. E estes são sistematicamente sabotados por governos ou assassinados por pessoas com interesses contrariados.

O que Bruno e Dom buscavam não era uma utopia, um sonho, um ideal. Eles lutavam por uma causa possível. A Amazônia tem solução. A primeira e mais urgente é entender que, embora não se questione as soberanias dos países amazônicos sobre seus territórios, é fundamental que haja participação mundial na defesa da floresta. Participação com recursos, equipamentos e homens. Não se trata de um território qualquer. Ao contrário. A simples busca pelos corpos e do barco de Bruno e Dom mostrou como é intrincada e complexa a região. Tampouco se pode ignorar a sua dimensão.

Países como Brasil, Venezuela e Colômbia, que mal conseguem controlar o crime nas suas grandes cidades, tornam-se ainda mais impotentes diante da enormidade da floresta. Vejam os exemplos do tráfico e das milícias em comunidades como Alemão e Rio das Pedras, ou em Petare, a maior favela venezuelana. A Comuna 13, berço do traficante Pablo Escobar em Medellín, foi durante anos região inexpugnável pelo Estado colombiano. Se até aí os Estados nacionais ou locais são incapazes, imagine na Amazônia.

Carlos Góes: O populismo fóssil

O Globo

É natural que os gestores se preocupem com a inflação. Mas a saída dada pelos políticos, além de não ajudar, tem vários efeitos colaterais

O dragão da inflação voltou a dar voos no Brasil. Em maio, a inflação acumulada em 12 meses chegou a quase 12%. É verdade que, desta vez, as causas estruturais da inflação têm um grande componente exógeno. A reabertura da economia após a recessão do Coronavírus fez com que a demanda por bens e serviços aumentasse muito mais que a oferta destes.

Ao mesmo tempo, os preços das commodities dispararam. De acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), em maio, os preços dos alimentos subiram, em média, 29% em relação ao mesmo período do ano anterior; do petróleo, 65%; e do gás natural, 175%.

Os políticos, da direita à esquerda, apontam o dedo para o inimigo mais visível: o preço dos combustíveis. Esta semana, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que determina a redução da alíquota do ICMS que incide sobre os combustíveis – gerando um benefício fiscal que é equivalente a um subsídio setorial.

Mas há vários problemas neste tipo de medida.

Carlos Alberto Sardenberg: A vida tem preço. É cara

O Globo

Aconteceu antes da pandemia, mas o assunto permanece atual. Cenário: um amplo congresso reunindo juízes, advogados, funcionários da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), representantes de órgãos de defesa do consumidor, executivos dos planos de saúde e hospitais. Tema: as ações que cobravam das seguradoras tratamentos e remédios que não constavam do rol da ANS ou do contrato. (Na semana passada, o Superior Tribunal de Justiça voltou ao tema). Um desembargador conclui sua apresentação em grande estilo:

— Toda vez que cai na minha mesa uma disputa entre o segurado e o plano, eu decido a favor do segurado, porque a vida não tem preço.

Juízes de diversas instâncias têm decidido na mesma direção. No começo de 2019, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, sapecou:

— Saúde não é mercadoria, vida não é negócio, dignidade não é lucro.

Tratava-se de uma resolução da ANS que autoriza planos a cobrar uma coparticipação dos segurados em determinados procedimentos. A ministra, claro, decidiu contra os planos.

Pablo Ortellado: De quem é a culpa pela alta dos combustíveis?

O Globo

A Petrobras anunciou ontem mais um aumento, 5,2% para a gasolina e 14,25% para o diesel. O anúncio revoltou os consumidores. Em 2022, a gasolina já acumula alta de 31%, e o diesel de 68%. Bolsonaro culpa a direção da empresa, de um lado, e a conjuntura internacional, de outro. Lula responsabiliza os governos Temer e Bolsonaro por terem alterado a política de preços depois do impeachment de Dilma Rousseff. Mas os últimos três governos, Bolsonaro, Temer e Dilma, têm sua cota de responsabilidade.

O ponto de partida é o aumento do preço internacional do petróleo, fruto da guerra na Ucrânia e de outras circunstâncias mundiais. Mas, como o Brasil é um dos maiores produtores de petróleo do mundo, a oscilação dos preços internacionais não precisaria impactar tão diretamente o mercado doméstico. Para entender por que ficamos tão dependentes das variações do mercado externo, é preciso olhar para os erros dos últimos governos.

O fato mais determinante é a mudança da política de preços da Petrobras no governo Temer. O preço de paridade internacional (PPI) adotado em outubro de 2016 estabelece que o valor dos combustíveis é calculado levando em conta a variação do petróleo no mercado internacional, a flutuação do câmbio e os custos de importação. De acordo com essa política, a gasolina e o diesel são tratados como outras commodities (a exemplo de soja ou trigo), cujo preço ao consumidor doméstico acompanha as oscilações internacionais.

Eduardo Affonso: O cronistas x o articulista

O Globo

Num encontro virtual (em português, “live”) com os escritores Fernanda da Escóssia, Ana Karla Dubiela e Humberto Werneck, este levantou a hipótese de que, ultimamente, os cronistas brasileiros tenham botado um pé no articulismo.

Faz sentido. Afastados da alma das ruas, imersos na tragédia planetária e abduzidos pela beligerância política, teríamos sido impelidos a enfatizar os argumentos, com algum sacrifício da prosa porosa com que elaboramos a percepção do cotidiano.

Já passaram por este canto de página autores do porte de Nelson Motta e Luis Fernando Verissimo. Mezzo cronistas, mezzo articulistas: articula-se melhor com a mão sutil do cronista; o pulso do articulista ajuda a apreender com mais firmeza o espírito do tempo.

Hoje eu queria escrever sobre a estratégia torta (e torpe) de culpar a vítima. “Dom Phillips e Bruno Pereira sabiam que aquele lugar era perigoso”, lê-se por aí. Sabiam. Mas os culpados pela morte de Dom e Bruno — e, antes, pela de Tim Lopes, Dorothy Stang, Chico Mendes, Marielle Franco, Patrícia Acioli —foram os traficantes, milicianos, desmatadores, grupos de extermínio. As vítimas eram cidadãos que não se acovardaram. Não, não dá para dividir com o baleado a culpa de quem aperta o gatilho.

Bruno Araújo*: O papel do PSDB é servir ao país

O Globo

Desde seu surgimento, em 1988, o PSDB foi protagonista dos momentos fundamentais da nossa História. Com líderes que estiveram na linha de frente da redemocratização, contribuiu para a entrada do Brasil no terceiro milênio com estabilidade econômica, programas de transferência de renda, privatizações e modernização do Estado.

Na oposição a partir de 2003, o partido viu o então presidente Lula manter a política econômica e social tucana e, simultaneamente, o PT culpar o partido como responsável por uma suposta “herança maldita”. Acusação leviana, de que o PSDB não soube se defender adequadamente. Quando o PT se desviou dos parâmetros da governança tucana, o Brasil entrou numa espiral de crises de que até hoje não conseguiu se recuperar.

Por meio da “Nova Matriz Econômica”, os petistas tentaram reviver o Estado grande e ineficiente dos governos militares. As consequências foram recessão, desemprego, inflação e o maior escândalo de corrupção da História.

O PSDB também sofreu com acusações injustas que o machucaram. Os resultados da confluência entre a crise econômica gerada pelo PT e o movimento da antipolítica foram a eleição de Jair Bolsonaro, com nostalgia do regime militar, ameaças às instituições, confusões administrativas e bravatas diárias. A Executiva Nacional do PSDB sempre repudiou os excessos do governo atual. Fizemos do partido uma trincheira em defesa da democracia e das instituições. Ouso afirmar que nossos atos ajudaram a refrear ímpetos golpistas.

Marcus Pestana*: A Geleia Geral brasileira e o longo caminho pela frente

Nosso genial “Maestro Soberano” Tom Jobim cravou com razão: “O Brasil não é para principiantes”. Seria a tradução perfeita da “Geleia Geral” de Gil, onde o poeta ao desfolhar a bandeira no despertar da fagueira manhã tropical, encontra a geleia geral brasileira que os jornais anunciam. O cotidiano brasileiro e a síntese da alma de nosso povo estão longe se estarem retratados em Macunaíma, o herói travesso, preguiçoso, erotizado e sem nenhum caráter. A vida não anda nada fácil. Nosso povo dá duro para sobreviver. A aventura é permanente e, às vezes, parece estarmos enxugando gelo e marcando passo, sem sair do lugar.

A mais tensa e importante eleição das últimas décadas se aproxima. E o cenário é turvo e carregado de incertezas. Um caminhão de dúvidas nos assalta. São desafios ciclópicos à nossa frente. E uma nuvem cinzenta faz parecer que o problema está nas urnas eletrônicas, na tornozeleira do irrelevante deputado ou na presença de algum ministro no STF.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Gritaria farsesca

Folha de S. Paulo

Bolsonaro e Lira agravam crise enquanto encenam indignação contra alta dolorosa

O novo reajuste dos preços dos combustíveis representa, sem dúvida, um flagelo para a população brasileira, em especial, como deveria ser desnecessário dizer, para os estratos de renda mais baixa.

Mesmo antes da majoração anunciada nesta sexta-feira (17), os combustíveis já mostravam alta acumulada de quase 30% no período de 12 meses encerrados em maio, segundo o IBGE. O encarecimento não impacta apenas quem usa automóvel, ônibus ou caminhão —os custos do transporte são repassados às mercadorias e aos serviços.

Como a Folha noticiou, o peso de gasolina, diesel, etanol e gás veicular no IPCA, índice que serve de referência para a política do Banco Central, saltou de 5,4%, há dois anos, para 8,1% no mês passado. Dito de outro modo, os preços desse grupo de produtos têm subido acima dos demais, num contexto de inflação já elevada.

Os reajustes promovidos pela Petrobras, portanto, contribuem decisivamente para forçar o Banco Central a elevar os juros, o que dificulta o crédito, reduz o emprego e deprime a atividade econômica.

Tudo isso considerado, resta buscar as melhores maneiras de enfrentar o problema e minorar suas consequências nefastas para o bem-estar social. O presidente da República, infelizmente, está preocupado apenas com os efeitos da crise em suas chances de reeleição.

A esta altura, Jair Bolsonaro (PL) mergulha no ridículo ao inventar teses persecutórias e fazer pressão pública sobre a Petrobras.

Depois de três trocas no comando da estatal, está claro que a política de preços não obedece à vontade de chefetes de ocasião. A alta do petróleo é global, e não cabe a uma empresa listada em Bolsa de Valores fazer política de governo.

Memórias / Graziela Melo*: A fuga para Santiago

O sol estava se pondo por trás do Cristo Redentor quando deixei o Hospital da Lagoa, no Jardim Botânico. A Zona Sul do Rio de Janeiro foi ficando para trás, cada vez mais, pelo vidro do táxi enquanto eu seguia para Tiradentes com uma grande tristeza no coração. Foi nosso último dia de Brasil. Carregava comigo o Zé. Conseguira com a Drª. uma alta forçada, argumentando que se ficasse no Brasil morreriam os dois: o pai e o filho. Fugindo, salvaria o pai e o filho teria uma chance de sobrevida e o convívio da família. A Drª. entendeu. Cooperou. Fez extenso relatório com todos os detalhes da leucemia que abatia meu filho. Quantidade de glóbulos brancos e vermelhos, etc. Junto com a papelada entregou-me várias doses do remédio que deveria tomar durante a viagem. Até hoje sinto gratidão por essa mulher que, sem me conhecer, partilhou minha dor e, de sua parte fez o que pôde.

Apenas vinte e poucas horas entre a alta do Zé e o horário da fuga. Procedemos assim para ganhar tempo. Quando o Zé viesse a ter outra crise, o certamente ocorreria, queríamos já estar em Santiago com a segurança de assistência médica. Nesta mesma tarde contratamos um táxi para nos deixar na Rodoviária na madrugada seguinte a esta noite. Dissemos às crianças que passaríamos uma semana em Petrópolis para que nossa saída não chamasse tanto atenção dos vizinhos. Afinal, estávamos fugindo. Só quando atravessamos a fronteira, 72 horas depois de termos saído da Rodoviária Novo Rio, Giba se queixou de como Petrópolis era longe, foi que contamos a verdade.

Até agora não mencionei o fato de que minha mãe estava comigo. Viera de Recife para me ajudar. Quando comprei nossas passagens para Porto Alegre, comprei a dela de volta para Recife no mesmo dia e hora. Era mais uma carga emocional a me atormentar.

Antes de ir para nosso ponto de embarque rumo ao sul, deixei-a no ponto de ônibus para Recife e nunca mais pude esquecer seu olhar de despedida. Era como se dissesse: “adeus filha, até nunca mais”. Viajei com a amarga sensação de que fora a última vez que a vira. Mas não! Ela resistiu, como vocês verão em outro capítulo. Aproveitou bem os corredores da clandestinidade e via terceiros, me fazia chegar cartas ao Chile e a Cuba. Esperou meu regresso e só morreu seis meses depois da nossa volta ao Brasil. Valeu mãe!

A mãe de Gilvan, minha sogra, não teve a mesma sorte. Depois de vários anos internada numa clínica de doentes mentais, faleceu sem nunca mais haver reconhecido o filho que retornara do exílio e por quem tanto lutara no vai e vem das prisões e auditorias militares do regime. A guerreira foi embora sem saber que a guerra acabara. Só dois anos depois pudemos, junto com meus cunhados, acompanhar a retirada dos ossos. Valeu sogra!

(Janeiro, 1984.)

*Crônicas, contos e poemas, p. 34, Abaré Editorial /FAP 2008

Poesia | Joaquim Cardozo: Velhas ruas

Velhas ruas!
Cúmplices da treva e dos ladrões,
Escuras e estreitas, humildes pardieiros
Quanta gente esquecida e abandonada!

As varandas se alongam
Num gesto atento e imóvel de quem espreita
Rumor, sombra de passos que passaram,
Tato de mãos ligeiras invisíveis.

Velhas ruas!
Cúmplices da treva e dos ladrões,
Refúgio do valor desviado e da coragem anônima,
Sombra indulgente para os malfeitores,
De quem ocultais os crimes
E a quem dais generosas.

Nos momentos de paz um conselho materno.
Comovida e cristã sabedoria,
Espírito coletivo das gerações passadas,
Estes muros que a ferrugem da noite rói sugerem
O velado esplendor espiritual dos conventos,
O ritmo das coisas imperfeitas,
A volúpia da humildade.

Trêmula, dos lampiões
Desce uma luz de pecado e remorso,
E o cais do Apolo acende os círios
Para velar de noite o cadáver do rio.

In: CARDOZO, Joaquim. Poesias completas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p.4-5