segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Fernando Gabeira - O naufrágio da sensatez

O Globo

O caminho certo seria destinar o porta-aviões São Paulo a um estaleiro especial para que fosse descontaminado

No passado, alguém chamou Brasília de Ilha da Fantasia. Para mim, em certos momentos, parece a caverna de Platão, onde observamos sombras se movendo na parede, como o senador Do Val, e as confundindo com o mundo exterior.

Estava na caverna de Platão quando a Marinha afundou o porta-aviões São Paulo, carregado de amianto e outras substâncias venenosas, no litoral brasileiro.

O amianto é uma fibra natural altamente prejudicial à saúde humana. Durante anos, lutei pela sua proibição no Congresso, orientado pela doutora Fernanda Giannasi. Trouxemos especialistas e, sobretudo, pessoas cujo pulmão foi devastado pela fibra.

Miguel de Almeida - Diários da Flórida

O Globo

Diante das notícias de que Bolsonaro passa a maior parte do tempo dentro de casa, em Orlando, sem colocar o nariz na janela, imaginei que registre suas inspirações filosóficas e reflexões, vá lá, num diário:

 “Segunda-feira — Michelle voltou ao Brasil. Allan dos Santos me disse que estou engordando. Talvez seja porque deixei de fazer motociatas. Ele acha que a comida pode estar calibrada com calorias colocadas pelos petistas. Sempre eles! “Teus adversários querem te matar pela boca”, me cochichou. Perguntei em código ao Heleno o que acha da possibilidade de eu começar a fazer minha própria comida. Ele é um cara fiel. Respondeu também em código que me enviará a receita para fazer gelo.

Irapuã Santana - Reforma do Supremo sem golpismo

O Globo

É bom lembrar que existem propostas de modificações do STF sem chegar a uma ruptura constitucional e democrática

Após a ditadura militar, criamos coletivamente em 1988 uma nova Constituição, que tem uma característica marcante para tornar o Supremo Tribunal Federal (STF) uma das instituições mais importantes do país. Ela é muito extensa, disciplinando desde os direitos fundamentais do cidadão (artigo 5º) até a que unidade da Federação compete a administração do Colégio Pedro II (artigo 242).

Por isso, durante sua sabatina no Senado, o ministro Luís Roberto Barroso declarou que “a Constituição brasileira trata de tudo, só não traz a pessoa amada em três dias”.

Na prática, tal desenho — que promete muito dentro de um Estado em que nada concede — fez com que tudo pudesse ser judicializado, inclusive a própria política.

Marcus André Melo* - 'Casar com viúva'

Folha de S. Paulo

A governança regulatória mostrou-se resiliente no passado, mas há incerteza agora

A crítica populista à democracia representativa tem longo pedigree à direita e à esquerda. Os que atuam entre o povo e os governos são seu alvo: os checks and balances, agências reguladoras independentes, Bancos Centrais, Supremas Cortes, instituições supranacionais (União Europeia) etc. Tudo em nome de um majoritarismo iliberal e um suposto déficit democrático. Expressa-se no questionamento recorrente sobre quem teria eleito os titulares dessas instituições.

Enfim todos os agentes que se antepõem ou limitam a expressão majoritária da vontade popular, que o líder populista supostamente encarnaria. O líder é símbolo e se define pelo que é, não pelo que faz. Não há nesses modelos espaço para a "accountability" democrática: punir e premiar o desempenho de líderes populistas seria uma contradição em termos. Se falham, é porque forças ocultas lhes obstaculizam a ação.

Ana Cristina Rosa - Golpe de desigualdade

Folha de S. Paulo

Qual seria o epílogo se a Praça dos Três Poderes tivesse sido tomada por indígenas, por pessoas sem-teto, sem-terra ou por quilombolas?

O patamar de desigualdade da sociedade brasileira chegou ao absurdo de transformar os atos golpistas do 8 de janeiro, que resultaram na depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília, simultaneamente em atentado ao Estado de Direito e demonstração do quanto o país ainda está longe do ideal democrático.

O que se viu na capital federal há pouco mais de um mês foi a desigualdade materializada em tentativa de golpe e de atos de terror. E há de se reconhecer que uma sociedade extremamente desigual não é exatamente democrática.

Lygia Maria - O sexo das palavras

Folha de S. Paulo

Por não ser unanimidade entre especialistas e provocar ruídos na comunicação, linguagem neutra deve ser debatida

O STF declarou inconstitucional a lei de Rondônia que proíbe a linguagem neutra nas escolas. Segundo a Corte, de modo acertado, a lei viola a competência da União para editar diretrizes da educação.

A linguagem neutra visa adaptar o português para incluir pessoas não binárias –que não se identificam como mulheres ou homens e que, segundo a Nature, constituem apenas 1,2% da população no Brasil e 2% no mundo. Adjetivos como "bonito" e "bonita" viram "bonite" ou "bonitx", e, além de "ele" e "ela", acrescenta-se o "elu".

Ruy Castro - Vá ao sebo

Folha de S. Paulo

De muitos deles, conheço os funcionários, sou íntimo de seus gatos e até trato os ácaros pelo nome

Em coluna recente ("A irrelevância ao alcance de todos", 29/1), falei de livros típicos dos anos 60, como tratados "eruditos" sobre temas irrelevantes e vice-versa. E citei, entre outros, "A Ignorância ao Alcance de Todos", de Nestor de Hollanda, e "Tratado Geral dos Chatos", de Guilherme Figueiredo. Leitores perguntaram em que sebo procurá-los e alguém falou na Estante Virtual, o portal de comércio eletrônico com o acervo dos sebos do Brasil. Através dele, e por uma comissão, pode-se de fato achar qualquer livro —qualquer livro que exista num sebo, claro.

Denis Lerrer Rosenfield* - A extrema direita

O Estado de S. Paulo

A bolha da sua mentalidade furou; resta saber se haverá uma força capaz de reunir os despojos ou se o bolsonarismo ainda tentará se reorganizar

A experiência dos últimos quatro anos foi rica em ensinamentos, em particular o da extrema direita no poder. Embora no início o desenho não estava nítido, ganhou no decurso do tempo contornos precisos. O antipetismo foi a sua bandeira primeira, num amálgama de valores conservadores e liberais, dando progressivamente lugar a pautas antidemocráticas e antiliberais. O estilo bronco e, às vezes, engraçado de Bolsonaro foi se mostrando grotesco e mesmo cruel em sua campanha contra a vacinação, literalmente gozando da morte alheia, expondo sua falta completa de compaixão – algo, aliás, contrário aos valores religiosos que dizia defender.

O “jogo dentro das quatro linhas da Constituição” foi uma mera encenação com o intuito de minar a ordem democrática, de preferência via eleições, como se a democracia pudesse ela própria ser subvertida, paradoxalmente, por instrumentos eleitorais. A campanha contra o sistema eleitoral, o combate insano de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas e a contestação das eleições puseram a nu um líder de perfil claramente autoritário. Quem com ele não estava se tornava um inimigo, inclusive seus amigos de ontem. Uma vez que o malogro de seu projeto reeleitoral se esboçava, a tentativa mais explícita de golpe foi se apresentando como uma alternativa real.

Felipe Moura Brasil - A ideologia da conveniência

O Estado de S. Paulo

Não falta agora quem acene ao PT com a defesa do “controle social do Banco Central”

Os especialistas em dar legitimidade pretensamente técnica ou intelectual a interesses políticos geralmente conquistam, pela adequação a eles, os afagos, cargos e microfones que jamais conquistariam pela capacidade técnica ou intelectual, cujo exercício requer não só compromisso com a verdade, mas fibra moral para lidar com as reações hostis dos poderosos a ela.

Mesmo ideias oriundas de reflexões genuínas e debates autênticos podem ser adaptadas ou desvirtuadas para atender a demandas de outra natureza, escondidas sob o manto da teoria acadêmica.

Ricardo Steinbruch* - Armadilha dos juros elevados

O Estado de S. Paulo

Se quisermos competir globalmente, é determinante equalizar esse fator, pois o custo do dinheiro hoje no País inviabiliza qualquer investimento produtivo

Desde o advento do Plano Real, há quase 29 anos, em julho de 1994, quando nossa moeda passou a ser mais estável e vencemos o fantasma da inflação corrosiva, temos enfrentado, de modo paradoxal, juros muito elevados, não só os básicos, como os referentes aos empréstimos no mercado financeiro. As causas do problema são polêmicas e objeto de distintas explicações: insegurança jurídica; carga de tributos sobre as operações creditícias; dificuldade de retomada dos bens em garantia; histórico de inadimplência; desequilíbrio fiscal do setor público; e concentração bancária, entre outros fatores.

Bruno Carazza* - Os 10 mandamentos da produção de leis

Valor Econômico

Um pequeno manual para a elaboração de novas normas

O ano legislativo iniciou-se no dia primeiro de fevereiro e em apenas uma semana já haviam sido apresentados ao Congresso Nacional 441 projetos de lei ordinária e 22 de lei complementar.

É bem verdade que a função primordial de deputados e senadores seja discutir e aprovar normas, ao lado de fiscalizar o Poder Executivo, mas essa inflação legislativa tem um alto custo para a sociedade. Concebidas sem critérios, muitas vezes para dar resposta a algum acontecimento marcante ou para atender a pleitos de segmentos da sociedade, as novas leis costumam onerar cidadãos e empresas com obrigações excessivas ou criar despesas ou isenções que serão arcadas por toda a coletividade.

Alex Ribeiro - Meta de inflação pode não seguir o ano-calendário

Valor Econômico

Objetivo subiria de 3% para 3,5% e seria contínuo

A adoção de uma meta de inflação de longo prazo mais alta do que os atuais 3%, avaliada pela equipe econômica do governo Lula, poderá incluir uma alteração no horizonte de seu cumprimento. Em vez de metas para os anos-calendário, seria estabelecido um objetivo contínuo ao longo do tempo. A ideia, que foi revelada pela jornalista Julia Duailibi, no Jornal da Globo, não é exatamente nova. Há anos o Banco Central quer aperfeiçoar o regime de metas de inflação.

Pelo sistema vigente, o Conselho Monetário Nacional (CMN) escolhe as metas anuais, com um valor central e um intervalo de tolerância. Para 2023, é 3,25%, com um intervalo de tolerância de 1,5 ponto percentual para cima e para baixo. De 2024 em diante, será 3%. O aferimento do cumprimento da meta ocorre nos anos-calendário. O presidente do BC deve mandar uma carta ao ministro da Fazenda se explicando quando a inflação estoura o piso ou o teto.

Gustavo Loyola* - Política monetária sob o signo da incerteza

Valor Econômico

Causa estranheza que um governo que se diz preocupado com o social advogue uma inflação mais alta

As manifestações de Lula sobre o Banco Central e as pressões crescentes sobre a instituição por parte de integrantes da base política do governo colocaram a política monetária sob o signo da incerteza, que vem se juntar à incerteza preexistente sobre o regime fiscal brasileiro. Muito embora algumas manifestações oficiais descartem qualquer interferência no mandato do atual presidente do Bacen, na verdade a autoridade monetária está sob constante ataque de pessoas muito próximas ao governo, delineando um contexto de incerteza que afeta não apenas as expectativas como também o próprio dia a dia da política monetária.

Entrevista | Barbara Walter*: Regular redes é essencial para conter guerras civis

Cientista social diz que Trump e Bolsonaro deixaram EUA e Brasil mais próximos de conflitos

Uirá Machado / Ilustríssima / Folha de S. Paulo

Em entrevista, a cientista política Barbara Walter debate o recuo da democracia e a expansão de guerras civis no mundo, aponta que a radicalização política é impulsionada pelo modelo de negócios de big techs e sustenta que a situação do Brasil e dos Estados Unidos, afligidos por ataques golpistas, é frágil. Republicanos e bolsonaristas, diz, estão a caminho de se tornarem facções, o que demanda força de instituições e de outros partidos políticos

Duas tendências identificadas nos últimos anos preocupam acadêmicos em diversas partes do mundo.

A primeira, já bem mapeada pela literatura recente da ciência política, é o declínio da democracia, com a ascensão de políticos autoritários que tomam o poder sem recorrer a um golpe de Estado tradicional.

A segunda ganhou notoriedade com a publicação, no ano passado, de "Como as Guerras Civis Começam e Como Impedi-las" (Zahar). Escrito pela cientista política Barbara F. Walter, da Universidade da Califórnia em San Diego, não demorou a se colocar entre os mais vendidos nos EUA.

O motivo é simples: Walter dá um novo passo na trilha aberta por obras que já se tornaram clássicos, a exemplo de "Como as Democracias Morrem" (Zahar, 2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e "Como a Democracia Chega ao Fim" (Todavia, 2018), de David Runciman.

Em seu livro, Walter mostra que as guerras civis costumam estourar não em democracias nem em ditaduras, mas em países que estão passando de um desses sistemas para o outro, e que esses conflitos se tornaram cada vez mais frequentes no século 21, a ponto de o pico histórico ter sido atingido em 2019.

O que explica essa tendência? "Não sabemos ao certo, mas temos uma suspeita forte: a ascensão das redes sociais", afirma em entrevista à Folha.

Se ela diz, vale a pena prestar atenção, mesmo que se trate de uma suspeita. É que Walter acumula mais de 30 anos de estudos sobre guerras civis, incluindo a participação na Força-Tarefa sobre Instabilidade Política, criada pelo governo dos EUA nos anos 1990 para construir um modelo capaz de prever a erupção de conflitos em qualquer país.

Com base em sua experiência, Walter diz que Donald Trump, nos EUA, e Jair Bolsonaro (PL), no Brasil, aumentaram a chance de haver uma guerra civil nesses dois países.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

É desafio enorme provar a hipótese de genocídio ianomâmi

O Globo

Mesmo que se comprove a omissão do governo Bolsonaro, será difícil demonstrar que ela foi intencional

A tragédia ianomâmi suscitou nas instituições a reação necessária de busca por responsáveis. O ministro da Justiça, Flávio Dino, pediu à Polícia Federal a abertura de inquérito para apurar crimes ambientais, omissão de socorro e genocídio. O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou apuração de crimes ambientais, de desobediência, quebra de segredo de Justiça e também genocídio. Os alvos da investigação, ainda sigilosa, estão vinculados ao governo Jair Bolsonaro.

A acusação que desperta a maior controvérsia é a de genocídio, bordão entre opositores de Bolsonaro, ouvido também em declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se do crime mais hediondo, definido nos textos legais como atos cometidos “com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. No caso dos ianomâmis, está satisfeita a característica mais importante do genocídio: o caráter coletivo do alvo, um grupo étnico indígena.