sábado, 6 de abril de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Alta no crédito deve ser encarada com cautela

O Globo

Brasil não alcançará crescimento sustentado com base no consumo, mas no investimento e no equilíbrio fiscal

A alta no crédito ao consumidor vem sendo apresentada como uma das notícias econômicas positivas do primeiro trimestre. A concessão de empréstimos para comprar bens cresceu 18% no período de 12 meses encerrados em fevereiro, maior patamar dos últimos cinco anos. Embora haja bons motivos para comemorar o feito, o governo deveria tomar cuidado para não chegar a conclusões erradas. Em administrações anteriores do PT, acreditou-se que bastava irrigar a economia com dinheiro barato para fazer o PIB crescer. O que se viu foi uma expansão insustentável. Se não aprender com os erros do passado, o governo arrisca cair na mesma armadilha.

O recente salto no crédito tem múltiplas causas. Com a queda da inflação e dos juros, os consumidores hoje pagam menos pelos empréstimos. O desemprego em queda, a renda em alta e o programa Desenrola permitiram que sustassem velhas dívidas e pudessem contrair novas. Quatro em dez brasileiros dizem estar dispostos a ampliar gastos com bens como móveis ou eletrodomésticos nos próximos 12 meses, segundo pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Os efeitos deverão se fazer sentir mais no segundo semestre. Esse é um dos fatores que têm elevado as previsões de crescimento da economia para 2024. Analistas ouvidos pelo Banco Central preveem hoje um PIB 1,9% maior neste ano (há quatro semanas, a previsão era 1,8%).

Oscar Vilhena Vieira - Jurisprudência flutuante

Folha de S. Paulo

Num ambiente polarizado, disputa entre Congresso e Supremo não é ingênua

No Estado de Direito, os réus não escolhem os juízes que irão julgá-los, nem os juízes podem escolher os réus que irão julgar. Para evitar privilégios e arbitrariedades, o "juiz natural" deve estar previamente estabelecido pela Constituição ou pela lei.

Na última semana, assistimos a um novo episódio da interminável batalha dos Poderes, agora em torno da definição do chamado foro por prerrogativa de função. A extrema direita, implicada na tentativa de golpe, resgatou uma antiga PEC com o objetivo de esvaziar a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar os membros do Parlamento.

Na trincheira oposta, ministros do Supremo aproveitaram o julgamento de um habeas corpus em favor de um senador acusado da prática de rachadinha para revisitar uma decisão tomada pelo Supremo, em 2018, que estabelecia critérios para o exercício da jurisdição especial por parte do tribunal.

Alvaro Costa e Silva - O espetáculo da morte estúpida

Folha de S. Paulo

No Brasil, morre-se de calçada, poste e selfie

"Viver é muito perigoso." É o mote repetido insistentemente no monólogo de Riobaldo no "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Não deixa de ser uma tirada à conselheiro Acácio, como notou Nelson Rodrigues, mas revela uma realidade inescapável. "São demais os perigos desta vida", confirmou Vinicius de Moraes no "Soneto do Corifeu". Conselhos desnecessários para quem habita qualquer canto do Brasil.

Não é só a guerra entre bandido e polícia que mata gente inocente. Estão aí, soltas, as pedras portuguesas. Apesar da beleza, elas são conhecidas entre os cariocas como pedras assassinas. Desapareceram os mestres calceteiros, que consertavam com perícia as ondas do calçadão de Copacabana ou uma simples passagem. O poeta Hermínio Bello de Carvalho, que acaba de completar 89 anos, levou um tombo em Botafogo, feriu a vista, lesionou a coluna e está no estaleiro.

Pablo Ortellado - A convicção que cega

O Globo

Está mais do que na hora de baixar a fervura e lembrar que, do outro lado, também existem pessoas de boa-fé. Essa intolerância toda não apenas fratura o país, também nos deixa cegos e surdos

Na véspera da Páscoa, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) publicou uma imagem no perfil do grupo no Instagram. Nela, Jesus aparece crucificado enquanto três soldados romanos olham para a cruz e comentam: “Bandido bom é bandido morto”. A publicação gerou uma ruidosa controvérsia na internet, com a direita acusando o MTST de chamar Jesus de bandido. O conflito de interpretação na base da celeuma lembra outra controvérsia, no auge da pandemia, quando bolsonaristas criticando o passaporte vacinal foram acusados de promover o nazismo.

Logo depois da publicação do MTST, o senador Ciro Nogueira, do PP, disse numa rede social que o MTST comparava Jesus “com um ‘bandido’”. O presidente do PL, Valdemar Costa Neto, afirmou que Boulos “prega intolerância religiosa no dia mais triste da tradição cristã”. A deputada Carla Zambelli, que o MTST “vilipendia a fé cristã”. O pastor Silas Malafaia, que a esquerda “odeia o cristianismo”. E o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, chamou a imagem de “sacrilégio”. Uma enxurrada de comentários de cidadãos de direita nas mídias sociais foi na mesma linha.

Eduardo Affonso - Pequena revolução copernicana

O Globo

Passou da hora de a questão política deixar de ser posta em termos de esquerda x direita, e mudar o eixo para democracia x autoritarismo

O maior estrago do 8 de Janeiro não foi nas obras de arte (uma centena delas, perdidas para sempre) ou nas vidraças da Praça dos Três Poderes, mas na crença de que, escaldados por 21 anos de ditadura, estaríamos vacinados contra a sedução do autoritarismo. Não estamos e — humanos, demasiadamente humanos que somos — talvez nunca venhamos a estar.

Apesar das provas incontestáveis de que a democracia produz mais desenvolvimento (“O PIB de longo prazo aumenta cerca de 20-25% nos 25 anos seguintes a uma democratização”, concluiu o economista Daron Acemoglu em 2019), continuamos fascinados pelo mito do bom tirano, do outsider que varrerá o lixo da política tradicional e nos conduzirá, por decreto, a pastos mais verdejantes. Ignoramos o que a História está rouca de contar e, como cantou Lupicínio, insistimos em ir ao inferno à procura de luz.

Carlos Alberto Sardenberg - O crime é global

O Globo

Nos EUA, a Trafigura confessa suborno, pede desculpas e paga multa. Por aqui, grandes empresas ‘desconfessam’ e ganham cancelamento de multas

O presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná, Sigurd Bengtsson, ainda tentou: não estamos julgando a Lava-Jato, disse na abertura do processo de cassação de Sergio Moro. Se é assim, o relator do caso, desembargador Luciano Carrasco Falavinha Souza, concluiu, em longo e detalhado voto, que as denúncias de abuso de poder econômico eleitoral, fato determinado, estão muito perto do ridículo. Absolveu Moro, mantendo, pois, o mandato de um senador eleito por quase 2 milhões de votos.

O segundo desembargador a votar, José Rodrigo Sade, recém-empossado e indicado por Lula, aceitou as denúncias apresentadas pelo PL de Bolsonaro e pelo PT de Lula e condenou Moro. Entendeu que o senador gastou dinheiro de maneira irregular em suas campanhas e pré-campanhas.

Fora do ambiente estrito dos tribunais, todo mundo sabe que o caso é de vingança. O que, além disso, poderia unir bolsonaristas e petistas? Algum princípio político? Ético? Uma tese jurídica defendida ao mesmo tempo pelo advogado Guilherme Ruiz Neto, representando o PL, e pelo grupo petista Prerrogativas?

Mauro Vieira* - As boas notícias que vêm da Ásia

O Globo

Em 2023, o Brasil exportou US$ 2,1 bilhões para Bangladesh, cifra que se aproxima das vendas para a França

O crescimento destacado do comércio exterior brasileiro nas primeiras duas décadas do século XXI, que levou as exportações de US$ 58,2 bilhões em 2001 para US$ 339,7 bilhões em 2023, tem múltiplas dimensões e não pode ser explicado apenas pelas obviedades mais conhecidas. Entre elas estão o desempenho invejável de setores exportadores, como o agronegócio e o mineral, e o crescimento expressivo da participação da China como parceiro comercial do país, com compras de US$ 104 bilhões, pouco menos de um terço do total exportado. Outros dados ajudam a explicar o fenômeno.

Em período histórico que coincide com o recrudescimento do protecionismo comercial dos países desenvolvidos, com a estagnação de negociações de acordos de livre-comércio, com o enfraquecimento da Organização Mundial do Comércio (OMC) e do multilateralismo comercial, outras oportunidades vêm sendo bem aproveitadas pelos agentes econômicos brasileiros.

Miguel Reale Júnior* - Olhar o futuro

O Estado de S. Paulo

Nada melhor para comemorar os 80 anos do que se preocupar com o futuro, com evidente prepotência, sem dúvida, mas que me faz sentir vivo como se tivesse 20

Este mês completo 80 anos. É inevitável olhar para trás e indagar do que me arrepender, pois deveria ter dito sim quando disse não, e vice-versa. Mas lembro o ensinamento do poeta Miguel Torga: cadáver é o que não fui. Então, é melhor enterrá-lo.

Saudades brotam de familiares e amigos que se foram nesta longa estrada. Todavia, o caminho para superar a dor das ausências é olhar o futuro. Para minha alegria, ex-alunos e colegas resolveram ter esta data natalícia como oportunidade para pensar questões atuais. Promovem, portanto, na minha cara Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, nos dias 25 e 26 deste mês, debate para analisar quais medidas tomar em face do avanço do crime organizado e da inefetividade da Lei de Execução Penal, editada há 40 anos, de cuja elaboração participei.

Eduardo Leite* - Rigor e evidências contra o crime

O Estado de S. Paulo

Assim como enfrentar a criminalidade exige atuação em múltiplas frentes, debate sobre o aperfeiçoamento da legislação penal proposto pelo Cosud precisa superar julgamentos precipitados

Muitas vezes açodado, o debate público é marcado, entre outras distorções, por um fenômeno que o psicólogo e economista Daniel Kahneman, vencedor do Nobel de Ciências Econômicas, chamou de “ilusão de compreensão”. O processo de fazer julgamentos precipitados sobre questões complexas com base em impressões superficiais. Essa ilusão deturpa a realidade e leva, invariavelmente, à incompreensão, sobretudo em temas delicados como a segurança pública.

As propostas de aperfeiçoamento legislativo elaboradas pelo Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud) para fortalecer o combate à criminalidade foram alvo de críticas, a meu ver, alimentadas por esta pressa descrita por Kahneman. As medidas foram tratadas como se fossem reação populista e isolada à “suposta” legislação penal branda. O “superficial” encobriu o “complexo”, porque, na visão dos governadores, nenhuma ação isolada irá resolver o problema, assim como nenhum governador pretende solucionar questões locais com apenas uma medida.

José Eduardo Agualusa - Para onde vai Israel?

O Globo

A crueldade dos dirigentes israelenses (muitos dos quais defendem a expulsão dos palestinos de Gaza) horroriza o mundo e larga parte das comunidades judaicas fora de Israel

O chef espanhol José Andrés, fundador da World Central Kitchen (WCK), especializada em distribuir ajuda alimentar a vítimas de conflitos armados, acusou o Exército israelense de ter assassinado deliberadamente sete funcionários da organização. Segundo Andrés, o atual governo de Israel trava uma guerra contra a Humanidade.

Andrés não é a única pessoa a pensar assim. Um pouco por todo o mundo cresce a percepção de que Israel está em vias de se transformar num estado terrorista.

Nos últimos dias, além do assassinato dos funcionários da WCK, Israel atacou a embaixada iraniana em Damasco, causando 11 mortes. Por outro lado, em mais uma manobra que confirma a deriva totalitária em curso, o Knesset, parlamento israelense, aprovou legislação que visa a silenciar a Al-Jazeera e outros canais noticiosos internacionais críticos do regime. Tudo isto enquanto prossegue a matança em Gaza.

Demétrio Magnoli - Hobbes passeia em Gaza

Folha de S. Paulo

Governo israelense estabeleceu equivalência entre civis palestinos e o Hamas

Naquele 10 de outubro, dia do sangue, do sequestro e do estupro, Israel ganhou a oportunidade de livrar a si mesmo da ignomínia da ocupação sem fim e, ao mesmo tempo, de libertar os palestinos da maldição do Hamas. No lugar disso, Netanyahu, o rei devasso de Israel, escolheu a perversidade. Hobbes passeia em Gaza.

"Israel está em guerra com o Hamas, não com a população de Gaza", afirmou o general Herzi Halevi, desculpando-se em nome das forças armadas que comanda pelo bombardeio contra um comboio humanitário da WCK (World Central Kitchen). Não é verdade: o padrão de violações das leis de guerra prova que o governo israelense estabeleceu uma equivalência entre os civis palestinos e o Hamas. Na prática, tudo que se move no diminuto território é visto como alvo legítimo.

José Pastore* - A inteligência artificial e o seu emprego

Correio Braziliense

A IA destrói e cria oportunidades de trabalho. Por isso, o mais importante é saber em que medida os seres humanos serão capazes de executar os nascentes trabalhos modernos

As notícias sobre o impacto destrutivo da inteligência artificial (IA) no emprego são cada vez mais alarmantes. "Perguntado", o ChatGPT-4 indicou cerca de 80 profissões que estariam com os dias contados. Fisioterapeutas, engenheiros civis e controladores de tráfego aéreo teriam uma sobrevida de 60 meses. Meteorologistas, gestores de energia e educadores físicos, 48 meses. Farmacêuticos, corretores de imóveis e contadores, 36 meses. Agentes de viagem, 12 meses. Atendentes de telemarketing, seis meses. Para aquele Chat, algumas profissões já teriam morrido — tradutor, redator e revisor de textos.

Marcus Pestana* - Alguma coisa está fora da ordem

“Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial”, disse o poeta baiano. Ao se lançar um olhar sobre o mundo contemporâneo, neste início de Século XXI, é inevitável que venha à tona um sentimento de estranhamento e temor. A esperança de que uma boa governança global compartilhada, a partir da quebra de fronteiras nacionais rígidas, geraria um mundo melhor, parece uma utopia cada vez mais distante.  

Benjamin Netanyahu dobra a aposta, namora com o perigo extremo, expõe Israel a riscos imprevisíveis, numa escalada insana, ao bombardear o consulado do Irã em Damasco, na Síria. Não bastando a guerra  sangrenta na Faixa de Gaza em resposta às atrocidades terroristas do Hamas no 7 de outubro, o governo israelense aguça a instabilidade na região ao atacar um terceiro país no território de um quarto. É difícil enxergar qualquer traço de racionalidade na decisão irresponsável do primeiro-ministro Netanyahu.

Luiz Gonzaga Belluzzo* - McCkloskey e o Valor-Trabalho

CartaCapital

Suspeita-se que a leitura de ‘O Capital’ provocaria apagões na cachola liberal-positivista da economista

Imagino que o leitor de ­CartaCapital, em sua busca de opiniões divergentes, se entregue à contemplação de matérias e artigos dos jornais brasileiros e forâneos.

Em minha diária peregrinação na busca de concepções e opiniões que divergem das minhas, deparei-me com o artigo de Deirdre McCkloskey. Em poucas linhas, a professora emérita da Universidade de Illinois cuida de desacreditar a Teoria do Valor-Trabalho de Karl Marx:

“Na década de 1870, os economistas de repente perceberam por que a teoria do trabalho está totalmente errada. A economia e as opções econômicas são sempre sobre decisões atuais que causam resultados futuros. Não têm a ver com a história. Você não pode ‘decidir’ sobre o passado. Os custos fixos já foram gastos. Economia tem a ver com o que você deve fazer a seguir. Portanto, a teoria do valor correta é o ‘produto marginal’, isto é, o produto futuro que obtemos de um pouquinho mais de trabalho, capital e terra. Os insumos já gastos não entram na conta. Marx morreu em 1883, depois da ‘Revolução Marginal’. Mas ele não reconheceu isso, deixando seus devotos seguidores no escuro, até hoje”.