Raquel Landim, de São Paulo
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Durante a conferência de Bretton Woods em 1944, que estabeleceu a nova arquitetura financeira global no pós-guerra, o negociador-chefe do Reino Unido, John Maynard Keynes, estava cada vez mais frustrado com a arrogância dos americanos liderados por Harry Dextler White. Uma anedota da época conta que, para confortá-lo, o embaixador britânico Lord Halifax disse: "Os americanos podem ter as bolsas de dinheiro, mas nós temos todo o cérebro."
De nada adiantou a pretensa superioridade intelectual inglesa, pois o Fundo Monetário Internacional (FMI) nasceu como desejava White. Prevaleceu a posição dos Estados Unidos de uma instituição menor que aplicaria seus recursos seletivamente. Também venceu a ideia de utilizar as moedas nacionais nos empréstimos, principalmente o dólar, em vez de um novo ativo proposto por Keynes, o "bancor".
O FMI adotou como mandamento a defesa de White aos preços estáveis e à política monetária disciplinada. Com o passar do tempo, tornou-se ainda mais conservador que seu mentor, pois White compartilhava com Keynes a crença em políticas anticíclicas para manter o nível de emprego na crise. Mas essa configuração está se modificando. Passados 65 anos de sua criação, o fundo é obrigado pela mais grave crise econômica desde a Grande Depressão na década de 30 a mudanças que podem levá-lo mais perto de suas origens keynesianas.
A reunião de primavera do FMI, nos dias 24 e 25 em Washington, promete ser um bom teste para sua suposta guinada heterodoxa, pois ainda há muitas questões em aberto. De onde virá o dinheiro para reforçar o seu caixa? Em vez de cobrar austeridade fiscal, o fundo será capaz de incentivar gastos? O FMI vai efetivamente atuar como regulador e supervisor do sistema financeiro? Os emergentes realmente terão mais poder na instituição? "Se até o fim do mês não tiver nada concreto, podemos colocar as barbas de molho", diz Rubens Ricupero, ex-secretário geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad).
Após o encontro do G-20, grupo que reúne as maiores economias do mundo, em Londres na semana passada, o diretor-gerente Dominique Strauss-Khan comemorou: "O FMI está de volta." Não restam dúvidas de que ele está certo. A crise recolocou o fundo no centro da cena internacional depois de um período de duras críticas, corte de gastos e até de objeções à sua existência. Os líderes mundiais prometeram triplicar o caixa do FMI para US$ 750 bilhões e autorizaram mais US$ 250 bilhões em Direito Especial de Saque (DES), uma espécie de moeda da instituição.
Foi a principal decisão da reunião do G-20 e o único tema sobre o qual foi possível chegar a um consenso. Os países emergentes, como China e Brasil, se comprometeram a colocar dinheiro no fundo (embora ainda não tenham especificado valores), mesmo antes de ser atendido seu pleito de maior poder e participação na instituição. Para essas nações, é muito importante restabelecer os fluxos de capital no mundo, e essas mudanças institucionais levam tempo. Foi estabelecido o prazo de janeiro de 2011 para a conclusão da reforma das cotas do FMI. Os emergentes reclamam, com razão, de que estão sub-representados. A China, por exemplo, possui a mesma fatia da pequenina Bélgica.
O FMI também ganhou múltiplos papéis no combate à crise. O G-20 solicitou que a instituição monitore a implementação das políticas fiscais adotadas pelos países; que emita alertas prévios contra novas turbulências (em conjunto com o Fórum de Estabilidade Financeira); e seja parceiro dos países na discussão sobre quais políticas devem ser adotadas. Além, é claro, de utilizar seus recursos para aumentar a liquidez mundial e para ajudar os países emergentes afetados pela crise, especialmente os de menor desenvolvimento relativo.
A "ressurreição" do FMI já havia começado um pouco antes da reunião do G-20, quando nações como Hungria, Ucrânia, Paquistão e Islândia recorreram ao fundo em busca de uma ajuda de emergência para equilibrar sua balança de pagamentos. Fazia tempo que o fundo não tinha tantos clientes. No período pré-crise de abundância de capital e fluidez do crédito, os países em desenvolvimento fizeram reformas, acumularam reservas e deixaram o FMI às moscas. Além disso, a instituição ainda luta contra um forte estigma. Os países evitam recorrer ao fundo a todo custo, pois aceitar suas pesadas condicionalidades envia ao mercado o sinal de estar à beira da bancarrota.
Nas crises da Ásia e da América Latina na década de 90, o FMI recebeu reprimendas de economistas das mais diversas correntes por causa da insistência em recomendar mais privações - como taxas de juros elevadas e rígidos cortes de gastos - a países que já estavam doentes. Para o professor da Universidade de São Paulo Dante Aldrighi, a crise atual impôs mudanças ao fundo, pois não faz sentido pedir sacrifícios às nações pobres enquanto os Estados Unidos jogam dinheiro de helicóptero para recuperar seu mercado. "A crise financeira provocou a revisão de algumas convicções do pensamento ortodoxo", afirma.
O FMI fez o seu dever de casa ao dobrar os limites para os empréstimos sem condicionalidades e flexibilizar significativamente seus critérios. O objetivo do fundo agora é focar na qualificação dos países antes da tomada do crédito, em vez de impor metas de política econômica. Foi criada uma nova linha de crédito flexível, que prevê empréstimos significativos, de longo prazo e sem limites de renovação, liberados logo após sua aprovação, para países com fundamentos econômicos sólidos e políticas fiscais e monetárias consistentes. Para os países que não se encaixarem nesse critério, também foram relaxadas as regras para os tradicionais empréstimos de stand-by.
Afastado do fundo desde 1995, o México surpreendeu o mundo ao revelar que havia pleiteado um crédito de US$ 47 bilhões no FMI por meio da nova linha de condições flexíveis para combater os efeitos da crise internacional. Ao invés de provocar alarme, a notícia animou os mercados, e o peso mexicano valorizou-se. Um resultado e tanto para o fundo, que espera que o exemplo do México estimule outros países a bater à sua porta antes que a sua situação econômica esteja à beira da catástrofe.
Segundo Paulo Nogueira Batista, diretor-executivo do FMI pelo Brasil e mais oito países da América Latina e do Caribe, o governo brasileiro teve papel importante nessa mudança, pois foi o primeiro a propor a flexibilização dos critérios de empréstimos. Ele garante que não existem mais nas regras exigências como adoção de câmbio flutuante, metas de inflação e de superávit primário, mas admite que vai ser preciso supervisionar de perto se as intenções do fundo se transformarão em realidade. "Fizemos dois gols, mas ainda podemos tomar uma bola nas costas e perder a partida", diz.
Há muitas dúvidas entre os especialistas se o FMI vai realmente mudar sua cultura, abandonar as antigas receitas e conceder empréstimos para os países gastarem na reativação de suas economias em vez de economizar para o pagamento de dívidas. Na reunião do G-20, o primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown, declarou que o Consenso de Washington acabou - o conjunto de regras que conduziu a política do FMI para a América Latina.
Martin Feldstein, presidente do prestigiado Escritório Nacional de Pesquisa Econômica (NBER) e professor de Harvard, diz acreditar que o FMI vai seguir recomendando aos países princípios do consenso como livre comércio e câmbio flutuante. Ele está cético sobre o novo papel do fundo e recorda que não ficou claro se a instituição vai receber todo o dinheiro que foi prometido, já que, por enquanto, estão garantidos apenas US$ 100 bilhões do Japão e US$ 100 bilhões da União Europeia. Também duvida que o FMI vá funcionar como um fiscal eficiente se os países não tomarem as medidas necessárias para sair da crise. "Eles não estão realmente dispostos a disciplinar grandes países como os Estados Unidos", diz ao Valor.
Para Ronald McKinnon, professor da Universidade de Stanford, o Consenso de Washington só pode ser considerado passado no que diz respeito à defesa de regulação mínima dos mercados financeiros e do fluxo de capitais. Ele diz acreditar que não haverá mudança nos princípios envolvidos no comércio de bens e serviços. McKinnon defende que a austeridade tradicional do FMI era adequada quando países individualmente estavam com problemas, mas, no momento de uma recessão global, políticas expansionistas generalizadas são justificáveis.
Com diversos acordos de livre comércio, inflação baixa, contas em ordem e câmbio flutuante, o México é um excelente aluno da antiga receita do FMI e um dos melhores exemplos de países que seguiram o Consenso de Washington. Portanto, não é nenhum trauma para os burocratas do fundo aprovarem uma linha de crédito sem condicionalidades para os mexicanos. Mas o que pode ocorrer se a Argentina, que deu o calote nos seus credores, ou a Venezuela, que controla importações e câmbio, recorrerem ao FMI? "São países com políticas heterodoxas populistas, que possuem inflação alta e contas desequilibradas. Se o FMI for socorrê-los, vai ser pelas condições tradicionais", observa Simão David Silber, professor da USP.
Kenneth Rogoff, professor de Harvard e ex-economista-chefe do FMI, avalia que o motivo determinante do fortalecimento do fundo foi a necessidade dos países ricos de transferir recursos para as nações emergentes atingidas pela crise. O temor de Estados Unidos e União Europeia é que a quebradeira desses países provoque uma nova onda de turbulência global. É o caso do México, vizinho e um dos principais parceiros dos EUA, mas principalmente do Leste Europeu. "Eles não conseguiram pensar em um sistema alternativo para o salvar a Europa Orienal", afirma Rogoff ao Valor.
A União Europeia não possui os mecanismos e a expertise para socorrer essas economias em transição do comunismo para o capitalismo. Uma crise de grandes proporções no Leste Europeu pode ter consequências econômicas e políticas significativas para todo o continente. Japão e China também aceitaram participar do esforço para capitalizar o FMI, porque estão preocupados com a situação de países na Ásia. Na América Latina, o Brasil está em melhores condições que muitos de seus vizinhos.
Outro temor de Rogoff é com a sustentabilidade das "dramáticas" mudanças que o fundo promoveu em seus critérios de financiamento. O economista questiona o que pode ocorrer se os países que receberam montanhas de recursos do fundo para enfrentar a crise simplesmente não se recuperarem. "Se a confiança dos mercados não for reconstruída, o que acontece depois? Parece que os líderes mundiais apenas jogaram o problema para a frente."
Uma das principais críticas de diversos especialistas é que prevaleceu entre os líderes mundiais na reunião do G-20 a percepção equivocada de que era preciso apenas resolver os problemas dos países em desenvolvimento. Praticamente nada foi feito até agora para promover mudanças significativas na regulação do mercado financeiro global, especialmente nos países ricos onde a crise nasceu. Há muitas dúvidas sobre se o FMI pode desempenhar esse papel. "Em princípio, o fundo pode fazer isso, mas não tem a expertise suficiente. Seria preciso contratar uma equipe completa de novos funcionários", diz Rogoff.
Sob os auspícios de um FMI fortalecido e com um novo papel na governança global, os líderes mundiais foram bem-sucedidos em sua ofensiva de relações públicas e uma onda de otimismo se espalhou após a reunião do G-20, culminando em um rally dos mercados de ações. O problema é que se as promessas em relação ao fundo não começarem rapidamente a se transformar em realidade, tudo pode cair em descrédito. Com a crise, o keynesianismo e sua receita de estimular gastos públicos estão nos planos de todos os países, com mais (americanos) ou menos (europeus) ênfase. Mas, quando se refere ao FMI, é bem provável que mesmo depois dessa crise White continue vencendo a batalha contra Keynes.
O presidente do Banco Central chinês, Zhou Xiaochuan, revelou recentemente suas preocupações sobre a utilização do dólar como moeda de reserva internacional e sugeriu a adoção dos Direitos Especiais de Saque (DES) do FMI como alternativa, mas sua proposta tem pouquíssimas chances de ir para a frente. E ninguém chega a cogitar a criação de um dinheiro internacionalizado como o "bancor" de Keynes. Ronald McKinnon reconhece que a expansão fiscal está na ordem do dia, mas diz que isso vem sendo feito sem radicalismos, por meio da expansão do poder de empréstimo do FMI através da contribuições dos países membros - exatamente como previa o plano de White.
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Durante a conferência de Bretton Woods em 1944, que estabeleceu a nova arquitetura financeira global no pós-guerra, o negociador-chefe do Reino Unido, John Maynard Keynes, estava cada vez mais frustrado com a arrogância dos americanos liderados por Harry Dextler White. Uma anedota da época conta que, para confortá-lo, o embaixador britânico Lord Halifax disse: "Os americanos podem ter as bolsas de dinheiro, mas nós temos todo o cérebro."
De nada adiantou a pretensa superioridade intelectual inglesa, pois o Fundo Monetário Internacional (FMI) nasceu como desejava White. Prevaleceu a posição dos Estados Unidos de uma instituição menor que aplicaria seus recursos seletivamente. Também venceu a ideia de utilizar as moedas nacionais nos empréstimos, principalmente o dólar, em vez de um novo ativo proposto por Keynes, o "bancor".
O FMI adotou como mandamento a defesa de White aos preços estáveis e à política monetária disciplinada. Com o passar do tempo, tornou-se ainda mais conservador que seu mentor, pois White compartilhava com Keynes a crença em políticas anticíclicas para manter o nível de emprego na crise. Mas essa configuração está se modificando. Passados 65 anos de sua criação, o fundo é obrigado pela mais grave crise econômica desde a Grande Depressão na década de 30 a mudanças que podem levá-lo mais perto de suas origens keynesianas.
A reunião de primavera do FMI, nos dias 24 e 25 em Washington, promete ser um bom teste para sua suposta guinada heterodoxa, pois ainda há muitas questões em aberto. De onde virá o dinheiro para reforçar o seu caixa? Em vez de cobrar austeridade fiscal, o fundo será capaz de incentivar gastos? O FMI vai efetivamente atuar como regulador e supervisor do sistema financeiro? Os emergentes realmente terão mais poder na instituição? "Se até o fim do mês não tiver nada concreto, podemos colocar as barbas de molho", diz Rubens Ricupero, ex-secretário geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad).
Após o encontro do G-20, grupo que reúne as maiores economias do mundo, em Londres na semana passada, o diretor-gerente Dominique Strauss-Khan comemorou: "O FMI está de volta." Não restam dúvidas de que ele está certo. A crise recolocou o fundo no centro da cena internacional depois de um período de duras críticas, corte de gastos e até de objeções à sua existência. Os líderes mundiais prometeram triplicar o caixa do FMI para US$ 750 bilhões e autorizaram mais US$ 250 bilhões em Direito Especial de Saque (DES), uma espécie de moeda da instituição.
Foi a principal decisão da reunião do G-20 e o único tema sobre o qual foi possível chegar a um consenso. Os países emergentes, como China e Brasil, se comprometeram a colocar dinheiro no fundo (embora ainda não tenham especificado valores), mesmo antes de ser atendido seu pleito de maior poder e participação na instituição. Para essas nações, é muito importante restabelecer os fluxos de capital no mundo, e essas mudanças institucionais levam tempo. Foi estabelecido o prazo de janeiro de 2011 para a conclusão da reforma das cotas do FMI. Os emergentes reclamam, com razão, de que estão sub-representados. A China, por exemplo, possui a mesma fatia da pequenina Bélgica.
O FMI também ganhou múltiplos papéis no combate à crise. O G-20 solicitou que a instituição monitore a implementação das políticas fiscais adotadas pelos países; que emita alertas prévios contra novas turbulências (em conjunto com o Fórum de Estabilidade Financeira); e seja parceiro dos países na discussão sobre quais políticas devem ser adotadas. Além, é claro, de utilizar seus recursos para aumentar a liquidez mundial e para ajudar os países emergentes afetados pela crise, especialmente os de menor desenvolvimento relativo.
A "ressurreição" do FMI já havia começado um pouco antes da reunião do G-20, quando nações como Hungria, Ucrânia, Paquistão e Islândia recorreram ao fundo em busca de uma ajuda de emergência para equilibrar sua balança de pagamentos. Fazia tempo que o fundo não tinha tantos clientes. No período pré-crise de abundância de capital e fluidez do crédito, os países em desenvolvimento fizeram reformas, acumularam reservas e deixaram o FMI às moscas. Além disso, a instituição ainda luta contra um forte estigma. Os países evitam recorrer ao fundo a todo custo, pois aceitar suas pesadas condicionalidades envia ao mercado o sinal de estar à beira da bancarrota.
Nas crises da Ásia e da América Latina na década de 90, o FMI recebeu reprimendas de economistas das mais diversas correntes por causa da insistência em recomendar mais privações - como taxas de juros elevadas e rígidos cortes de gastos - a países que já estavam doentes. Para o professor da Universidade de São Paulo Dante Aldrighi, a crise atual impôs mudanças ao fundo, pois não faz sentido pedir sacrifícios às nações pobres enquanto os Estados Unidos jogam dinheiro de helicóptero para recuperar seu mercado. "A crise financeira provocou a revisão de algumas convicções do pensamento ortodoxo", afirma.
O FMI fez o seu dever de casa ao dobrar os limites para os empréstimos sem condicionalidades e flexibilizar significativamente seus critérios. O objetivo do fundo agora é focar na qualificação dos países antes da tomada do crédito, em vez de impor metas de política econômica. Foi criada uma nova linha de crédito flexível, que prevê empréstimos significativos, de longo prazo e sem limites de renovação, liberados logo após sua aprovação, para países com fundamentos econômicos sólidos e políticas fiscais e monetárias consistentes. Para os países que não se encaixarem nesse critério, também foram relaxadas as regras para os tradicionais empréstimos de stand-by.
Afastado do fundo desde 1995, o México surpreendeu o mundo ao revelar que havia pleiteado um crédito de US$ 47 bilhões no FMI por meio da nova linha de condições flexíveis para combater os efeitos da crise internacional. Ao invés de provocar alarme, a notícia animou os mercados, e o peso mexicano valorizou-se. Um resultado e tanto para o fundo, que espera que o exemplo do México estimule outros países a bater à sua porta antes que a sua situação econômica esteja à beira da catástrofe.
Segundo Paulo Nogueira Batista, diretor-executivo do FMI pelo Brasil e mais oito países da América Latina e do Caribe, o governo brasileiro teve papel importante nessa mudança, pois foi o primeiro a propor a flexibilização dos critérios de empréstimos. Ele garante que não existem mais nas regras exigências como adoção de câmbio flutuante, metas de inflação e de superávit primário, mas admite que vai ser preciso supervisionar de perto se as intenções do fundo se transformarão em realidade. "Fizemos dois gols, mas ainda podemos tomar uma bola nas costas e perder a partida", diz.
Há muitas dúvidas entre os especialistas se o FMI vai realmente mudar sua cultura, abandonar as antigas receitas e conceder empréstimos para os países gastarem na reativação de suas economias em vez de economizar para o pagamento de dívidas. Na reunião do G-20, o primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown, declarou que o Consenso de Washington acabou - o conjunto de regras que conduziu a política do FMI para a América Latina.
Martin Feldstein, presidente do prestigiado Escritório Nacional de Pesquisa Econômica (NBER) e professor de Harvard, diz acreditar que o FMI vai seguir recomendando aos países princípios do consenso como livre comércio e câmbio flutuante. Ele está cético sobre o novo papel do fundo e recorda que não ficou claro se a instituição vai receber todo o dinheiro que foi prometido, já que, por enquanto, estão garantidos apenas US$ 100 bilhões do Japão e US$ 100 bilhões da União Europeia. Também duvida que o FMI vá funcionar como um fiscal eficiente se os países não tomarem as medidas necessárias para sair da crise. "Eles não estão realmente dispostos a disciplinar grandes países como os Estados Unidos", diz ao Valor.
Para Ronald McKinnon, professor da Universidade de Stanford, o Consenso de Washington só pode ser considerado passado no que diz respeito à defesa de regulação mínima dos mercados financeiros e do fluxo de capitais. Ele diz acreditar que não haverá mudança nos princípios envolvidos no comércio de bens e serviços. McKinnon defende que a austeridade tradicional do FMI era adequada quando países individualmente estavam com problemas, mas, no momento de uma recessão global, políticas expansionistas generalizadas são justificáveis.
Com diversos acordos de livre comércio, inflação baixa, contas em ordem e câmbio flutuante, o México é um excelente aluno da antiga receita do FMI e um dos melhores exemplos de países que seguiram o Consenso de Washington. Portanto, não é nenhum trauma para os burocratas do fundo aprovarem uma linha de crédito sem condicionalidades para os mexicanos. Mas o que pode ocorrer se a Argentina, que deu o calote nos seus credores, ou a Venezuela, que controla importações e câmbio, recorrerem ao FMI? "São países com políticas heterodoxas populistas, que possuem inflação alta e contas desequilibradas. Se o FMI for socorrê-los, vai ser pelas condições tradicionais", observa Simão David Silber, professor da USP.
Kenneth Rogoff, professor de Harvard e ex-economista-chefe do FMI, avalia que o motivo determinante do fortalecimento do fundo foi a necessidade dos países ricos de transferir recursos para as nações emergentes atingidas pela crise. O temor de Estados Unidos e União Europeia é que a quebradeira desses países provoque uma nova onda de turbulência global. É o caso do México, vizinho e um dos principais parceiros dos EUA, mas principalmente do Leste Europeu. "Eles não conseguiram pensar em um sistema alternativo para o salvar a Europa Orienal", afirma Rogoff ao Valor.
A União Europeia não possui os mecanismos e a expertise para socorrer essas economias em transição do comunismo para o capitalismo. Uma crise de grandes proporções no Leste Europeu pode ter consequências econômicas e políticas significativas para todo o continente. Japão e China também aceitaram participar do esforço para capitalizar o FMI, porque estão preocupados com a situação de países na Ásia. Na América Latina, o Brasil está em melhores condições que muitos de seus vizinhos.
Outro temor de Rogoff é com a sustentabilidade das "dramáticas" mudanças que o fundo promoveu em seus critérios de financiamento. O economista questiona o que pode ocorrer se os países que receberam montanhas de recursos do fundo para enfrentar a crise simplesmente não se recuperarem. "Se a confiança dos mercados não for reconstruída, o que acontece depois? Parece que os líderes mundiais apenas jogaram o problema para a frente."
Uma das principais críticas de diversos especialistas é que prevaleceu entre os líderes mundiais na reunião do G-20 a percepção equivocada de que era preciso apenas resolver os problemas dos países em desenvolvimento. Praticamente nada foi feito até agora para promover mudanças significativas na regulação do mercado financeiro global, especialmente nos países ricos onde a crise nasceu. Há muitas dúvidas sobre se o FMI pode desempenhar esse papel. "Em princípio, o fundo pode fazer isso, mas não tem a expertise suficiente. Seria preciso contratar uma equipe completa de novos funcionários", diz Rogoff.
Sob os auspícios de um FMI fortalecido e com um novo papel na governança global, os líderes mundiais foram bem-sucedidos em sua ofensiva de relações públicas e uma onda de otimismo se espalhou após a reunião do G-20, culminando em um rally dos mercados de ações. O problema é que se as promessas em relação ao fundo não começarem rapidamente a se transformar em realidade, tudo pode cair em descrédito. Com a crise, o keynesianismo e sua receita de estimular gastos públicos estão nos planos de todos os países, com mais (americanos) ou menos (europeus) ênfase. Mas, quando se refere ao FMI, é bem provável que mesmo depois dessa crise White continue vencendo a batalha contra Keynes.
O presidente do Banco Central chinês, Zhou Xiaochuan, revelou recentemente suas preocupações sobre a utilização do dólar como moeda de reserva internacional e sugeriu a adoção dos Direitos Especiais de Saque (DES) do FMI como alternativa, mas sua proposta tem pouquíssimas chances de ir para a frente. E ninguém chega a cogitar a criação de um dinheiro internacionalizado como o "bancor" de Keynes. Ronald McKinnon reconhece que a expansão fiscal está na ordem do dia, mas diz que isso vem sendo feito sem radicalismos, por meio da expansão do poder de empréstimo do FMI através da contribuições dos países membros - exatamente como previa o plano de White.
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