domingo, 8 de fevereiro de 2009

Lulismo e tradição

EDITORIAL
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Ambiguidades da retórica presidencial evidenciam linhas de continuidade entre seu governo e antecessores

DO ALTO de impressionantes níveis de popularidade, o presidente da República parece mais do que nunca imbuído daquele estilo que, há tempos, ele próprio denominou jocosamente de "Lulinha paz e amor".

Inaugurando uma hidrelétrica em Tocantins, nesta quinta-feira, Lula tratou de irradiar essa atitude de plenipotenciária bonomia às autoridades que o circundavam no palanque -com destaque para a ministra Dilma Rousseff, cuja eventual candidatura à Presidência vai sendo testada em cerimônias desse tipo.

Desse espírito de conciliação acabam resultando curiosas inflexões no discurso presidencial. De um lado, o presidente Lula guarda resquícios da antiga retórica petista. No evento desta quinta-feira, lembrou-se de acusar, por exemplo, as "oligarquias" brasileiras de terem impedido, "por vários séculos", a realização de uma obra como a transposição das águas do rio São Francisco.

Perguntaram-lhe em seguida se é possível, no Brasil, governar sem apoio de oligarquias. "Não", respondeu Lula, "tanto que eu tenho uma parceria extraordinária com os empresários brasileiros". Terminou afirmando que todo mundo, na vida, "seja o trabalhador ou o oligarca", tem seus momentos de mudar de ideia.

Em meio a tais retorções de vocabulário, pode-se ver com nitidez o estilo "lulista" de fazer política. Apesar das constantes menções a tudo o que teria havido de inédito em sua ascensão ao poder, o presidente Lula segue um roteiro conhecido na história política brasileira.

Desde Getúlio Vargas, passando por JK, e repetindo-se mesmo no caso aparentemente tão diverso de Fernando Henrique Cardoso, a Presidência da República muitas vezes se equilibrou entre o impulso das tendências modernizantes, nos centros mais desenvolvidos, e uma arraigada base oligárquica regional.

A aliança entre PT e PMDB, no atual governo, corresponde em boa medida ao que, no governo Fernando Henrique, unia o PSDB e o então PFL. Diferenças de coloração ideológica contam menos do que a influência da conjuntura econômica internacional no sucesso ou insucesso popular de cada administração.

Os altos índices de aprovação do governo Lula sem dúvida se devem à combinação dos razoáveis índices de crescimento econômico obtidos até agora, e de ganhos efetivos de renda nas camadas mais pobres da população, com a empatia pessoal do presidente. Este último fator, embora não irrelevante, conta menos no cenário político do que o desempenho da economia no futuro próximo -sobre o qual pairam as maiores incertezas.

O indubitável, contudo, é que o papel do governo Lula na história brasileira não foi o de representar uma ruptura. Inscreve-se, no que esta tem de criticável e de positivo, numa tradição conhecida -a de conciliar atraso e desenvolvimento, oligarquia e mudança. O resto é retórica - cujas ambiguidades, no caso do presidente Lula, apenas confirmam o que há de essencial no seu modo de governar.

O pior cego...

Sérgio Fausto
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Um amigo, que agora acompanha de perto a cena política da Itália e faz tempo reflete sobre as relações internacionais, sob a perspectiva das sociedades civis, e não apenas dos governos dos países, escreveu-me esta semana a respeito dos danos que o episódio Battisti vem provocando à imagem do Brasil na sociedade italiana.

Muito se tem falado sobre os efeitos do episódio nas relações governo a governo. O estrago salta aos olhos. Menos visível, mas não menos importante, é a perda de parte da simpatia e do prestígio acumulados ao longo de anos pelo Brasil entre os italianos.

Não é uma perda irreversível, claro, mas levará tempo para sanar os efeitos da decisão desastrada e quase inexplicável do ministro Tarso Genro. Ao conceder refúgio a Cesare Battisti - nunca é demais lembrar, contrariando a decisão do Conselho Nacional dos Refugiados e não obstante sentenças condenatórias em tribunais italianos e uma corte europeia - ele desconsiderou não apenas a reação previsível do governo daquele país, mas principalmente o sentimento existente na sociedade italiana em relação aos chamados "anni di piombo".

Foram mesmo anos de chumbo: entre o atentado a bomba da Piazza Fontana, em 1969, e a explosão da estação de trem de Bolonha, em 1980, grupos de extrema-direita e extrema-esquerda promoveram o terror. Não apenas se trucidaram reciprocamente, mas também vitimaram políticos, agentes do Estado, principalmente policiais e juízes, e muitas pessoas comuns. Foram muitos os mortos - 85 deles apenas no atentado na estação de Bolonha, perpetrado pela extrema-direita. E imenso o trauma deixado.

O sequestro e o posterior assassinato de Aldo Moro, pelo seu significado político, dão a chave para entender a dinâmica daqueles anos terríveis. Moro havia sido primeiro-ministro por duas vezes, era uma das principais lideranças do maior partido do país, a Democracia Cristã (DC), e estava empenhado na construção do que à época ficou conhecido como "o compromisso histórico".

Tratava-se de uma aliança entre a DC e o Partido Comunista Italiano (PCI), que atingira quase 35% nas eleições legislativas de 1976. Pelo lado da DC, Moro era o principal artífice da aliança. Pelo PCI, Enrico Berlinguer, que vinha conduzindo o partido para longe do PC da URSS. Da sua ótica, o "compromisso histórico" serviria para dar estabilidade política à Itália num momento especialmente delicado (além do terrorismo, o país enfrentava os efeitos da crise resultante do primeiro choque do petróleo) e pavimentar o caminho para uma transição pacífica para o socialismo. O Chile, onde a polarização entre os partidos de esquerda e a DC abrira caminho para o golpe de Pinochet, em 1973, oferecia-lhe o contraexemplo.

O "compromisso histórico" tinha muitos inimigos. Na extrema-esquerda, as Brigadas Vermelhas e outros grupúsculos, entre os quais o de Cesare Battisti, que apostavam na polarização política e na destruição do "Estado imperialista das multinacionais" (as Brigadas assim designavam o Estado italiano), pela via armada. Na extrema-direita, os setores terroristas do Movimento Social Italiano, partido fascista, que viam no "compromisso histórico" a antessala da "comunização" do país.

Compartilhavam essa percepção, com maior ou menor nuance, setores do serviço secreto italiano e do establishment conservador norte-americano. Sim, a Itália, pela presença de um partido comunista de massas, foi o foco das preocupações e da atuação dos Estados Unidos na Europa Ocidental durante a guerra fria. Na Bota, a intromissão da CIA na política doméstica não é mito, mas um fato histórico fartamente documentado. Como se não bastasse, o "compromisso histórico" encontrava oposição na ala da Democracia Cristã ligada a Giulio Andreotti, também ele primeiro-ministro da Itália por duas vezes, político mais conservador, cujas ligações com a Máfia viriam a público anos depois.

A despeito de tudo, a aliança entre a DC e o PCI avançou. Moro foi sequestrado quando se dirigia ao Parlamento para uma sessão na qual seria confirmado o primeiro governo da DC com o apoio dos comunistas. Brutalmente assassinado com dez tiros à queima-roupa, desferidos pelo líder brigadista Mario Moretti, teve seu corpo encontrado 55 dias após a sua captura no porta-malas de um carro abandonado na Via Caetani, em Roma, num ponto equidistante entre as sedes do PCI e da DC. O simbolismo não poderia ser mais claro. Ao assassinar Moro, as Brigadas procuravam sepultar o "compromisso histórico".

A aliança entre a DC e o PCI, ao final, não teve vida longa, por razões que vão além do assassinato de Moro. Na esteira de seu fracasso, a política italiana voltou a girar em torno das alianças da DC com outros partidos menores, lubrificadas por práticas pouco ortodoxas na lida com recursos e cargos públicos, que foram desnudadas no âmbito da Operação Mãos Limpas, nos anos 90. Desnudadas, mas não erradicadas, infelizmente.

Num aspecto crucial, porém, houve progresso na política italiana nos mais de 30 anos que nos separam do caso Aldo Moro: o terrorismo, cujas fronteiras com o crime comum se tornaram cada vez mais tênues, foi eliminado pela atuação do Estado e pela repulsa veemente da quase totalidade da sociedade italiana.

Foi esse sentimento de repulsa - guardado, mas ainda vivo - que a decisão do ministro Tarso Genro atraiu contra o Brasil e o governo atual. Fosse apenas contra o governo atual, teríamos, em tese, um problema circunscrito e com prazo determinado. Mas é a imagem do Brasil que se vê atingida, a menos que o STF "corrija" a decisão ministerial. Isso parece improvável. É que a decisão de Tarso Genro, ao que tudo indica, não fere a legalidade. Ela fere o bom juízo político que se espera de um ministro de Estado.

Sérgio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC, é membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP

Quem é o Estado?

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O Estado somos nós – os três poderes formais, o Ministério Público, a imprensa, seus leitores, a sociedade que se manifesta e vota.

O escandaloso comportamento do novo Severino Cavalcanti, o deputado-corregedor Edmar Moreira (DEM-MG), na inauguração da legislatura, teve o mérito de oferecer uma panorâmica da putrefação do Legislativo. Com apenas algumas frases e um inacreditável currículo exibiu o mau estado do nosso Estado.

No momento em que o mundo celebra o retorno do Estado atuante, rigoroso e responsável nos é oferecida a tomografia de um Estado moralmente arruinado e deficiente. A culpa, evidentemente, não é do governo que apoiou a chapa vitoriosa na Câmara Federal, a oposição também votou nela. A culpa não é do novo presidente da Casa do Povo, jurista Michel Temer (PMDB-SP), que não achou necessário investigar em profundidade a biografia, currículo e folha corrida de um de seus eventuais substitutos (o corregedor é também um dos vice-presidentes da Casa). O castelo medieval de 30 milhões de reais construído por Edmar Moreira sem o conhecimento do fisco e da Justiça Eleitoral não é obra recente. As aberrações que envolvem o deputado federal e seu filho, Leonardo, deputado estadual, estão sendo investigadas desde 2006.

A proposta de acabar com a corregedoria da Câmara e considerar os deputados como anjinhos que sofrem apenas de um vício, o "vício da amizade" não resultou de um escorregão retórico. Edmar Moreira completará em breve seus 70 anos, tem 18 de carreira parlamentar, é um sólido e perfeito exemplo da estupidez, despreparo, cinismo e ganância de um grupo considerável de servidores do Estado brasileiro eleitos para protegê-lo.

Edmar Moreira é mais um caso de geração espontânea. Ninguém é responsável por seu súbito aparecimento na cena pública, cada um tenta inocentar-se alegando que cumpre escrupulosamente as suas tarefas. A culpa é sempre do outro. E o outro são todos os que aceitam, convivem e reforçam o descalabro sem protestar, indignar-se ou, pelo menos, sofrer diante de suas dimensões.

O senador José Sarney (PMDB-AP) certamente não conhece o deputado Edmar Moreira, operam em esferas, níveis e ambientes diferenciados. Mas ao ser reconduzido pela terceira vez em 14 anos à presidência da Câmara Alta, Sarney incorpora-se ao mesmo sistema que na Câmara Baixa produz um deputado que aceita o convívio com o crime e a corrupção. Sarney chefia o Legislativo, esta deformação deveria sensibilizá-lo. Não está obrigado a pronunciar-se diante de cada delito cometido por um parlamentar, mas de alguma forma deveria consolar os milhões de concidadãos que esperam dos legisladores um mínimo de dignidade.

Um Legislativo desacreditado, desacredita o Estado, anula sua legitimidade. Aliena para o Executivo e o Judiciário parte de seus compromissos, desequilibra o edifício institucional. A "judicialização" da vida nacional que tanto incomoda o presidente Lula – e ele está certo em reclamar – decorre apenas da lenta e inexorável desmoralização do Legislativo. Quando os candidatos à presidência da Câmara Federal denunciavam o excesso de Medidas Provisórias encaminhadas pelo governo assumiam plenamente o estado calamitoso de um dos sustentáculos do Estado e que, ao longo dos anos, vem abdicando de suas prerrogativas absorvido apenas pela manutenção de privilégios.

A discussão mundial sobre o papel do Estado não se limita ao campo econômico. A crise não é apenas financeira, seus efeitos políticos logo começarão a aparecer. Conflitos sociais – espontâneos ou orquestrados – não tardarão. São inevitáveis, basta examinar o que aconteceu em todo o mundo nos anos 30 do século passado, na véspera da Segunda Guerra Mundial.

A famosa declaração do Rei Sol, Luis XIV, "O Estado Sou eu", pode não ter acontecido, os historiadores ainda discutem sua autoria. Mas a frase completa seria ainda mais preocupante: "Eu sou a Lei, eu sou o Estado, o Estado sou eu".

» Alberto Dines é jornalista

Pode ser, mas está difícil

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Os novos presidentes da Câmara e do Senado acertaram na escolha do conteúdo, mas claudicaram visivelmente na forma de conversar com o presidente da República sobre a edição de medidas provisórias, no primeiro encontro oficial dos três depois das eleições de Michel Temer e José Sarney.

Do jeito como foi posto o assunto, é difícil que se chegue a uma solução minimamente razoável. Do ponto de vista do Poder Legislativo, porque sob a ótica do Executivo tudo está bem.Não merece muita credibilidade a declaração feita pelo ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, logo após a reunião. "O governo tem consciência de que precisa diminuir a edição das medidas provisórias", disse.

Se tem, adquiriu muito recentemente, pois durante toda a legislatura passada embromou solenemente os então presidentes Arlindo Chinaglia e Garibaldi Alves - que se deixaram docemente embromar, diga-se -, evitando a votação da proposta de mudança no rito das MPs. O assunto é discutido há dois anos e há dois anos não sai do lugar.

O presidente do Senado comunicou ao presidente Lula que considera "inaceitável" a quantidade de edições. Um adjetivo. O presidente da Câmara promete algo mais substantivo. Prega obediência total à Constituição.

A julgar por aquele encontro entre os três presidentes, é difícil sair algo de efetivo. Pelo seguinte: Temer e Sarney já começaram a conversa flexibilizando posições. Praticamente pediram licença a Lula para cumprir o que diz a Constituição e o fizeram quase em tom de escusas.

Não que devessem chegar ao Palácio do Planalto com a Carta em punho informando que dali para frente tudo seria diferente. Não. Mas também não precisavam chegar abrindo a guarda para a solução que for mais conveniente ao Executivo.

E foi esse o ponto de partida, quando o princípio da discussão é outro: o presidente tem a prerrogativa de editar MPs sobre o que julga urgente e relevante e o Congresso tem o direito de analisar se concorda. Se discordar, devolve. Simples e institucional, sem brigas nem atritos.

Conversar previamente com o presidente da República sobre o conteúdo de cada medida, como propõe Temer, é uma distorção de funções. Primeiro, porque o regime é presidencialista, o que confere a decisão ao presidente.

Segundo, porque há uma regra muito clara sobre o passo seguinte: o Congresso admite ou não a tramitação da medida. Em terceiro lugar, porque o presidente da Câmara ou do Senado não pode se substituir ao colegiado e assumir esse papel previamente. Muito menos em feitio de negociação.

Em tese, o senador José Sarney compreende do que se trata quando diz que sua autonomia terá de ser exercida independentemente do apoio político dado ao presidente da República. "Nós separamos o que é relação pessoal e o que é relação institucional", disse.

Não separam. Nem eles nem político nenhum. No Brasil não é a impessoalidade que preside as relações. Nem mesmo entre eleitos e eleitores.

Se fosse, esse cuidado todo, esse pisar em ovos seria dispensável. Não haveria a dicotomia entre o conflito e a harmonia, a devolução de uma medida provisória não renderia crises, não seria fruto de pressões nem sempre bem intencionadas, não geraria retaliações.

A consciência da obediência à Constituição como dever primeiro do cidadão não requer negociações, acertos, reverências, concessões. É autoexplicável e, portanto, autoaplicável.

Plano B

O PT caminha para 2010 com Dilma Roussef, reservando-se, contudo, o direito à descrença sobre as condições objetivas da ministra para se tornar uma candidata presidencial competitiva.

Os petistas não sabem direito quais os planos de Lula, mas estão com ele. Por via das dúvidas, preparam-se para refazer o trajeto à esquerda e retomar o discurso da ética.

Uma sinalização para quem se interessa em pilotar o andar dessa carruagem será a posição do PT em relação ao código de ética do partido, a ser discutido ao longo de 2009.

Se a maioria pedir um código mais ameno, menos "moralista e udenista", significa que há esperança de vitória em 2010. Se prevalecer a defesa aguerrida dos bons costumes, quer dizer que o PT trabalha para voltar à oposição.

Ponto pacífico

Ainda presidente do PMDB, em vias de se licenciar para evitar questionamentos no exercício da presidência da Câmara, Michel Temer põe um ponto final na expectativa de que o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, possa se filiar ao partido.

No ano passado, Temer conversou muito a respeito com Aécio; chegaram a falar sobre o rito de passagem e a necessidade de o governador levar junto um grupo expressivo de políticos mineiros, tucanos ou não.

Agora, na avaliação de Temer, o PMDB entendeu (ou quis entender) que Aécio não sai do PSDB; vai disputar posições dentro do partido. "Isso é fato vencido", diz o presidente da Câmara.

Em marcha forçada

Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Dilma opera com o Orçamento da União, os bancos oficiais, os fundos de pensão e as agências reguladoras, numa espécie de novo “dirigismo estatal”

O Brasil, tecnicamente, entrou em recessão. Ilha de tranquilidade num mar proceloso, o nosso ciclo de desaceleração está em curso desde dezembro passado, no rastro da crise nas 30 nações mais ricas do mundo. Talvez por isso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha resolvido antecipar a disputa sucessória. Numa espécie de marcha forçada, colocou na estrada a candidatura da “mãe do PAC”, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), gerente do “Programa de Aceleração do Crescimento”. Se o Brasil conseguir sair da recessão antes das eleições de 2010, Dilma poderia virar uma espécie de Fernando Henrique Cardoso de saias, isto é, se eleger presidenta da República de forma semelhante ao tucano, que chegou ao Palácio do Planalto, em 1995, graças ao Plano Real.

Recessão

Nesta semana, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) diagnosticou a desaceleração da economia brasileira. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta a recessão de duas maneiras. No plano objetivo, adota medidas fiscais e monetárias para garantir o crédito e a produção, estimula o consumo das famílias e amplia o gasto público. No subjetivo, diz que o novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, está com um “pepinaço” nas mãos e estamos pagando pelos erros dos norte-americanos. Ou seja, se a crise chegar aqui pra valer o fracasso será de Obama.

A estratégia de Lula é eficiente do ponto de vista eleitoral. Dos 35 países avaliados pela OCDE, o Brasil é o único que não está em “forte desaceleração”. Ou seja, a “marolinha” virou “calhau”, mas não deu um “caldo” no governo. Porém, não sabemos ainda se a crise chegou mais branda por aqui ou está vindo atrasada. Os próximos meses é que dirão. Na primeira hipótese, as chances de o governo Lula sair altaneiro da crise em 2010 são reais; na segunda, a sucessão presidencial ocorreria em plena recessão, com o governo desgastado.

Nos países industrializados e emergentes, a desaceleração foi de 8,2 pontos em 12 meses, chegando a 92,9 pontos. Na zona do euro, a queda foi de 8,2 pontos em relação a 2007, com 93,8 pontos. Nos Estados Unidos, o recuo foi de 9,5 em um ano, com total de 91,3 pontos. O Japão caiu para 92,2 em dezembro, uma queda de 7,3 pontos em relação ao ano passado. O Brasil ficou abaixo de cem pontos pela primeira vez em cinco anos. Em dezembro, ficou em 98,8 pontos, uma perda de 5,4 pontos no ano, a melhor situação entre os BRICs: China recuou 14 pontos no ano, total de 87,6 pontos; Índia, 7,5 pontos, soma de 94,4 pontos; e Rússia queda de 17,7, total de 86,7 pontos. Para a OCDE, nota inferior a 100 significa recessão.

Sucessão

O presidente Lula, cuja popularidade cresceu ainda mais com a crise, conseguiu a proeza de transformar a ministra Dilma Rousseff na candidata natural do PT dois anos antes da eleição.

Agora, tece alianças para que seja a monopção das forças que apoiam o seu governo. Essa aglutinação, inicialmente, não se dá por meio dos partidos políticos. É construída a partir das relações do governo Lula com os movimentos sociais e os agentes econômicos. Dilma ocupa a segunda posição no vértice do sistema de poder, abaixo da presidente da República, mas acima de todos os demais ministros. Não há demanda social expressiva ou grande negócio no país que não dependa do aval “técnico” da ministra.

Graças ao marketing político, que dita o gestual, a retórica e o visual de Dilma, a ministra subiu nas pesquisas e acumula forças para conquistar a adesão maciça do PMDB, hoje muito bem plantado na Esplanada dos Ministérios. Há que se considerar, para isso, o papel dela na execução da política “anticíclica” do governo Lula. Dilma opera com o Orçamento da União, os bancos oficiais, os fundos de pensão e as agências reguladoras, numa espécie de novo “dirigismo estatal”, sem precedentes desde o governo Geisel. A crise econômica fortaleceu no governo os setores que veem no “capitalismo de Estado” uma alternativa para o desenvolvimento econômico e as mudanças sociais, ainda que o “ciclo de substituição de importações”, que fomentou essa concepção entre os militares e na esquerda brasileira, tenha sido ultrapassado pela integração do Brasil à economia mundial na década de 1990. Dilma defende e encarna esse projeto no governo.

Lula e Obama: proximidades

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

NOVA YORK. A começar pelo próprio presidente Lula, e referendado por muita gente boa da academia, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, é comum fazer-se um paralelo entre as eleições do ex-operário e do primeiro negro, como se os dois eventos tivessem o mesmo significado dentro do processo político de seus respectivos países. Fora o fato de que cada um deles representou, na época em que foi eleito, um sentimento de mudança latente na sociedade, e de que sejam políticos que, à sua maneira, têm o dom da oratória, são muito diferentes entre si, mas têm pontos de contato que podem ajudar na aproximação.

A elegância da oratória de Obama, em contraste com a espontaneidade da de Lula, não impediu que recentemente os dois se aproximassem no uso de expressões vulgares. Lula soltou um "sifu" em um improviso, e recentemente Obama usou uma expressão ("I screwed up") próxima ao linguajar vulgar para dizer que cometera um erro. A tradução tanto pode ser "fiz uma besteira" como "fiz uma c...".

Mesmo tendo tido trajetórias semelhantes, no sentido de serem de famílias pobres e terem conseguido ser bem-sucedidos na vida através da política, Obama e Lula têm formação cultural totalmente diferente, e seus caminhos políticos foram forjados com instrumentos distintos.

Os pais de Obama eram professores universitários, ele é parte da elite intelectual americana, é um scholar formado por Harvard, que deu aulas em universidades em Nova York (Columbia) e Chicago antes de se dedicar a trabalhos comunitários que o levaram à política. Lula não se cansa de lembrar que é filho de uma analfabeta; como Obama, cresceu sem o pai em casa.

Depois de ter passado muitos anos se vangloriando de ter vencido na vida sem estudar, Lula nos últimos tempos envia sinais de que já entendeu que não deve dar o mau exemplo e desestimular o estudo. Recentemente, disse em uma entrevista que se dar bem na vida sem estudar é como ganhar na Mega-Sena.

Obama tem a autoconfiança de quem se sabe preparado intelectualmente para a tarefa a que se propôs e a audácia de enfrentar o establishment político logo no início da carreira, preferindo desafiar a cúpula democrata na disputa pela indicação de candidato a Presidente com a senadora Hilary Clinton a esperar que sua vez chegasse pela ordem hierárquica natural ditada pelas lideranças mais antigas.

Tem andar elegante e um porte altivo que pode ser confundido com arrogância, o queixo sempre para cima num sinal de disposição para o enfrentamento. Lula é da elite operária brasileira, foi forjado como líder nas lutas sindicais e delas tirou um estilo autoritário de liderança política que se reflete na sua impaciência com as críticas e na maneira impositiva de comandar.

Desde sempre se colocou como candidato a presidente, recusando uma carreira política tradicional. Passou pelo Congresso na Constituinte de 1988 como um deputado federal medíocre, não por incapacidade, mas por total falta de adaptação aos códigos e procedimentos do Congresso, de onde saiu sem vontade de voltar, afirmando que dos 513 deputados, pelo menos 300 eram picaretas.

Mesmo vitorioso, Lula se considera perseguido pela elite brasileira, que não teria nunca o aceitado. Também Obama destacou-se por fazer política longe do establishment de Washington, e é um dos maiores críticos da "pequena política" do Capitólio. Tentou fazer uma política suprapartidária diante do momento de crise econômica internacional, mas encontrou uma resistência inesperada nos republicanos que, embora em esmagadora minoria no Congresso, apostam no fracasso do plano de recuperação econômica para voltarem ao poder em 2010.

Lula, como Obama, começou querendo mudar "tudo isso que está aí", e garantia que bastaria "vontade política" para mudar as coisas. Seis anos depois, montou a maior coligação partidária já vista na política brasileira, um saco de gatos onde grande parte dos 300 picaretas, de esquerda ou de direita, encontram espaço suficiente para exercerem seu fisiologismo.

Identificado com a esquerda, Lula já declarou que um homem de cabeça branca que continua comunista deve ter algum problema sério. Obama, considerado o mais esquerdista dos senadores, é apontado como socialista pelos conservadores mais radicais, mas reuniu em torno dele a fina flor dos economistas considerados "de direita".

A falta de experiência política tradicional foi uma crítica que Lula ouviu durante todas as campanhas presidenciais de que participou, assim como Obama teve que superar essa mesma desconfiança.

Obama é negro para os padrões americanos, mas na verdade é um mestiço, como já se definiu ao se referir ao cachorro de estimação que levaria para a Casa Branca. Filho de mãe branca com pai negro do Quênia, Obama é um mulato e disse a Lula que, se saísse nas ruas de uma cidade do nosso país, ninguém diria que ele não é um mulato brasileiro.

Está melhor que o antecessor, George Bush, que se espantou ao saber que no Brasil havia negros. Lula acha que vai se tornar "logo, logo" camarada de Obama, quem sabe mais camarada ainda do que era de Bush, a quem o ligava uma simpatia recíproca.

Lula acha que, como ele, Obama não pode errar. Nesse raciocínio, um ex-operário como ele, errando, faria com que ficasse mais difícil para uma pessoa humilde chegar à Presidência no Brasil, assim como o primeiro negro, se não for bem na presidência, pode estigmatizar os políticos negros, provocando um retrocesso no amadurecimento democrático dos Estados Unidos.

Os dois se encontrarão em breve e, além das proximidades, o programa de energia alternativa pode aproximá-los ainda mais. O Brasil tem a tecnologia e os meios para a produção de biocombustíveis, entre eles o etanol da cana de açúcar. Obama tem um projeto de fazer uma economia verde para livrar os Estados Unidos da dependência do petróleo estrangeiro. Pode dar liga.

Drama maior

Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO

O maior drama numa crise é o desemprego. Na virada do ano eu perguntei ao professor José Pastore quantos empregos o Brasil perderia em 2009 e ele me assustou com o número: um milhão. Voltei a falar com ele agora, e a previsão aumentou: "Acho que o Brasil deve perder um milhão e meio de empregos e eu não sei se quando houver a recuperação todos eles serão repostos."

Para o sociólogo, um dos maiores especialistas brasileiros no tema, sua previsão não se baseia apenas na crise, mas na maneira como o Brasil reage a ela.

- Há muito entrave na Justiça, no Ministério Público e nos sindicatos a qualquer tentativa de se ter algum ambiente mais flexível para o acerto entre trabalhador e empresa. O Tribunal Superior do Trabalho tem anulado acordos que as partes acertaram, e uma anulação como essa cria um tremendo de um passivo trabalhista - lembra José Pastore.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) de São Paulo divulgou uma recomendação aos sindicatos e federações patronais que estão negociando diminuição da jornada com redução de salário que mais parece uma ameaça. Diz que o acordo tem que ser precedido da "situação financeira precária da empresa" e que seja uma negociação coletiva, da qual participem todos os trabalhadores, mesmo os que não são sindicalizados. Diz ainda que a redução salarial não pode ser superior a três meses, que os direitos trabalhistas são irrenunciáveis e que tudo tem que ter a assinatura do MPT.

Num país em que metade dos trabalhadores não tem qualquer proteção, fica até engraçado tanto alerta e cuidado com os que estão no mercado formal. No Brasil, gasta-se mais tempo e dinheiro protegendo-se os protegidos. Se a empresa estiver em situação precária, ela não estaria negociando reduções temporárias e, sim, demitindo. O movimento é para impedir que ela entre em "situação financeira precária".

O Ministério Público do Trabalho mandou notificações para seis centrais e 16 federações sobre o assunto e instaurou um procedimento preparatório para investigar as negociações. Tudo é para evitar, segundo o MPT, "a disseminação" desses acordos. Segundo a procuradora Laura de Andrade, "essa discussão não pode ser feita de forma generalizada". Vários procuradores já avisaram que vão pedir a anulação. Isso deixa as empresas numa situação de insegurança para procurar qualquer solução que não seja a demissão do funcionário.

Em Minas, semanas atrás, um acordo entre trabalhadores e uma empresa para redução de jornada e salário foi vetado pelo sindicato. O governo faz campanha aberta contra a terceirização. Deveria regulamentar a medida, para ampliar a oferta de emprego neste momento, mas evitar os abusos já ocorridos no passado.

Os Estados Unidos têm uma legislação flexível em que as partes podem acertar uma série de formas diferentes do contrato de trabalho, e a Europa tem legislação rígida. Nos EUA, tradicionalmente, o desemprego é menor do que na Europa, e o mercado de trabalho se recupera mais rapidamente após uma crise. Mesmo subindo para 7,6%, no dado divulgado na última sexta-feira, o desemprego americano foi, durante todo o ano passado, menor do que no Brasil.

O desemprego e a informalidade vão aumentar, segundo Pastore, e o temor que ele tem é que não seja passageiro.

- A dúvida que eu tenho é se, passando a crise, o emprego volta. As empresas estão fazendo remanejamentos e mudanças que podem afetar o nível de emprego de forma permanente. Hoje, elas demitem por falta de confiança, por falta de crédito e por desestímulo para investir. Os novos arranjos produtivos podem acabar sendo permanentes e esses empregos não serão recriados - diz Pastore.

O desemprego bate nos trabalhadores de forma geral, como perda de renda ou como ameaça que gera estresse, adia decisões de compras, que impede atividades de lazer, desestrutura famílias. Mas as estatísticas não deixam dúvidas. Os mais vulneráveis são os negros, as mulheres e os muito jovens. A taxa de desemprego das mulheres no melhor momento do mercado de trabalho é igual à taxa dos homens no pior momento. Em 2003, pior ano recente, a taxa de desemprego dos homens era de 10% e a das mulheres era 15,2%. No ano passado, o melhor ano recente, o desemprego das mulheres era de 10% e o dos homens, 6%. Os dados são do IBGE.

Quando o recorte é pela idade, é a mesma coisa. Em 2003, o desemprego de 18 a 24 anos era de 23,4% e o de 25 a 49 anos era de 9,4%. No ano passado, o dos jovens tinha caído para 16,6% e o dos trabalhadores até 49 anos era de 6,3%. Importante notar que só entra na estatística quem está procurando emprego. Se o jovem está estudando, e não procurando emprego, ele não entra na estatística.

A mesma realidade se vê quando se comparam os dados de brancos e negros (pretos e pardos). Na Pesquisa Mensal de Emprego de dezembro, o desemprego dos brancos era de 5,8%, - a média de desemprego da população estava em 6,8% - mas a dos negros estava em 8%. Ou seja, a taxa de desocupação dos negros se mantém 40% acima da dos brancos.

O desemprego tem mais essa perversidade, ele atinge mais os negros, as mulheres e os jovens. Negros e mulheres pelos velhos preconceitos. Jovens porque, na crise, as portas se fecham para os recém-chegados. O desemprego é um drama social e pessoal. O pior lado de qualquer crise.

O pacotão de Lula, a banca e o BC

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Governo já fez o que podia no crédito, falta só cortar gastos. Mas BC e banca privada ainda estão devendo juros menores

O PACOTE anticrise do governo federal já passou bem dos R$ 200 bilhões, embora seja quase impossível fazer uma conta precisa. Não há como somar oferta de crédito público com isenções fiscais, medidas indiretas de estímulo com subsídios etc. Trata-se de alhos e bugalhos, de dinheiros que não se somam sem mais nem menos. Ainda assim, não está errado dizer que se trata da maior intervenção oficial de estímulo econômico da história.

Neste ano, o BNDES poderá emprestar R$ 76 bilhões a mais do que o fez em 2008, quando financiou R$ 92 bilhões. Para bancar a conta, o governo pode usar reservas do Tesouro, ora ociosas e sobrantes. Ou, um tanto pior, pode emitir dívida nova.

O Banco Central pode emprestar o equivalente a uns R$ 50 bilhões, via bancos, para que empresas paguem suas dívidas externas. Desde setembro de 2008, as reduções do compulsório liberaram cerca de R$ 85 bilhões para o caixa dos bancos, dinheiro para ser emprestado livremente ou que serviria, em tese, para reduzir os juros bancários (compulsório é o jargão para o dinheiro que os bancos têm de deixar parado no BC). O Banco Central ainda tem emprestado uns bilhões a exportadores, para não mencionar outras intervenções no mercado de dólares, as quais acabam por baratear custos cambiais de certas empresas.

O governo adiou o recolhimento de alguns tributos de empresas (um subsídio para capital de giro). Reduziu impostos sobre operações financeiras, carros e certas importações. Vai cortar impostos sobre a construção de casas e elevar o subsídio para a habitação popular. Criou linhas especiais de crédito para montadoras, construtoras e agricultura.

Em 2008, o estoque de crédito "livre" na economia cresceu R$ 211 bilhões (não se trata de novas concessões de crédito, mas da variação do saldo de empréstimos a pagar). No crédito "livre", não estão incluídos os financiamentos com destino definido pelo governo, como os do BNDES ou do crédito direcionado para habitação e agricultura. Em suma, no crédito "livre", contam-se os empréstimos decididos no mercado. Pois bem: a oferta adicional de crédito "oficial" para 2009 deve equivaler a uns 60% de todo o aumento de crédito "privado" no ano passado.

A maior parte do dinheiro do pacote anticrise luliano tem volta, a princípio: trata-se de empréstimos. O risco do crédito oferecido pelo BC a empresas fica com os bancos. No caso do BNDES, eventuais calotes caem na conta do setor público.

Mas a estatização de boa parte do crédito talvez fosse medida incontornável, dada a hecatombe financeira. Ainda assim, faltam ingredientes básicos nessa torta emergencial. O governo precisa cortar gasto corrente. O Banco Central deve cortar a Selic de modo a achatar ainda mais a taxa de juros real, em vez de apenas deixá-la estável nos atuais 6% ao ano, historicamente baixos, mas não o bastante. Os bancos privados precisam comparecer. Até agora estão saindo de fininho, apesar do seu caixa gordinho.

Não se trata de fazer a economia crescer os amalucados 4% da propaganda oficial. Mas deixar o PIB encolher, ora um risco real, pode criar um círculo vicioso econômico. E o risco de mau governo cresce em ambiente de tumulto social e político.

Protecionismo e crise social

Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


No abismo sem fundo da crise, germina a hostilidade em relação ao "outro": as importações, o imigrante


AO LONGO do tumultuado período encravado entre a Primeira Guerra Mundial e a vitória dos aliados em 1945, a fúria e a desordem dos mercados colocaram em risco as normas de convivência e os valores da ordem liberal capitalista. Já no final do século 19, na esteira da Segunda Revolução Industrial, a ampliação da presença das massas trabalhadoras nas cidades e a conquista do sufrágio universal transformaram em problemas sociais fatos que antes eram considerados resultados da conduta irregular dos indivíduos. A ideia de desemprego como fenômeno social, produzido pela operação imperfeita de mecanismos econômicos, é muito recente. Ainda no crepúsculo do século 19, o desemprego era tomado como vagabundagem, inabilitação ou simples má sorte.

O colapso da ordem liberal foi acompanhado de instabilidades financeiras, monetárias e cambiais devastadoras, transmitidas por meio dos circuitos financeiros e comerciais que articulavam as economias nacionais. Esse intervalo histórico foi marcado por uma reversão brutal das convenções e das concepções que haviam prevalecido no mundo relativamente estável e próspero do liberalismo comercial inglês regulado pelo padrão-ouro, ou seja, pela hegemonia da libra. A defesa do espaço econômico e social das nações ganhou preeminência sobre as propaladas vantagens do livre comércio. O avanço do protecionismo amparado em elevações de tarifas e desvalorizações competitivas tornou-se o esporte predileto dos governos, dos empresários e dos sindicatos. Os países envolvidos tratavam de despejar o desemprego de máquinas e homens no território do vizinho.

Na ausência de uma coordenação global, o nacionalismo econômico desvairado promoveu a contração do comércio internacional. Os países com maior abertura ao intercâmbio externo de serviços e mercadorias sofreram mais com a contração do comércio. As grandes economias tiveram melhor desempenho com a busca da autarquia. Mas o conjunto da obra foi desastroso.

Não por acaso, na esfera política, a degradação da ordem liberal legitimou as aventuras totalitárias à esquerda e à direita. O coletivismo dos anos 30 era isso mesmo: um fenômeno regressivo promovido pela dissolução dos nexos sociais regulados pelos mercados. A crise realizou a proeza de explicitar a violência essencial que espreita a sociedade quando o indivíduo livre é lançado na liberdade desamparada. Nesse abismo sem fundo, germina a hostilidade em relação ao "outro": primeiro as importações, depois o imigrante, o estrangeiro, para culminar na eliminação da diferença sob qualquer forma. Nas profundezas da crise, é necessário eliminar todas as diferenças e mergulhar naquilo que é absolutamente semelhante, a totalidade uterina e intolerante da massa informe e manipulável.

Luiz Gonzaga Belluzzo , 66, é professor titular de Economia da Unicamp e presidente da Sociedade Esportiva Palmeiras. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

Respostas à crise: o uso de Keynes

Pedro S. Malan
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

"Nunca a conjuntura foi tão pouco conjuntural" (André Lara Resende). O que é uma forma de dizer: há que ter senso de perspectiva quando se está em meio a uma crise econômica global do tipo que só ocorre em intervalos que se contam em décadas. Perspectiva não apenas para entender melhor como chegamos à situação atual, ver se há algo para aprender com as experiências de resolução de crises pretéritas; reavaliar como está o resto do mundo. Como também - e tão ou mais relevante - para olhar adiante, sabendo que "o que mais importa agora" é responder adequadamente à crise - o que exige um mínimo de perspectiva.

Relevância e urgência seriam razões suficientes para voltar ao tema de meu artigo anterior neste espaço (Respostas à crise e o crescimento). Há outras, que têm que ver com o uso, a meu juízo, indevido, que se vem fazendo entre nós das ideias do maior economista do século passado (J. M. Keynes) para defender um determinado tipo de resposta do Brasil à grave crise atual, com referência à forma como teria sido superada a crise dos anos 1930 - a mais grave até hoje conhecida e tema de revigorado debate entre os que buscam lições do passado para exigências do presente.

As situações e as respostas de hoje por certo não são nem poderiam ser as mesmas que as de quase 80 anos atrás. Entre 1929 e 1933, por exemplo, o PIB norte-americano declinou, em termos nominais, em mais de 50%, divididos quase meio a meio entre queda real e deflação (queda de preços). O desemprego nos EUA quando Roosevelt iniciou seu governo (março de 1933) chegava a 25% da força de trabalho. E, apesar do New Deal, houve uma recessão intensa nos EUA entre março de 1937 (início do segundo mandato de Roosevelt) e maio de 1938, contribuindo para que o nível do PIB nominal que os EUA haviam alcançado em 1929 só fosse superado em 1940, um ano após o início da 2ª Guerra Mundial.

Keynes tinha convicção sobre a crucial importância da recuperação da economia dos EUA para o resto do mundo. Instado por amigos americanos, escreveu bela carta a Roosevelt em dezembro de 1933. Convidado pela Universidade de Columbia, visitou os EUA em maio de 1934 e por três semanas, em contatos com empresários, financistas, políticos e altos funcionários da administração, inclusive com o próprio Roosevelt. Na sua principal palestra pública nessa viagem abordou o tema da retomada à luz de duas perguntas básicas: que medidas podem ser adotadas para acelerar o retorno à normalização das atividades empresariais? Em que escala, por meio de que expedientes e por quanto tempo são recomendáveis níveis anormais de dispêndio governamental?

Keynes argumentou que a confiança empresarial estava "singularmente escassa" e sugeria que por "pelo menos seis meses e provavelmente um ano" a retomada dependeria fundamentalmente dos estímulos supridos pelas autoridades na forma de gastos emergenciais. E insistiu na necessidade de aumentar a efetividade das políticas de retomada do crescimento em cinco áreas: investimentos em habitação, ferrovias e "utilities"; reabertura do mercado de capitais; redução da taxa de juros de longo prazo e manutenção da política cambial que fixara uma nova relação (desvalorizada em quase 60%) entre o dólar e o ouro, que prevaleceu até 1971.

É importante notar, para propósitos do debate atual, que Keynes falava em "problemas de ignição", em gastos governamentais temporários, emergenciais, contracíclicos, como se diz hoje. E escreveu na carta a Roosevelt: "No segundo capítulo desta história, os dispêndios do governo podem ser reduzidos à medida que o setor privado retome seu papel."

Mas o fato é que muitos, no mundo de então, e de hoje, viram, e veem, a sugestão de Keynes para sair da Depressão como uma "parte permanente do mecanismo de preservação da demanda". Vale citar a explicação de Keynes em correspondência (de 1934) dirigida ao chefe da Divisão de Pesquisa e Planejamento da National Recovery Administration: "A minha teoria (ênfase no original) é a mesma seja o dispêndio realizado pelo governo ou pelo setor privado... apenas no evento de uma transição para o socialismo alguém deveria esperar que o dispêndio governamental desempenhasse o papel predominante de forma mais permanente."

Keynes escreveu novamente a Roosevelt em fevereiro de 1938, com os EUA de novo em recessão. Além de advogar a sua já conhecida prescrição de aumento de obras públicas, especialmente em serviços públicos de infraestrutura (nos quais via as políticas recentes da administração como inibidoras do investimento privado), Keynes também sugeria que a administração Roosevelt adotasse um conjunto diferente de atitudes (mais positivas) para com o investimento privado.

Roosevelt encaminhou a carta a seu secretário do Tesouro, que respondeu a Keynes de forma lacônica. Este replicou em março de 1938 com as seguintes palavras: "... Você precisa ou dar mais encorajamento ao setor empresarial ou assumir mais de suas funções você mesmo... suas políticas recentes parecem presumir que você tem mais poder do que efetivamente dispõe." Sábio conselho, que retém surpreendente atualidade no mundo de hoje.

Estas longas digressões me vêm à mente ao ver com frequência, no nosso debate atual, o nome de Keynes, suas ideias e sua Teoria Geral... utilizados para justificar aumentos de gastos permanentes e recorrentes do governo, como contratação de pessoal, aumento de salários públicos, custeio de toda ordem, como se fossem gastos contracíclicos de inspiração keynesiana, destinados não só a responder à crise atual, como a assegurar, de forma permanente, níveis adequados de demanda efetiva e apropriados estímulos ao investimento. Uma postura que torna mais difícil alcançar o objetivo de redução (crível) da taxa de juros reais de longo prazo, tão necessária - entre outras coisas - ao crescimento sustentado da economia brasileira.

Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
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