Por Diego Viana | Eu &Fim de Semana / Valor Econômico
"Faz parte dos governos populistas mexer com os afetos. Neste caso, afetos de divisão, supondo que é preciso incluir alguns e excluir muitos"
SÃO PAULO - Em 2014, a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz demonstrava otimismo com o país, ao publicar "Brasil: uma Biografia", em coautoria com Heloisa Starling. O Brasil parecia ter consolidado sua democracia, com um processo incipiente de inclusão social. Em 2019, a autora lança "Sobre o Autoritarismo Brasileiro" (Companhia das Letras, 288 págs., R$ 49,90), cujo espírito é o oposto: "Uma reação ao que está acontecendo". O livro busca instrumentos para entender a polarização política e os riscos à democracia nos conceitos clássicos da história brasileira, como mandonismo, patrimonialismo e escravidão.
Professora da Universidade de São Paulo (USP) e de Princeton, nos Estados Unidos, Lilia falou ao Valor poucos dias depois das manifestações de professores e estudantes contra cortes orçamentários no ensino superior. A historiadora mostrou entusiasmo com os protestos, que se contrapuseram a uma estratégia característica dos populismos atuais, o confronto com a universidade. A magnitude da resposta nas ruas, para ela, é "sintoma de que a reação deve partir da sociedade civil".
A atmosfera tensa e a ascensão do populismo exigem dos intelectuais uma atuação pública mais intensa, diz a professora. E ela responde a esse apelo recorrendo à presença nas redes sociais. Por trás do clima beligerante e superficial das discussões nessas redes, Lilia identifica um público ávido por debate e informação. Aos intelectuais, cabe sair de suas bolhas, um processo que a autora diz já ter começado.
Historiadora com interesse particular pela interpretação do país, Lilia enxerga a emergência de uma nova maneira de narrar e pensar o Brasil, menos apoiada na ótica eurocêntrica e colonial. A novidade é fruto de quatro décadas de ativismo, que garantiu a grupos minoritários o acesso, embora ainda limitado, à universidade e outros espaços de poder. Essa ampliação das narrativas significa "restituir memórias e histórias, que dizem respeito a essas populações. Significa oferecer um cardápio mais variado", afirma.
A capa de "Sobre o Autoritarismo Brasileiro" exibe a obra "Memória" (2004), de Sonia Gomes, que usa retalhos de tecido para compor uma escultura de pano. Segundo Lilia, o uso de obras de arte nas capas é um modo de compartilhar um espaço com outras maneiras de interpretar o país. Sobre "Memória", ela afirma que a obra "tem tudo a ver com minha reflexão, no modo como vai puxando fios do passado e, a partir deles, tem um impacto no presente".
Valor: "Brasil: uma Biografia" aparentava um certo otimismo. O livro atual é mais sombrio. Isso expressa uma mudança de avaliação?
Lilia Moritz Schwarcz: Muito. Escrevemos uma nova conclusão no ano passado, para a edição em inglês. Dizemos que nos equivocamos, porque aquele livro via a democracia bastante assegurada no Brasil, com instituições fortes e operantes, embora a república seja falha, incompleta, inconclusa. Escrevemos antes do impeachment de Dilma Rousseff. Não conseguimos antever a polarização crescente, com a ascensão de políticas de ódio. Já este livro foi um pedido da editora, para que retomasse minhas leituras do Brasil e fizesse um panorama do país atual. É uma reação ao que está acontecendo, como tenho feito no Instagram.
Valor: A senhora tem atuação intensa nas redes sociais. Como tem sido essa experiência?
Lilia: No Instagram, desde que [Jair] Bolsonaro foi eleito, posto uma notícia por dia, tentando informar e dialogar com um público mais amplo. Faço vídeos no YouTube, também. Estamos vivendo um momento em que é preciso uma mudança de atitude dos intelectuais. O Brasil pede que atuemos mais como intelectuais públicos. Nos EUA, o intelectual público é muito valorizado. Aqui, nem tanto, mas está ganhando força. Tem mais intelectuais escrevendo nos jornais, dando entrevistas. O Brasil tem uma universidade forte, reconhecida internacionalmente, com publicações importantes, mas uma intelectualidade ensimesmada. A universidade deve se expor mais. Estamos sendo desafiados a oferecer uma face pública mais ampla e alguns estão tentando sair da bolha.
Valor: As primeiras grandes manifestações contra o governo foram motivadas por cortes nas universidades. O Brasil tem fama de ser anti-intelectual e negligenciar a educação. Esse seria um sinal de que o lugar da universidade no Brasil é maior do que se pensa?
Lilia: E foi uma beleza. Maravilhoso. Na segunda-feira anterior, tive uma reunião com uma instituição internacional e previ que na quarta aconteceria um grande fenômeno no Brasil. Duvidaram. Acharam que só iam alguns professores e alunos. Mas tivemos uma adesão sensacional da população, das escolas privadas, de diferentes áreas. O governo procurou atacar as universidades mexendo nessa suposta falta de tradição. Foi um erro. É sintoma de que a reação deve partir da sociedade civil, uma reação de cidadania vigilante. Estamos agindo como cidadãos, lutando pelos nossos direitos, um deles sendo a universidade pública de qualidade.